quinta-feira, julho 03, 2025

A desconstrução gnóstica e metalinguística de 'Marshmallow'


À primeira vista o filme “Marshmallow” (2025) parece mais do mesmo, com um toque nostálgico dos filmes da chamada “Espantomania” dos anos 1980:  uma história de terror em um acampamento de verão sinistro em que crianças e monitores se tornam alvos de um slasher sobrenatural. Mas o filme se transforma em outra coisa, seguindo a desconstrução metalinguística e gnóstica da realidade na esteira de produções como “O Segredo da Cabana” (2011) e “Don’t Blink” (2014). Mas também desconstrói esse próprio subgênero do terror: por que Hollywood é tão obcecada por histórias de jovens em acampamentos de verão se tão poucas famílias na América põem seus filhos nesse tipo de programa de férias? E a desconstrução de “Marshmallow” nos responde: porque são histórias que cumprem as funções propagandística e ideológica para América irradiar para todo o planeta.

A cultura pop adora histórias em torno dos chamados “acampamentos de verão”.  É para onde as crianças iriam todos os anos para fazer amigos, encontrar seu irmão gêmeo perdido ou até mesmo escapar de um slasher que surge, do nada, da floresta querendo massacrar campistas e monitores. Pelo menos é isso que o cinema e audiovisual hollywoodiano quer nos fazer acreditar.

O único problema é que essa obsessão por histórias de campos de verão está apenas na indústria do entretenimento – para o americano médio isso nunca aconteceu: uma família que passaria o ano economizando para enviar seus filhos para um acampamento no próximo verão. Preocupada com o crescimento pessoal de seus filhos, suas habilidades sociais e um senso de comunidade entre campistas e equipe.

Na verdade, poucas crianças participam de uma tradição que na realidade foi iniciada pelas elites. Como revela Leslie Paris, professora associada da Universidade da Colúmbia Britânica e autora do livro Children's Nature: The Rise of the American Summer Camp.

Segundo ela, eles estavam preocupados com seus filhos que, para eles, não tinham aventuras ao ar livre o suficiente e com o tipo de experiências masculinas que precisariam para se tornarem os líderes da nação para a próxima geração. Eles estavam preocupados com os efeitos da urbanização e sentiam nostalgia de uma época em que mais meninos haviam crescido em áreas rurais.



Se tão poucas crianças na América participam de experiências assim, por que histórias de acampamentos de verão têm uma influência tão duradoura na cultura pop? Primeiramente, porque a América adora irradiar para o planeta uma imagem democrática e popular de si mesma – terra de oportunidades acessíveis a todos.

Para além dessa função propagandística, há uma outra função, ideológica, disciplinar: dar uma experiência de segunda mão para as massas (“e se você estivesse em um campo desses?...”), para mantê-las na linha e disciplinadas sobre histórias de hierarquias, respeito a chefes e monitores. Para se tornar “popular” e, eventualmente, sobreviver a algum serial killer que apareça.  

Quanto mais a sociedade americana (e os países submetidos ao Império) se tornou politicamente convulsionada, mais as histórias sobre campos de verão migraram para o popular gênero terror. Principalmente a partir dos anos 1980, com a onda de filmes da “Espantomania” com seus “Fred Kruggers” e “Jasons” com machado e lâminas cortantes nas mãos.

À primeira vista o filme Marshmallow (2025) parece mais do mesmo, com um toque nostálgico como se quisesse retornar aos anos 1980:  uma história de terror em um acampamento de verão sinistro em que crianças e monitores se tornam alvos de um slasher sobrenatural.

A estreia de Daniel DelPurgatorio , Marshmallow, conta uma história de amadurecimento:  acreditando que o acampamento de verão fará bem a todos depois de um evento familiar traumático, os pais decidem deixar seu pequeno filho chamado Morgan no Acampamento Almar, aonde as crianças "vêm para crescer".

Claro que crescerá em meio a uma história assustadora quando ouve a história do "Doutor", um cirurgião morador local que enlouqueceu, assassinando a esposa e os dois filhos e os costurou para formar a família perfeita. Tarde da noite, Morgan acredita ter visto o Doutor vagando do lado de fora de sua cabana. Mas, como um garoto assustado que sofre de pesadelos, ninguém acredita nele. Será que é tudo coisa da cabeça de Morgan ou existe mesmo um louco por aí, vagando pela floresta?

Mas Marshmallow não é um filme de terror comum. Assim como O Segredo da Cabana (2011) e Don’t Blink (2014), filmes que desconstruíram metalinguisticamente o subgênero do terror da cabana remota na floresta, Marshmallow desconstrói aquelas duas funções do imaginário dos acampamentos de verão: propagandística e ideológica.



Descrever como o filme descontrói esse subgênero seria incorrer num spoiler imperdoável. Mas, ao seu jeito, é também uma história de crescimento de um jovem: na medida em que as crianças estão desaparecendo, os monitores adultos se demonstram cada vez menos confiáveis – é o duro ritual de passagem. Descobrir que os adultos não são modelos de maturidade e descobrir que ele só pode confiar em si mesmo e nas amizades com outras crianças.

Marshmallow é como se de repente a trupe infantil dos Goonies fosse ao Campo Almar e tivesse que se confrontar com um terror maluco metalinguístico.

