A cultura pop adora histórias em torno dos chamados “acampamentos
de verão”. É para onde as crianças iriam
todos os anos para fazer amigos, encontrar seu irmão gêmeo perdido ou
até mesmo escapar de um slasher que surge, do nada, da floresta
querendo massacrar campistas e monitores. Pelo menos é isso que o cinema e
audiovisual hollywoodiano quer nos fazer acreditar.
O único problema é que essa obsessão por histórias de campos de
verão está apenas na indústria do entretenimento – para o americano médio isso
nunca aconteceu: uma família que passaria o ano economizando para enviar seus
filhos para um acampamento no próximo verão. Preocupada com o crescimento
pessoal de seus filhos, suas habilidades sociais e um senso de comunidade entre
campistas e equipe.
Na verdade, poucas crianças participam de uma tradição que na
realidade foi iniciada pelas elites. Como revela Leslie Paris, professora
associada da Universidade da Colúmbia Britânica e autora do livro Children's
Nature: The Rise of the American Summer Camp.
Segundo ela, eles estavam preocupados com seus filhos que, para
eles, não tinham aventuras ao ar livre o suficiente e com o tipo de
experiências masculinas que precisariam para se tornarem os líderes da nação
para a próxima geração. Eles estavam preocupados com os efeitos da urbanização
e sentiam nostalgia de uma época em que mais meninos haviam crescido em áreas
rurais.
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Se tão poucas crianças na América participam de experiências
assim, por que histórias de acampamentos de verão têm uma influência tão
duradoura na cultura pop? Primeiramente, porque a América adora irradiar para o
planeta uma imagem democrática e popular de si mesma – terra de oportunidades
acessíveis a todos.
Para além dessa função propagandística, há uma outra função,
ideológica, disciplinar: dar uma experiência de segunda mão para as massas (“e se
você estivesse em um campo desses?...”), para mantê-las na linha e
disciplinadas sobre histórias de hierarquias, respeito a chefes e monitores.
Para se tornar “popular” e, eventualmente, sobreviver a algum serial killer que
apareça.
Quanto mais a sociedade americana (e os países submetidos ao
Império) se tornou politicamente convulsionada, mais as histórias sobre campos
de verão migraram para o popular gênero terror. Principalmente a partir dos
anos 1980, com a onda de filmes da “Espantomania” com seus “Fred Kruggers” e “Jasons”
com machado e lâminas cortantes nas mãos.
À primeira vista o filme Marshmallow (2025) parece mais do
mesmo, com um toque nostálgico como se quisesse retornar aos anos 1980: uma história de terror em um acampamento de
verão sinistro em que crianças e monitores se tornam alvos de um slasher
sobrenatural.
A estreia de Daniel DelPurgatorio , Marshmallow,
conta uma história de amadurecimento: acreditando que o acampamento de
verão fará bem a todos depois de um evento familiar traumático, os pais decidem
deixar seu pequeno filho chamado Morgan no Acampamento Almar, aonde as crianças
"vêm para crescer".
Claro que crescerá em meio a uma história assustadora quando ouve
a história do "Doutor", um cirurgião morador local que enlouqueceu, assassinando
a esposa e os dois filhos e os costurou para formar a família perfeita. Tarde
da noite, Morgan acredita ter visto o Doutor vagando do lado de fora de sua
cabana. Mas, como um garoto assustado que sofre de pesadelos, ninguém acredita
nele. Será que é tudo coisa da cabeça de Morgan ou existe mesmo um louco por
aí, vagando pela floresta?
Mas Marshmallow não é um filme de terror comum. Assim como O
Segredo da Cabana (2011) e Don’t Blink (2014), filmes que
desconstruíram metalinguisticamente o subgênero do terror da cabana remota na
floresta, Marshmallow desconstrói aquelas duas funções do imaginário dos
acampamentos de verão: propagandística e ideológica.
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Descrever como o filme descontrói esse subgênero seria incorrer
num spoiler imperdoável. Mas, ao seu jeito, é também uma história de
crescimento de um jovem: na medida em que as crianças estão desaparecendo, os
monitores adultos se demonstram cada vez menos confiáveis – é o duro ritual de
passagem. Descobrir que os adultos não são modelos de maturidade e descobrir
que ele só pode confiar em si mesmo e nas amizades com outras crianças.
Marshmallow é como se de
repente a trupe infantil dos Goonies fosse ao Campo Almar e tivesse que
se confrontar com um terror maluco metalinguístico.
O timing do filme chama a atenção pela coragem: até quase a metade
parece que estamos dentro de um terror nostálgico em torno de crianças
inocentes, monitores assim nem tanto e um drama moral de punições. Parece até
que o diretor quer nos desmotivar, que nos viremos para ir embora.
Mas, garanto: vale à pena esperar as coisas ficarem cada vez mais
estranhas.
