quinta-feira, fevereiro 18, 2016
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Uma desastrada estratégia de gestão de crise?Ou um exemplo daquilo que o pai das Relações
Públicas, Edward Bernays, chamava de “técnica indireta”? O fato é que o
comercial da Samarco "É sempre bom olhar para todos os lados" veiculado em horário nobre na TV (que a revista “Meio & Mensagem” chama elogiosamente de “prestação de contas” das medidas de
controle de danos ambientais) revoltou muitos internautas. Mas como diria Nick
Naylor (o relações públicas do Tabaco no filme “Obrigado Por Fumar”) “Eu não
quero convencer você, mas eles!”, diz apontando para as pessoas anônimas que
caminhavam ao redor – a Opinião Pública. O comercial da Samarco é uma aula sobre
todas as táticas de propaganda que envolvem as chamadas "técnicas indiretas": naturalizações, descontextualizações,
inversões de hierarquia e, no final, a cereja do bolo: a canastrice da
linguagem audiovisual.
Sobrinho de Freud
e considerado o pioneiro das técnicas de relações públicas, Edward Bernays no
seu livro Crystallizing Public
Opinion (1923) nos oferece um exemplo que abriria a nova era das chamadas
“técnicas indiretas” de manipulação da opinião pública: Os proprietários de um
decadente hotel consultam um conselho de relações públicas. Eles perguntam como
melhorar o prestígio do hotel e incrementar os seus negócios.
Em tempos menos sofisticados, a
resposta poderia ser contratar um novo chefe de cozinha, melhorar o
encanamento, pintar os quartos, ou instalar um lustre cristalino no saguão de
entrada. Mas a técnica dos relações públicas é mais indireta. Eles propõem a
celebração do trigésimo aniversário do hotel. Um comitê é formado, incluindo
proeminentes banqueiros, a matrona líder da alta sociedade, um advogado famoso,
um pastor influente e um ‘evento’ é planejado (digo, um banquete) para chamar a
atenção dos distintos serviços oferecidos pelo hotel à comunidade.
A celebração é realizada, são
tiradas fotos, a ocasião é amplamente informada e o objetivo é alcançado.
Bernays criou esse paradigma que
é seguido até hoje, como podemos ver no inacreditável comercial em TV aberta
onde a empresa mineradora Samarco (empresa controlada pela brasileira Vale e pela anglo-australiana BHP Billiton) mostra as ações que visam minimizar os danos
causados pelo rompimento da barragem de Mariana/MG que provocou o maior
desastre ambiental brasileiro.
A mentalidade
invertida
O comercial estreou no horário
mais caro da TV brasileira, no intervalo do Fantástico da TV Globo, e vem sendo
apresentado também nos intervalos de telejornais do horário nobre –
surpreendente para uma empresa que teve bens bloqueados pela Justiça e adia
pagamentos de indenizações alegando que o seguro da empresa não é o suficiente
para arcar os custos.
Para além do evidente exemplo do
chamado conflito de interesse (Samarco patrocina telejornais que supostamente
deveriam ser imparciais sobre notícias que responsabilizam a empresa), o
comercial da Samarco é mais um irônico exemplo dessa eufemística “estratégia
indireta” que anima as táticas de engenharia de opinião pública.
Por exemplo, a revista Meio & Mensagem chama o comercial de “prestação de contas da Samarco”, num sintoma da
mentalidade invertida das estratégias indiretas de RP: se as medidas de
controle de danos são reais deveriam ser noticiados como informações nas pautas
de telejornais, e não como storytellings nos intervalos comerciais pagos.
A imagem precede a informação, o
simulacro se antecipa à realidade numa surpreende inversão platônica em pleno
horário nobre.
Inversão da
hierarquia da empresa
Nesse mundo invertido do
gerenciamento de crise nas Relações Públicas é surpreendente como também é
invertida a hierarquia organizacional da empresa – se a crise foi provocada
pelos CEOs, diretores, presidentes etc. a partir de decisões alimentadas por
dados de planilhas Excel em reuniões fechadas, nada mais lógico do que
esconde-los.
Inverta tudo. Ao invés de gente
engravatada, mostre em um comercial os funcionários consternados, comovidos, alguns
com sentimento de culpa (“mal conseguia trabalhar direito”, fala um funcionário
no vídeo), penalizados, preocupados com gatinhos (um patético signo de uma
suposta preocupação ambiental da empresa) e se apresentando de braços abertos –
e outros, no linguajar corporativo, dizendo que estão “vestindo a camisa”.
Incautos funcionários são colocados como escudos numa filosofia de “é
sempre bom olhar para todos os lados”. Em um momento desse inacreditável
comercial, um funcionário fala desconsolado em “minimizar os danos que a gente
causou!”.
“A gente” é uma mágica expressão de RP que num só golpe esconde
hierarquias corporativas, centros superiores de decisão de gestores e CEOs,
colocando o rabo de foguete no nível do “chão de fábrica” dos catatônicos
funcionários com suas testas franzidas e olhares suplicantes por desculpas.
Como se a Samarco se desculpasse tomando como refém seus próprios
funcionários ao afirmar que a empresa gera seis empregos diretos, sugerindo que
retalhar a empresa prejudicará a vida dos seus abnegados funcionários.
