domingo, setembro 23, 2012

Desconstruindo o yuppie em "Depois de Horas"

Depois da experiência da direção do filme “O Rei da Comédia” com um amargo Jerry Lewis e um esquizofrênico Robert De Niro, Martin Scorsese mergulhou de cabeça na paranoia e ansiedade em “Depois de Horas” (After Hours, 1985). O filme tornou-se o paradigma de um curioso subgênero da década de 1980, o “Desconstruindo o Yuppie” onde um protagonista certinho e bem sucedido é vítima de uma sequência de eventos em cadeia exponencialmente perigosos. Forma e conteúdo do filme coincidem com a própria experiência estética do espectador que caracteriza o cinema: o “deixar se perder” no fluxo da edição e montagem. Porém, “Depois de Horas” não consegue transformar-se em “cinema acontecimento”, limitando-se a um terapêutico “cinema recuperativo” que nos prepara a voltar para a realidade quando são acesas as luzes do cinema.

A vivência da experiência estética de produtos ficcionais do cinema ou da TV é totalmente distinta do assistir um telejornal, da leitura da imprensa escrita ou do radiojornalismo. O jornalismo estaria no campo do profano, dos discursos racionais, enquanto os produtos ficcionais estariam no campo do sagrado (festas e envolvimento coletivo e emocional) onde os participantes consentem em se “perder”.

Desde o primeiro cinema o perigo, a ansiedade, a paranoia, a vertigem e a perseguição se constituíram na essência de uma mídia onde a sensação de desorientação e quebra da ordem passou a ser o elemento definidor da experiência estética – não é à toa que o primeiro gênero de sucesso popular no cinema foi o filme de perseguição com o “The Great Train Robbery” de 1903.

Talvez um dos filmes que melhor exemplifique essa natureza da experiência do cinema seja “Depois de Horas” de Martin Scorsese. Nele acompanhamos um protagonista em uma situação tal e qual Alice de Lewis Carroll: ele irá escorregar por um buraco urbano que o fará encontrar um submundo onde “após a meia-noite as leis mudam”, como afirma um dos alucinados personagens que ele encontrará em sua jornada.

Paul Hacket (Griffin Dunne) é um entediado programador de computadores que vive uma vida de conformidade e conforto no East Side de Manhattan. Tudo é rotina e previsibilidade, representado pela ordem perfeita da música dos créditos de abertura do filme – a Sinfonia em D Maior de Mozart, um contraste irônico para o que ocorrerá com o herói. Em um café no Centro é atraído por uma jovem chamada Marcy (Rosana Arquette) que lia “Trópico de Câncer” de Henry Miller enquanto brincava com uma xícara de café. 

Uma mulher atraente e misteriosa. A partir de um papel com um telefone, Paul é atraído pelo coelho/Marcy e vai para o exótico SoHo onde mergulhará de cabeça em uma exótica Wonderland de escultores excêntricos, artistas, garçons e garçonetes potencialmente suicidas, ladrões e loucos solitários.

Tudo poderia ser uma busca de diversão para um jovem entediado, não fosse uma viagem de táxi de arrepiar: sua única nota, 20 dólares, voa para fora da janela dando o início a uma noite de coincidências e sequências de eventos em cadeia que farão Paul, a certa altura do desespero, cair de joelhos na calçada e gritar para o céu “O que você quer de mim? Sou apenas um programador?”

“Depois de Horas” tornou-se o paradigma de um curioso subgênero que prosperou na década de 1980: o “Desconstruindo o Yuppie”. “Procura-se Susan Desesperadamente”, “Totalmente Selvagem”, “Férias Frustradas”, “Antes Só do Que Mal Acompanhado”, “Crazy People” etc., são filmes onde um protagonista certinho, careta e financeiramente bem sucedido tem a sua rotina quebrada por uma figura feminina ou sequência descontrolada de eventos que o desorienta e o desconstrói.

Foi nessa década que a chamada geração X (os filhos da geração “baby boomer” pós-guerra) produziu a sua autoimagem mais bem acabada: o Yuppie. Derivação da sigla YUP (jovem profissional urbano), esses jovens executivos do setor financeiro e de serviços se beneficiaram do crescimento econômico conduzida por políticas neoliberais de desregulamentação e diminuição de impostos nos EUA e Inglaterra. Ao contrário dos hippies do passado, sua ideologia era focada no indivíduo, materialismo (o sonho de juntar seu primeiro milhão de dólares – e seu primeiro Prozac - antes dos 30 anos) e na flexibilidade ética e amoralidade.

"Depois de Horas" de Scorsese e "Alice" de Lewis Carroll


Scorsese vinha da experiência na direção do filme “O Rei da Comédia”, onde um amargo Jerry Lewis contracenava com um esquizofrênico Robert De Niro. Depois dessa tragicomédia esquizoide, Scorsese mergulhou ainda mais na ansiedade e paranoia com “Depois de Horas” onde vemos desfilar uma galeria de personagens com personalidades divididas onde nada é o que aparenta ser.

