sábado, novembro 16, 2019

Bike elétrica é a resposta neoliberal à resistência do ciclismo


Inconformismo, revolta, veículos de libertação da tediosa rotina diária, liberdade... Essas são as representações mais comuns que o cinema faz sobre as bicicletas. Principalmente porque as bikes andaram, por assim dizer, na contramão da modernidade industrial: recusou-se a ser transformada em máquina, mantendo-se como ferramenta cuja fonte de energia e equilíbrio é exclusivamente o corpo humano. As bikes resistem à queda de braço do controle do Tempo entre Capital e Trabalho. Porém, vemos agora bikes elétricas circulando por ruas e ciclovias. Com a expansão da solução ciclística como resposta à crise neoliberal urbana (concessão privada dos transportes e colapso do transporte individual automobilístico), o neoliberalismo contra-ataca ao se apropriar de um veículo que resistia ao imaginário maquínico – com a motorização elétrica, as bicicletas se rendem ao ritmo do trabalho, ao sedentarismo e parasitismo humano tecnológico, ao mito da energia limpa ecologicamente correta e ao consumo bárbaro como símbolo de distinção e prestígio social

Em postagem anterior discutíamos como a bicicleta era representada através do cinema em dez filmes: A Saída dos Operários da Fábrica (1895), Ladrões de Bicicleta (1948), Clube da Luta (1999), Cinema Paradiso (1988), Quicksilver (1986), Os Goonies (1985), A Grande Farra dos Muppets (1981), Vidas Sem Destino(1997), ET (1982) e Butch Cassidy and Sundance Kid (1969).
A partir dessa ampla amostragem de gêneros fílmicos, percebemos que as representações das bikes convergiam para um conjunto simbólico que envolvia inconformismo, revolta, veículos de libertação da tediosa rotina diária, liberdade, novas descobertas que farão o protagonista crescer, liberdade, leveza, aventura e poesia. Mas também, símbolo de um futuro utópico, de uma Modernidade na qual o homem finalmente se integraria com a Natureza – clique aqui.
Isso sem falar nas associações psicodélicas e até alucinógenas como na música Bike da banda Pink Floyd ou a associação do Dia Mundial da Bicicleta (19 de abril) com a descoberta do LSD – seu inventor, Albert Hoffman, pedalou sua bike entre o laboratório e sua casa sob o efeito alucinógeno da droga em 1943.


De todos os meios de transporte ou veículos esportivos, por que a bicicleta é aquela que melhor expressa esse imaginário de contestação e liberdade? Para além dos aspectos estéticos (veículo individual, leveza e simplicidade), há uma razão materialista e tecnológica: a bicicleta foi na contramão do desenvolvimento industrial – a transformação das ferramentas em máquinas.


Bicicleta na contramão da Modernidade

Todo produto tecnológico moderno se integra a essa dinâmica: ferramentas são acopladas a mecanismos de transmissão (polias ou correias) e geração de energia (geradores elétricos, rodas d’água etc.), submetendo-as a um ritmo de trabalho imposto pelo capital industrial. Dessa maneira o artesão (detentor da ferramenta) se transforma em operário – submetido ao ritmo de uma máquina.
A bicicleta é uma exceção: ela depende unicamente de uma fonte de energia humana como também depende do equilíbrio do usuário para se manter funcionando. E pela sua praticidade, simplicidade e oferta, tornou-se um veículo de massa, tanto no lazer como no transporte – vide os milhões de chineses e indianos pedalando.
Por isso, a bicicleta é um poderoso fator de resistência e tensão em relação não só aos outros meios de transporte de massas como também à ordem e ritmo do cotidiano de trabalho – ir ao trabalho ou a qualquer outro compromisso de bike implica numa logística de apoio ao ciclista (bicicletário, vestiário etc.), alterando a rotina cronometrada do tempo de trabalho.
Este humilde blogueiro está relembrando todos esses pontos para chegar à questão das bicicletas elétricas que cada vez mais conquistam espaço nas ruas e ciclovias.
Os leitores mais antigos desse blog sabem que na juventude o escriba dessas mal traçadas linhas foi ciclista de competição e também que, há anos, vai e volta das aulas na Universidade de bike.  
Ao longo desses anos, acompanhando a evolução tecnológica das bicicletas, pude perceber que as motorizadas nunca fizeram sucesso – pareciam não fazer sentido, já que o pressuposto desse veículo é o controle e energia do próprio usuário, seja por questão esportiva, lúdica, de autonomia ou de economia.

A onda das bikes elétricas

  Mas agora testemunhamos a onda das bikes com motores elétricos e seus derivados – os patinetes de empresas startups tecnológicas. 
Depois de anos em que a construção de ciclovias e ciclo-faixas foram criticadas e envolvidas na polarização política turbinada pela guerra híbrida brasileira (a identificação desses projetos com petismo e as cores vermelhas dessas vias até suspeitas como propaganda subliminar), agora são valorizadas e, por isso, até limpas da cor vermelha “ideológica” – clique aqui.
Valorizadas devido ao fracasso de dois projetos urbanos neoliberais: o transporte individual resultou em caos urbano, congestionamentos e destruição da cidade (sem falar nas mortes nas crescentes colisões e atropelamentos); e o sistema de concessão da exploração privada dos ônibus produziu tão somente aumento de tarifas, sucateamento da frota pela busca de lucro rápido com baixo investimento e irracionalidade no planejamento.
Daí a “surpreendente” descoberta da bicicleta como alternativa lógica como meio de transporte: não-poluente, pouca ocupação de espaço, facilidade de estacionamento e baixo investimento.

