quinta-feira, outubro 31, 2024

O pesadelo do espaço relativístico em 'Slingshot'


Desde que roteiristas e escritores abandonaram aquele modelo de sistema solar análogo a imagem do átomo com elétrons girando em torno do núcleo, adotando a perspectiva relativística (órbitas como quedas na deformação do espaço-tempo produzida massa do Sol, o espaço deixou de ser “a fronteira final” – como se referiam sci-fi clássicos como “Jornada nas Estrelas”. O espaço virou um pesadelo logístico (buraco de minhoca, velocidade wrap, efeitos estilingue gravitacional etc.) e existencial: no espaço não encontramos nada, a não ser nossos próprios pesadelos que trazemos da Terra. “Slingshot” (2024) é uma pequena joia sci-fi de baixo orçamento sobre um trio de astronautas que mergulha no atoleiro da loucura do isolamento, paranoia e ansiedade. Tentam manter a lucidez à medida que se aproximam de uma correção de curso assistida pela gravidade de Júpiter – o “estilingue”. 

Quando estudamos o sistema solar nas aulas de Ciências na escola, costumamos ver os planetas alinhados, cada um dentro da sua órbita graficamente representada por círculos concêntricos em torno do Sol.

Olhando para essas representações (muito semelhantes àquelas representações do átomo nas aulas de Física (os elétrons orbitando em torno do núcleo), imaginamos as viagens espaciais como voos em linha reta da Terra até o destino. 

O problema é que em termos cósmicos ou relativísticos, a coisa não é bem assim. A gigantesca ação gravitacional da massa do Sol deforma o tecido do espaço-tempo, fazendo os planetas “caírem” nessa deformação, fazendo-os girar em diferentes e estonteantes velocidades – a Terra, por exemplo, gira em torno do Sol (translação) a 107 mil km/hora; enquanto Júpiter, 13,07 km por segundo. Na verdade, caem para chegar ao afélio (o ponto da órbita mais afastada do Sol) e voltar a cair novamente.

Olhando em perspectiva cósmica, todo os objetos estão em queda em torno de massas estelares ou singularidades infinitas, como os buracos negros. Eventualmente as órbitas decairão para tudo colapsar (ou cair) na estrela. Isso se ela não colapsar antes, virando um buraco negro. O que torna o final de tudo ainda mais dramático ou espetacular, dependendo da perspectiva.

Esse é o destino do cosmos: a entropia ou a desordem dos sistemas pela dissipação da sua energia.

Por isso, a viagem pelo espaço é um pesadelo logístico: perseguir o planeta alvo em queda enquanto a própria nave espacial também cai, corrigindo o tempo todo a trajetória para tentar alcançar o alvo em algum ponto nessa queda orbital – ou seja, fazerem as velocidades das quedas coincidirem.



Em tempos de ficção científica modernista, a viagem espacial ainda era pensada naqueles termos das aulas de Ciências – “O Espaço, a fronteira final” dizia a abertura da clássica série Jornada nas Estrelas. Tudo era mais, por assim dizer, épico: astronautas como fossem cowboys audaciosamente cruzando as fronteiras do Oeste americano.

Quanto mais os escritores e roteiristas tomam consciência dessa visão relativística da viagem espacial, menos o tema da viagem em si (velocidade wrap, o cosmos como espaço a ser desbravado etc.) é abordado, para o homem no espaço desabar existencialmente sobre si mesmo, numa espécie de entropia psíquica – isolamento, alucinações, diluição das fronteiras entre realidade e delírio etc.

Embora o homem esteja no espaço profundo, ele arrasta consigo seus traumas, fantasmas, frustrações ou dúvidas que pensa erroneamente ter deixado na Terra, acreditando que a missão está acima de tudo.

Solaris, de Andrei Tarkovski (o oceano de um planeta que projetava as fantasias e fantasmas dos astronautas), foi o começo desse pesadelo logístico representado no cinema. 

Slingshot (2024) é a mais recente visão de como o espaço pode se tornar um pesadelo no qual se transforma numa espécie de tela psíquica – afinal, no espaço ninguém ouvirá seus gritos.