O timing do filme chama a atenção pela coragem: até quase a metade parece que estamos dentro de um terror nostálgico em torno de crianças inocentes, monitores assim nem tanto e um drama moral de punições. Parece até que o diretor quer nos desmotivar, que nos viremos para ir embora.

Mas, garanto: vale à pena esperar as coisas ficarem cada vez mais estranhas.

O Filme

Partindo de clichês de terror consagrados, este filme reinventa o tema do "acampamento de verão" reunindo um grupo de crianças, os monitores estereotipados e sexualizados do acampamento e, claro, uma história de medo contada à noite, em torno da fogueira, que se torna muito real.

Abrindo com uma sequência de sonho lúcido verdadeiramente horrível, somos apresentados a Morgan (Kue Lawrence). Uma mudança recente de casa deixou o desajeitado Morgan em um lugar estranho e com dificuldades para se adaptar ao novo ambiente. Há bullying e provocações constantes na vizinhança por parte das crianças maiores, e é evidente que Morgan está passando por momentos difíceis. Conhecemos sua família, incluindo seu incentivador, o avô Roy (Corbin Bernsen). Após uma tragédia familiar, os pais decidem enviar o jovem Morgan para um acampamento de verão, onde ele poderá fazer amigos e talvez superar sua timidez.

Fica bem claro no início do filme que Morgan tem um sério problema onírico com água e, claro, uma grande parte das atividades do acampamento de verão envolve passeios de barco, natação, pesca etc. Quando Morgan pede para ser excluído de tais eventos, os valentões se mostram novamente, e é mais ou menos nesse ponto que o filme dá uma guinada bizarra e nada menos que incrível para a insanidade.



Durante uma das reuniões noturnas, a história obrigatória da fogueira é contada, sobre um médico que construiu um laboratório no próprio terreno onde agora se encontravam, onde coisas horríveis aconteceram e, caso alguma criança se afaste de sua cabana após o apagamento das luzes, corre o risco de encontrar o médico que, segundo rumores, vaga pela floresta em busca de vítimas.

Está evidente que a história foi inventada pelos próprios monitores para manter as crianças obedientes e disciplinadas. Como um conto sobre o bicho papão ou o homem do saco.

O uso da nostalgia confere a este filme uma forte pegada de It e Stand by Me, de Stephen King, misturada com uma pitada de Stranger Things.

E então o médico aparece. E as coisas começam a sair dos trilhos dos clichês, ficando mais estranhas.

A desconstrução gnóstica – Alerta de Spoilers à frente

Inteligentemente escrito, com grande atuação das crianças e habilmente filmado, Marshmallow é um exercício de narrativa do tipo "nada é o que parece" em seu mais alto nível, com uma reviravolta alucinante. Quem disser que "eu já sabia" está mentindo – pura e simplesmente.



Como nos filmes O Segredo da Cabana e Don’t Blink, o que aguarda o espectador é uma reviravolta de desconstrução gnóstica.

E essa desconstrução envolve a descoberta de que a caneca de chocolate quente oferecida para as crianças tem sedativos e que o “doutor” na verdade são várias figuras vestidas com trajes assépticos laboratoriais e carregando bastões de choque (teasers) para imobilizar crianças que eventualmente não tivessem tomado o chocolate sedante. E também a descoberta de que todos os adultos, inclusive a polícia local, estão envolvidos em algum tipo de conspiração. Sendo a principal: esconder das crianças de que tudo ao redor não passa de um “constructo”. E de que, inclusive, a memória de que eles estiveram lá será apagada.

Como sempre, a dor de um adulto deu origem a um projeto de ficção científica: a perda de um filho. Na verdade, todos os pais que perderam seus filhos enviam suas “réplicas” (seres híbridos, não são máquinas nem humanos, nem vivos, nem mortos) – na verdade, parecem ter contratado um serviço muito além de um acampamento de verão.

O acampamento de verão se chama Almar, e a bandeira diz "venha para crescer", o que é um pouco literal demais. Essas crianças não conseguem crescer fisicamente sozinhas, então todo verão elas são enviadas para lá para que possam apagar suas memórias e operá-las. Com a chegada da adolescência, as crianças crescem um pouco mais. E o acampamento é substituído por uma viagem universitária, que tem o mesmo propósito. 

A crianças descobrem o segredo da “programação da Matrix” – os algoritmos apresentarão uma pequena falha catastrófica, fazendo as crianças híbridas não mais acreditarem em adultos. E farão justiça com as próprias mãos, em um tipo de slasher invertido.

Como um bom conto gnóstico, Marshmallow é sobre uma conspiração sobre memória e esquecimento. É uma mensagem para as crianças: não confie em eventos que têm adultos como monitores. Eles querem nada mais do que perpetuar o esquecimento que faz a sociedade funcionar.


 

Ficha Técnica

Título:  Marshmallow

Diretor: Daniel DelPurgatorio

Roteiro: Andy Greskoviak

Elenco: Corbin Bernsen, Giorgia Whimgham, Alysia Reiner

Produção: Hemlock Circle Productions

Distribuição: Hemlock Circle Productions

Ano: 2025

País: EUA

 

 

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