terça-feira, julho 01, 2025

Caso Juliana Marins: "Media Life" e o herói da vida intensa das redes sociais

 


O jornalismo atual não está apenas atrás de notícias. Mas, principalmente, em busca de personagens e boas histórias. E o caso da morte trágica da jovem Juliana Marins (escorregou para um abismo durante uma trilha no vulcão Monte Rinjani, na ilha de Lombok, na Indonésia) que praticamente rivalizou com o espaço midiático da escalada da crise no Oriente Médio, é um exemplo flagrante. A maneira como a mídia deu forma e repercute os desdobramentos da tragédia confirma as teses radicais de Mark Deuze sobre o zeitgeist do século XXI: a “media life” – fenômeno em que os acontecimentos nascem e crescem dentro do ecossistema midiático das redes sociais e retroalimentados pelas mídias tradicionais. O fenômeno do turismo de aventura transforma a geografia em cenários instagramáveis e seus protagonistas em “heróis da vida intensa” – novos ascetas mundanos que oferecem seu sacrifício não a Deus, mas aos “likes” e engajamentos nas redes sociais. Criando uma perigosa normalização com heróis que ignoram riscos e perigos.

A mídia está para nós assim como o peixe está para a água. Sem nossos dispositivos nos sentimos como peixes fora da água. Não vivemos mais com as mídias, como era na cultura das celebridades do século XX. Agora, vivemos nas mídias. Nossas relações com as mídias se tornaram onipresentes, universais. Gostemos ou não, todos os aspectos de nossas vidas têm lugar nos meios de comunicação, principalmente no atual momento marcado pela onipresença das redes sociais e comunicadores instantâneos.

Esse é o diagnóstico que nos apresenta o pesquisador Mark Deuze, a hipótese da “media life”: “nós somos zumbis no sentido em que sucumbimos acéfalos aos chamados dos nossos aparelhos; somos zumbis porque usamos as mídias que apagam nossas distinções como indivíduos; gravamos e remixamos a nós mesmos e uns aos outros com as novas tecnologias” – DEUZE, Mark, “Viver Como um Zumbi na Mídia”, MATRIzes, n. 2, jul/dez, 2013.

A maneira como a grande mídia (acompanhada pela chamada “mídia alternativa” da blogosfera) vem dando forma e repercutindo a morte trágica da brasileira Juliana Marins (escorregou durante uma trilha no vulcão Monte Rinjani, na ilha de Lombok, na Indonésia) comprova essas teses radicais de Deuze: uma tragédia iniciada nas mídias, acompanhada através das mídias e repercutida em todas as mídias.

É de conhecimento público que o Parque Nacional da Indonésia tem histórico acidentado e fatal: oito pessoas morreram e 180 ficaram feridas em acidentes nos últimos cinco anos. Além de não oferecer qualquer infraestrutura para o montanhismo. Sequer o país conta com um Corpo de Bombeiros. Operadores desse tipo de passeio oferecem seus serviços pelas ruas, para turistas maravilhados pelas paisagens naturais romantizadas por pérolas de pensamento new age combinado com o fenômeno de lugares do planeta que se tornam “instagramáveis”. Normalizando os riscos das aventuras.



 Costuma-se citar uma justificativa clássica do montanhista britânico George Mallory para explicar a existência desse turismo de aventura – ironicamente, Mallory morreu em 1924, tentando escalar Monte Everest. Questionado sobre o porquê colocar a vida tão em risco, ele simplesmente respondeu "porque a montanha está lá!".

Desconfio que essa justificativa do célebre montanhista do século passado não se aplica mais à cultura media life do século XXI. Na resposta de Mallory estava latente o respeito à alteridade, à sua contemplação e, por isso, o desejo de conquistá-la. Somente desejamos conquistar aquilo que é inteiramente outro, desafiador.

  O que já não é mais o caso. Não se trata mais da ambição de vencer os obstáculos como afirmação épica humana sobre a natureza, mas se trata daquilo que Michel Lacroix chama de “geografia deturpada”: percorre-se o mundo não em busca da alteridade ou contemplação, mas numa busca predatória e devoradora por emoções. E transformamos o produto dessa busca em imagens para serem imediatamente postadas em redes sociais. O turista transforma-se numa espécie de “herói da vida intensa”. Para as imagens serem organizadas e editadas como fossem parte da crônica exemplar de uma “vida intensa” – Leia LACROIX, Michel. O Culto da Emoção, José Olympo, 2006.

O Meio é a Mensagem 

Se o meio é a mensagem, então Instagram e demais redes sociais impuseram sua mensagem para o mundo: o ciberespaço hackeou os espaços reais (a geografia), transformando-os em cenários para a construção da narrativa da vida intensa através da qual o jovem se performa.

Dessa maneira, o caso Juliana Marins é um fenômeno clássico da media life: uma jovem publicitária, cheia de vida, alegre e otimista que encontrou na aventura dos mochilões combinada com a instagramatização o significante, o suporte para expressar a sua personalidade e celebração da vida. O ponto de partida pode ser psíquico, mas a sua expressão é tecnológica, através de uma configuração midiática que criou uma nova cultura – a media life.



É sintomático que um incidente trágico de origem midiática seja posteriormente retroalimentado pela grande mídia, transformando-se naquilo que se chama “suíte” em jornalismo: a sequência de reportagens que exploram os desdobramentos de um fato que foi notícia na edição anterior.