O próprio título nos informa o pesadelo logístico da viagem espacial: a nave se aproxima de Júpiter para iniciar uma perigosa manobra em estilingue orbital: ser catapultada pelo gigante gasoso como atalho para chegar rapidamente à lua de Saturno, Titã. Lua com um oceano de metano, combustível essencial para a crise energética que ameaça a civilização moribunda pela crise climática global.

O argumento é muskiano (nove em cada dez das produções sci-fi atuais): a Terra está em crise e só a reativação das viagens espaciais nos salvarão: de preferência através da Space X de Elon Musk.



O Filme

 Slingshot, é sobre um trio de astronautas rumo à lua de Saturno Titã que começa a experimentar eventos estranhos quando sua tripulação começa a alucinar devido a drogas de hibernação que aliviam os rigores de uma expedição de 1,5 bilhão de milhas.

É um filme contemplativo, mas que quanto mais avança vai virando uma descida vertiginosa ao atoleiro da loucura de uma tripulação que lida com isolamento, paranoia e ansiedade. Tentam manter a lucidez à medida que se aproximam de uma correção de curso assistida pela gravidade de Júpiter – o “estilingue”.

Casey Affleck estrela como John, o astronauta que deixou sua namorada Zoe (Emily Beecham) na Terra, enquanto ele sobrevoa o sistema solar em uma missão de vários anos. 

John tem devaneios recorrentes sobre seus primeiros encontros e romances iniciais, mas as perspectivas mudam à medida que o filme avança e John começa a imaginar coisas dentro da nave estelar que podem ou não ser reais.

Juntando-se a Affleck está o sempre magnético Laurence Fishburne, que parece ter um talento especial para ficar a bordo de naves espaciais condenadas, como visto em filmes como Event Horizon, The Matrix e Passengers. Aqui Fishburne interpreta o Capitão Franks, um líder comandante que tenta manter a ordem e a sanidade dos seus comandados.



Completando o elenco principal está Tomer Capone, que interpreta um co-piloto sempre tenso e nervoso chamado Nash.

Mas somando-se aos devaneios de saudades de John cada vez mais perigosamente reais, há um solavanco inexplicável que deixa a tripulação preocupada que a integridade do casco da nave. O que pode colocar em xeque a arriscada manobra orbital do “estlingue”.

Com Nash surtando, querendo dar meia volta e retornar a Terra e John cada vez mais instável em meio as recorrentes alucinações, o capitão Franks sente a proximidade de um motim.

O que deteriora ainda mais mentalmente a tripulação são os ciclos de três meses de hibernação criogênica – as drogas aplicadas para cada reanimação parecem criar um estado mental ainda mais confuso.

Slingshot também compartilha temas semelhantes filme de terror de 2007 do diretor Mikael Håfström, 1408, onde um renomado autor de livros de viagens fantasmagóricos passa uma noite traumática em um quarto de hotel assombrado e lentamente perde sua sanidade.



Desta vez, o diretor troca as acomodações paranormais do Dolphin Hotel na cidade de Nova York por uma nave espacial apertada a caminho de Titã e deixa a claustrofobia e a psicose vacilante trabalharem com sua magia desorientadora.

Slingshot é um sci-fi de baixo orçamento que pode ser verificado na cena que John tenta localizar o mau funcionamento da nave depois do choque do casco com algum objeto no espaço: John levanta a cabeça através de uma escotilha de aparência tola como fosse um homem verificando o sótão em busca de esquilos.

Porém, é uma pequena joia de ficção científica que poderia funcionar como uma peça de teatro, pois o filme é baseado nas linhas de diálogo de três personagens em um ambiente claustrofóbico a maior parte do tempo.

Além do mais, Slinghot é um sci-fi emblemático: o encontro de uma arriscada manobra orbital de estilingue e o homem que não encontra mais no espaço “a fronteira final”, mas apenas a entropia interna – com planetas e asteroides caindo atraídos por estrelas massivas, também parece que caímos sobre si mesmos, atraídos pela atração gravitacional do nosso próprio psiquismo.


  

 

Ficha Técnica 

Título: Slinghot

Diretor: Mikael Håfström

Roteiro: R Scott Adam, Nathan Parker

Elenco: Casey Affleck, Laurence Fishburn, Emily Beecham

Produção: Astral Pictures

Distribuição:  Bleecker Street

Ano: 2024

País: EUA

 

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