Assim como Bernays achava que mais importante para incrementar os
negócios do hotel eram fotos nos jornais do que contratar um bom chefe de
cozinha, também para a gestão de crise da Samarco é melhor mostrar histórias
“humanas” de seus funcionários em vídeos publicitários do que implementar
medidas reais de impacto que se transformem naturalmente em notícias.
Naturalização e descontextualização
Essa estratégia indireta de RP também produz dois efeitos propagandísticos:
naturalizar e descontextualizar crises. Funcionários dizem no comercial que “de
repente” acordaram com uma “missão de acolher as pessoas”. Mas como “de
repente”, cara pálida! Em poucos segundos a “prestação de contas” da Samarco
quer apagar as notícias de que tudo foi uma tragédia anunciada por técnicos
especialistas na área de mineração e situar a catástrofe no campo dos
terremotos, furacões ou quedas de meteoros.
Diante dos misteriosos desígnios da Natureza e de Deus restaria somente
a resposta humana da solidariedade e compaixão – esse é o objetivo ideológico
profundo de todo bom storytelling: simplificar acontecimentos social e
politicamente complexos em narrativas pessoais melodramáticas e canastronas.
Tudo vira uma questão de esforço individual, e não mais de vontade política
coletiva.
A canastrice como força de propaganda
Um som de piano ao fundo com notas cromáticas que vai em crescendo,
acrescentando o som das cordas e o crash de um prato de bateria quando
funcionários falam em “desejando estar juntas” e “vestir a camisa”.
Nada mais over, melodramático e canastrão do que essa combinação de uma
trilha musical ao estilo do pianista kitsch Richard Clayderman como moldura de relatos de
pessoas “emocionadas” com enquadramentos de câmeras meticulosamente assimétricos
para passar uma atmosfera de declarações espontâneas.
Estamos na linguagem da canastrice: a fotografia em tons pastéis
(figurinos e os sets em tons claros), com uma paleta de cores e tonalidade que
criam uma atmosfera que lembra comerciais de produtos matinais e de iogurtes
probióticos. Tudo tão previsível que se torna caricato, exageradamente
previsível e saturado. Canastrão, portanto.
Em postagem anterior discutíamos esse elemento da canastrice na
propaganda contemporânea: por que
ninguém percebe a evidente natureza ficcional do vídeo, feito com recursos
estéticos manjadíssimos do pior do cinema e TV? A opinião pública não percebe a
natureza “fake” ou “forçada” destes pseudoeventos porque própria estrutura de
percepção do real já foi alterada anteriormente por décadas de cultura pop:
tomar o real não a partir dele mesmo, mas a partir dos seus simulacros – sobre
a canastrice dos dispositivos da propaganda clique aqui.
Paradoxalmente o exagerado eufemismo das estratégias indiretas de RP é encoberto pela canastrice da linguagem da propaganda. Nossa percepção está tão
saturada pela linguagem publicitária e pelos filmes hollywoodianos que quando
vemos uma “prestação de contas” da Samarco em nessa linguagem over e saturada
não nos damos mais conta da natureza fake, forçada e das expressões eufemistas
– “a gente”, “de repente”, “tínhamos uma forma diferente de trabalhar” etc.
Cinegnose participa do programa Poros da Comunicação na FAPCOM
Este humilde blogueiro participou da edição de número seis do programa “Poros da Comunicação” no canal do YouTube TV FAPCOM, cujo tema foi “Tecnologia e o Sagrado: um novo obscurantismo?
Esse humilde blogueiro participou da 9a. Fatecnologia na Faculdade de Tecnologia de São Caetano do Sul (SP) em 11/05 onde discutiu os seguintes temas: cinema gnóstico; Gnosticismo nas ciências e nos jogos digitais; As mito-narrativas gnósticas e as transformações da Jornada do Herói nas HQs e no Cinema; As semióticas das narrativas como ferramentas de produção de roteiros.
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"Cinema Secreto: Cinegnose" é um Blog dedicado à divulgação e discussões sobre pesquisas e insights em torno das relações entre Gnosticismo, Sincromisticismo, Semiótica e Psicanálise com Cinema e cultura pop.
A lista atualizada dos filmes gnósticos do Blog
No Oitavo Aniversário o Cinegnose atualiza lista com 101 filmes: CosmoGnósticos, PsicoGnósticos, TecnoGnósticos, AstroGnósticos e CronoGnósticos.
Esse humilde blogueiro participou do Hangout Gnóstico da Sociedade Gnóstica Internacional de Curitiba (PR) em 03/03 desse ano onde pude descrever a trajetória do blog "Cinema Secreto: Cinegnose" e a sua contribuição no campo da pesquisa das conexões entre Cinema e Gnosticismo.
Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
Neste trabalho analiso a produção cinematográfica norte-americana (1995 a 2005) onde é marcante a recorrência de elementos temáticos inspirados nas narrativas míticas do Gnosticismo.>>> Leia mais>>>
"O Caos Semiótico"
Composto por seis capítulos, o livro é estruturado em duas partes distintas: a primeira parte a “Psicanálise da Comunicação” e, a segunda, “Da Semiótica ao Pós-Moderno >>>>> Leia mais>>>