A “suíte Juliana” chegou a rivalizar em espaço no noticiário com a escalada no conflito do Oriente Médio entre Israel e Irã: o suspense das buscas de Juliana quando acreditava-se que estava viva à espera de resgate, as falsas imagens de drones nas redes sobre o suposto encontro da vítima ainda viva, a denúncia do descaso da autópsia do corpo da jovem e do seu traslado pelo voo da Emirates, detalhes sobre a suposta indiferença do guia (teria deixado Juliana sozinha para sair para fumar), a possível falta de ação do governo indonésio e assim por diante numa escalada cada vez mais especulativa.

Uma espiral especulativa que tem uma função semiótica importante: ocultar o aspecto perverso da deturpação geográfica da cultura media life ao criar o suspense da investigação de supostos descasos em relação aos pretensos direitos de um turista estrangeiro teria para exercer sua legitima vontade de gozar a vida em paz e segurança.

A media life cria uma estranha normalização em relação àquilo que deveria ser percebido como a alteridade: “agências de turismo” (na verdade guias espertos que farejam turistas estrangeiros incautos) que vendem “pacotes” que têm tudo para dar errado. Mas as paradisíacas, exóticas e idílicas paisagens ou lugares instagramáveis acabam normalizando anomalias – ora, no final dá tudo certo... por que ser pessimista em lugares tão maravilhosos que transmitem tanta energia...



Esta espiral especulativa midiática (a suíte) se desdobra nos pedidos da família da vítima por Justiça pelo “caos e absurdo”, da assistência falha do guia do “pacote turístico”, além da ausência do esclarecimento da autópsia no hospital de Bali sobre a causa e o momento exato da morte e o acionamento da Defensoria Pública da União (DPU-RJ), que imediatamente fez o pedido na Justiça Federal solicitando uma nova autópsia no Brasil.

É preciso encontrar uma contraprova no real que racionalize um evento midiático assumido por Juliana pela normalização dessa sensibilidade media life.

Uma sensibilidade tão pervasiva que até o devastador sentimento de luto deixa de ser íntimo ou vivenciado no círculo familiar para ser midiatizado, publicizado. Como, por exemplo, a reação do pai quando soube, em meio ao voo para Indonésia, da confirmação da morte de Juliana: publica no Instagram uma foto da filha ao lado dos versos da canção “Pedaço de Mim”, de Chico Buarque.

Ou as séries de postagens do pai nas redes sociais em homenagem à Juliana celebrando o “viver intensamente” – a elaboração midiática do “herói da vida intensa” como se refere Michel Lacroix.

Esse novo heroísmo em buscar “experiências intensas” também está inserido em um quadro geral do “declínio do homem público”, como explica Richard Sennett na paradoxal experiência do “ascetismo mundano”.

O “ascetismo mundano” seria a deterioração paródica da ética protestante tal qual descrita por Weber. Enquanto na ética cristã o ascetismo de um monge é um impulso voltado para o interior (“um monge que se flagela a si mesmo diante de Deus, na privacidade da sua cela, não pensa na sua aparência diante dos outros” – SENNETT, Richard. O Declínio do Homem Público. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 406.), ao contrário, na ética protestante, desde o início, haveria um componente mundano no ascetismo pela necessidade de demonstrar não somente a Deus, mas aos outros a sua renúncia e sacrifício (no caso em análise, mochilões, busca de hotéis mais baratos, alimentar-se somente de fast food etc.), provando a todos ser um merecedor das “graças divinas” midiática – likes, engajamentos etc.

Isso se insere na cultura narcísica do individualismo neoliberal atual, como um impulso autoconfessional - a performatização do eu diante dos outros nas redes sociais.




O ritual sacrificial dos jovens

Além desse sintoma social da hegemonia das redes sociais na vida pública, a suíte do caso Juliana Marins também guarda uma função sacrificial tão antiga quanto o tempo – os rituais de sacrifícios humanos como forma de impor o medo e o terror aos jovens, garantindo a coesão social das novas gerações.

Rituais de sacrifícios humanos são as mais antigas formas de idolatrar e se comunicar com divindades. Forma mágica primitiva uma forma de submissão e conformismo através da destruição do indivíduo jovem - as vítimas, geralmente virgens, podiam ser enforcadas, afogadas, queimadas vivas, lançadas de penhascos etc. Quanto pior a morte, melhor... 

Tudo isso para impor o medo e terror aos jovens como ritual de passagem ao mundo adulto da Ordem e Tradição míticas.

Com a religião essas formas pagãs ou foram reprimidas ou sublimadas como no ritual do sangue e do corpo de Cristo convertidos em hóstia e vinho. E agora revivem no cinema e audiovisual atual na indústria do entretenimento, por exemplo, nos filmes de terror Slash.

Ou numa suíte jornalística como essa do caso Juliana Marins: uma jovem bonita, cheia de vida, livre, encontra a morte como uma espécie de castigo exemplar para manter as massas na linha, disciplinadas: quem deseja demais da vida é punido. Quebra-da-ordem-e-retorno-à-ordem: quem quebra a ordem deve ser exemplarmente punido. Afinal, a felicidade demais alheia incomoda o público, prisioneiro de vidas insípidas.

É o momento em que o jornalismo de personagens (a busca não de notícias, mas de boas histórias) cumpre uma função social antiquíssima, sacrificial.

E, agora no século XXI, a nova forma de ritual sacrificial é o dos heróis da vida intensa dos dispositivos móveis das redes sociais. 


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