O Filme
Partindo de clichês de terror consagrados, este filme reinventa o
tema do "acampamento de verão" reunindo um grupo de crianças, os
monitores estereotipados e sexualizados do acampamento e, claro, uma história de
medo contada à noite, em torno da fogueira, que se torna muito real.
Abrindo com uma sequência de sonho lúcido verdadeiramente
horrível, somos apresentados a Morgan (Kue Lawrence). Uma mudança recente de casa
deixou o desajeitado Morgan em um lugar estranho e com dificuldades para se
adaptar ao novo ambiente. Há bullying e provocações constantes na vizinhança
por parte das crianças maiores, e é evidente que Morgan está passando por
momentos difíceis. Conhecemos sua família, incluindo seu incentivador, o avô
Roy (Corbin Bernsen). Após uma tragédia familiar, os pais decidem enviar o
jovem Morgan para um acampamento de verão, onde ele poderá fazer amigos e
talvez superar sua timidez.
Fica bem claro no início do filme que Morgan tem um sério problema
onírico com água e, claro, uma grande parte das atividades do acampamento de
verão envolve passeios de barco, natação, pesca etc. Quando Morgan pede para
ser excluído de tais eventos, os valentões se mostram novamente, e é mais ou
menos nesse ponto que o filme dá uma guinada bizarra e nada menos que incrível
para a insanidade.
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Durante uma das reuniões noturnas, a história obrigatória da
fogueira é contada, sobre um médico que construiu um laboratório no próprio
terreno onde agora se encontravam, onde coisas horríveis aconteceram e, caso
alguma criança se afaste de sua cabana após o apagamento das luzes, corre o
risco de encontrar o médico que, segundo rumores, vaga pela floresta em busca
de vítimas.
Está evidente que a história foi inventada pelos próprios
monitores para manter as crianças obedientes e disciplinadas. Como um conto
sobre o bicho papão ou o homem do saco.
O uso da nostalgia confere a este filme uma forte pegada de It
e Stand by Me, de Stephen King, misturada com uma pitada de Stranger
Things.
E então o médico aparece. E as coisas começam a sair dos trilhos
dos clichês, ficando mais estranhas.
A desconstrução gnóstica – Alerta de Spoilers à frente
Inteligentemente escrito, com grande atuação das crianças e
habilmente filmado, Marshmallow é um exercício de narrativa do tipo
"nada é o que parece" em seu mais alto nível, com uma reviravolta
alucinante. Quem disser que "eu já sabia" está mentindo – pura e
simplesmente.
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Como nos filmes O Segredo da Cabana e Don’t Blink, o
que aguarda o espectador é uma reviravolta de desconstrução gnóstica.
E essa desconstrução envolve a descoberta de que a caneca de
chocolate quente oferecida para as crianças tem sedativos e que o “doutor” na
verdade são várias figuras vestidas com trajes assépticos laboratoriais e
carregando bastões de choque (teasers) para imobilizar crianças que
eventualmente não tivessem tomado o chocolate sedante. E também a descoberta de
que todos os adultos, inclusive a polícia local, estão envolvidos em algum tipo
de conspiração. Sendo a principal: esconder das crianças de que tudo ao redor
não passa de um “constructo”. E de que, inclusive, a memória de que eles
estiveram lá será apagada.
Como sempre, a dor de um adulto deu origem a um projeto de ficção
científica: a perda de um filho. Na verdade, todos os pais que perderam seus
filhos enviam suas “réplicas” (seres híbridos, não são máquinas nem humanos,
nem vivos, nem mortos) – na verdade, parecem ter contratado um serviço muito
além de um acampamento de verão.
O acampamento de verão se chama Almar, e a bandeira diz
"venha para crescer", o que é um pouco literal demais. Essas crianças
não conseguem crescer fisicamente sozinhas, então todo verão elas são enviadas
para lá para que possam apagar suas memórias e operá-las. Com a chegada da
adolescência, as crianças crescem um pouco mais. E o acampamento é substituído
por uma viagem universitária, que tem o mesmo propósito.
A crianças descobrem o segredo da “programação da Matrix” – os algoritmos
apresentarão uma pequena falha catastrófica, fazendo as crianças híbridas não
mais acreditarem em adultos. E farão justiça com as próprias mãos, em um tipo
de slasher invertido.
Como um bom conto gnóstico, Marshmallow é sobre uma conspiração sobre memória e esquecimento. É uma mensagem para as crianças: não confie em eventos que têm adultos como monitores. Eles querem nada mais do que perpetuar o esquecimento que faz a sociedade funcionar.
Ficha Técnica |
Título: Marshmallow |
Diretor: Daniel DelPurgatorio |
Roteiro: Andy Greskoviak |
Elenco: Corbin Bernsen, Giorgia
Whimgham, Alysia Reiner |
Produção: Hemlock Circle Productions |
Distribuição: Hemlock Circle Productions |
Ano: 2025 |
País: EUA |