O paralelo entre a Alice no País das Maravilhas e Paul em “Depois de Horas” termina na forma como o protagonista é conduzido para o submundo. Se a Wonderland de Lewis Carroll é o mundo vitoriano representado de forma invertida como em um espelho (as linhas de diálogo mostram sempre como a lógica racional conduz para o seu oposto), o SoHo de Scorsese é representado mais como um parque temático para um yuppie: pessoas cheias de estilo e descoladas, mas potencialmente perigosas e homicidas. Enquanto em Carroll temos a anarquia e subversão (os princípios da lógica são virados logicamente do avesso), em Scorsese temos uma combinação entre ansiedade e resignação: passivo, Paul resiste, tenta fugir, cai de joelhos, clama para o céu para, no final, retornar à ordem entediante da qual o coelho/Marcy o retirou no início.

“Depois de Horas” é uma pequena fábula fascinante, pois forma e conteúdo coincidem com a própria natureza do cinema: o deixar se perder no fluxo da edição e montagem, entrar no cinema para quebrar a rotina e esquecer a vida lá de fora, assim como o protagonista Paul ao cair em um submundo do qual acha que jamais será encontrado.

O problema de “Depois de Horas” é que o underground do SoHo se encaixa confortavelmente com o mundo real yuppie de onde Paul Hacket veio. Femmes Fatales e loucos homicidas descolados e artistas são personagens de uma jornada de um yuppie ao Inferno que não renovam ou transformam o protagonista. Paul Hacket acaba largado, no início da manhã, em frente ao local de trabalho, tentando recompor-se para mais um dia de trabalho após uma madrugada alucinante.


Cinema de Recupração e Cinema Acontecimento



Jason Horsley no livro The Secret Life of Movies – Schizophrenic and Shamanic Journeys in American Cinema qualifica o subgênero “Desconstruindo o Yuppie” como mais um exemplo da tendência “recuperativa” do cinema nas décadas de 1980-90: após as incursões no “cinema esquizo” em filmes como “Blow Up”, “Perdidos na Noite”, “Easy Rider”, “Um Estranho no Ninho”, “Taxi Driver” etc. (novo realismo misturado com desespero, cinismo e paranoia política onde os protagonistas são retratados não mais como heróis convencionais, mas, agora, potencialmente psicopatas, esquizoides, alienados e revoltados), a partir da década de 1980 vemos um “cinema de recuperação”: o mal estar da sociedade é enquadrado em narrativas com violência sadística, exibicionista onde medo e paranoia são convertidos em ansiedade. A ansiedade como um mal que pode ser controlado, terapeutizado para o retorno à ordem e rotina.

Pois a Wonderland do SoHo não consegue desafiar o mundo do yuppie Paul Hacket, ao contrário da Wonderland de Carroll. Tudo termina como fosse uma incômoda ressaca que logo será esquecida.

Se a hipótese da experiência estética do espectador do “deixar se perder” no cinema (para além do entretenimento, a secreta motivação do espectador seria romper com o mal estar da rotina do cotidiano) for verdadeira, teríamos dois tipos de cinema: o cinema recuperativo, isto é, aquele que oferece o clichê da quebra-da-ordem-e-retorno-à-ordem onde toda transgressão ou promessa de realização onírica é punida com o retorno à ordem para tranquilizar o espectador quando as luzes forem acesas e voltar à realidade; e o cinema acontecimento, uma narrativa onde forma e conteúdo não se resolvem, não há o retorno esperado à realidade e onde, de fato, o espectador perde-se, desorienta-se, não conseguindo mais retornar à vida real como nada tivesse acontecido. Como na Alice de Lewis Carroll.

Em certa altura do filme, surge a atriz Teri Garr fazendo uma garçonete engraçadamente brega, porém deprimida e com tendência suicida. Paul, desorientado e exausto em uma lanchonete, recebe da garçonete um bilhete onde se lê “Eu odeio esse trabalho”!

Todos os personagens de “Depois de Horas” sofrem, são deprimidos, insatisfeitos e com um passado de perdas e dor. Porém estão conformados, passivos, contidos e melancólicos, apesar da narrativa vertiginosa de acontecimentos em cadeia que se sucedem em sincronismo assustadoramente inexplicável.

Portanto, facilmente poderíamos enquadrar “Depois de Horas” como um “cinema de recuperação”. Embora com uma narrativa fascinante e envolvente que, de fato, nos faz se perder junto com Paul Hecket, resta um mal estar no final: parece que nada aconteceu, não houve transformação, renovação. É a desconstrução do yuppie como um porre após mais um estressante dia de trabalho.

Ficha Técnica

  • Título: Depois de Horas (After Hours)
  • Direção: Martin Scorsese
  • Roteiro: Joseph Minion
  • Elenco: Griffin Dunne, Rosanna Arquette, Verna Bloom, Linda Fiorentino e Teri Garr
  • Produção: Geffen Company, Double Play
  • Distribuição: Warner Home Video
  • Ano: 1985
  • País: EUA



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