As bikes têm seu próprio ritmo

O problema é que as bikes sempre andaram na contramão da modernidade industrial, como vimos acima: pelo fato delas ainda serem uma ferramenta e não uma máquina, impõem uma logística e ritmo que desafiam o cotidiano disciplinar de trabalho – exigem um tempo mais lento e uma nova demanda logística às organizações: vestiário ou um local para guardar as bicicletas e o ciclista se recompor, trocar de roupa após um eventual banho, de acordo com as condições climáticas ou meteorológicas.

Isso sem falar nas transformações cognitivas: a bicicleta desenvolve muita mais a contemplação e o flanar do que o foco, rapidez e produtividade.
Em toda a história do ciclismo, bicicletas motorizadas sempre foram vistas como qualquer coisa, menos propriamente uma bicicleta: eram chamadas de “mobiletes”, “motoquinhas”, “motocas” etc.
As bikes elétricas surgem no mercado com o appeal de serem “limpas” – não poluentes e silenciosas, parecem se alinhar com o imaginário “sustentável” das bicicletas. Porém, há muito elementos regressivos que acabam confirmando a noção de indústria cultural tal como pensadas por T. Adorno e M. Horkheimer: instituição através da qual a disciplina imposta pelo capital no mundo do trabalho é estendida ao tempo livre. De maneira que trabalho e lazer passam a ser regidas pelo mesmo princípio, aquilo que H. Marcuse chamava de “princípio do desempenho”.
Em outras palavras, de elemento de resistência, com a motorização de bikes e até patinetes, definitivamente esses meios de locomoção passam a serem integrados na Modernidade e na sua extensão, a Indústria Cultural.
Se não, vejamos:

(a) Quem controla o Tempo?

Bikes elétricas amenizam a tensão entre o tempo de trabalho e o tempo do ciclista. Ao contrário, a bike como ferramenta tensiona: força um ritmo mais lento no cotidiano - o tempo da pedalada, da chegada ao trabalho, recompor-se no vestiário e vestir a roupa para o trabalho. 
A maquinização das bikes significa a vitória da queda de braços entre o tempo do Capital e o tempo do Trabalhador. Intrinsecamente, a bicicleta ainda como ferramenta (e não como máquina) impõe uma nova configuração entre os tempos de trabalho-transporte-lazer. 
De certa forma, as bikes elétricas são mais uma peça no movimento totalitário de unificação do tempo pelo capital: do tempo do relógio de ponto ao tempo real tecnológico vemos a imposição de um tempo único, agora global. Mais uma vez a vitória do Capital na luta pela conquista do Tempo. 
Bikes elétricas estão sintonizadas com o tempo do desempenho, velocidade, ritmo de trabalho. O “ciclista” chega mais rápido ao trabalho, sem suor e já vestido para trabalhar.


(b) Sedentarismo e Parasitismo

As bikes elétricas propiciam a continuidade do sedentarismo e parasitismo tecnológico. O Capital impõe o sedentarismo ao transformar ferramentas em máquinas, transferindo a fonte de energia para fora do corpo humano para acelerar o ritmo do trabalho e aprimorar a disciplina dos corpos dos trabalhadores.
A energia humana é transferida para baterias e tomadas – energia com um custo elevado, para, mais uma vez, atrelar o usuário ao Capital e mercado. Sem falar na dependência de aplicativos – o corpo humano torna-se um parasita de gadgets.

(c) Mito da tecnologia limpa

Temos a cereja no bolo neoliberal: startups e o mito da tecnologia limpa - patinetes e bikes elétricas se associam ao ecologicamente correto por serem “limpas”, quer dizer, não liberam fumaça. 
Baterias de íons de lítio das bikes farão parte das toneladas de lixo químico tóxico não processados das baterias de carros elétricos, celulares, tablets etc.
O mito da “tecnologia limpa” e sustentável é persistente porque reforça ideologicamente uma solução neoliberal para problemas de mobilidade urbana criados pelo próprio neoliberalismo – concessão privada do transporte público e o colapso do transporte individual automobilístico.


(d) O consumo conspícuo 

O consumo conspícuo se apropria de um veículo historicamente democrático e libertário. Para o economista e sociólogo Thorstein Veblen (1857-1929), em especial no livro “A Teoria das Classes Ociosas” (1899), o consumo conspícuo, ou seja, o consumo de qualquer bem, serve basicamente para manter o prestígio social, o status e a distinção de classe social.
Para Veblen, há na cultura um elemento bárbaro que se volta contra a racionalidade ou utilidade dos bens: desde os saques na Antiguidade, os ociosos serão sempre os poderosos. Criam e mercantilizam o próprio ócio.
Incorporado pela Indústria Cultural, a bicicleta vê a sua natureza livre e democrática ser invadida por esse elemento bárbaro: bikes elétricas (reforçadas pelos modelos vintage, retrô etc.) tornam-se produtos de distinção, status.
De meio de transporte democrático e libertário (a bicicleta ocupou importante papel no Feminismo na virada do dos séculos XIX-XX ao dar à mulher a sensação de liberdade e auto-suficiência, além de impor a mudança do vestuário feminino marcado então pelos pesados vestidos vitorianos) transforma-se em símbolo de prestígio social.
Se no século XIX a publicidade da bicicleta falava em “mudar a vida num impulso”, hoje o impulso elétrico faz o movimento contrário – apertar ainda mais os laços que nos prendem ao ritmo do trabalho e do Capital. 

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