sexta-feira, janeiro 24, 2014

Transmissão ao vivo e o declínio da vida pública

As críticas do jurista Dalmo Dallari de que a experiência da transmissão ao vivo das sessões do Supremo Tribunal Federal foram nefastas por gerar “vedetismo e deslumbramento” entre os ministros, retirando a sobriedade das decisões, vai de encontro a um fantasma que assombra as ciências sociais: o declínio da vida pública, ameaçada pelas supostas “experiências imediatas” que as imagens transmitidas ao vivo ou em tempo real poderiam proporcionar. A ideologia de uma suposta “transparência” das decisões do Estado por meio das imagens televisivas seria a ponta do iceberg de um processo mais geral de crise esfera pública: se a vida pública foi o auge de um processo civilizatório onde graças as mediações (papéis sociais e a cultura do escrito e do impresso) não sobrecarregaríamos o outro com o eu de alguém, agora numa suposta sociedade onde as imagens se confundem com informação seríamos sufocados pela tirania da intimidade alheia.

Certa vez o comentarista político Robert Lincoln O’Brien fez uma curiosa observação em 1904 na revista Atlantic Monthly: “Não é raro nas cabines de datilografia do Capitólio, em Washington, ver congressistas ditando cartas e gesticulando vigorosamente, como se os métodos retóricos de persuasão  pudessem ser transmitidos para a página impressa”. Atento observador da vida política norte-americana, O’Brien testemunhou nessa insólita passagem o choque de dois imaginários ligados a duas mídias distintas: a tradição da escrita e do impresso de um lado e a obsessão pela impressão cênica que a fotografia e o cinema reforçaram na vida pública.

As críticas do jurista Dalmo Dallari (clique aqui para ler), aproximando a experiência da transmissão ao vivo televisiva das sessões do Supremo Tribunal Federal com o “vedetismo e deslumbramento” dos seus integrantes que prejudicariam a “impessoalidade e serenidade das decisões”, foram na jugular dessa questão que assombra muitos estudiosos das ciências sociais: a vida pública, estrutura de sociabilidade onde a escrita e o impresso ajudaram a solidificá-la, estaria ameaçada com as experiências imediatas (o “ao vivo” ou “em tempo real”) proporcionadas pelas imagens audiovisuais e eletrônicas.


Pesquisadores como Daniel Boorstin, Richard Sennett, Christopher Lasch, Umberto Eco e, mais recentemente, Neal Gabler e Jean Baudrillard já descreveram um cenário muito semelhante às críticas de Dallari de como as transmissões ao vivo (mais precisamente, a consciência dos personagens de um evento sobre a presença de meios técnicos de captação e transmissão de imagens) alteram o comportamento dos ministros com “rompantes de destempero emocionais e verbais”.

Dallari fala em “interferência nefasta” e “desvios emocionais”, mas perde de vista um aspecto mais profundo que os pesquisadores acima observaram: a presença de meios técnicos de transmissão não apenas afeta psicologicamente, mas cria uma espécie de autoconsciência, como se os personagens vissem a si próprios como atores onde cada gesto, esgar de olhos, levantamento de sobrancelhas e tom de voz devessem ser calculados visando determinado efeito. Os efeitos não são meramente comportamentais ou inconscientes, mas principalmente cognitivos e de autopercepção.

Essa judicialização da política em andamento no Brasil (o País é o único do mundo em que sessões do Tribunal Superior são transmitidas ao vivo) apenas amplia um fenômeno mais amplo que seria o próprio declínio geral da vida pública pela hegemonia da sociedade do espetáculo baseada num modelo de sociabilidade que Christopher Lasch denominava como “narcisista” onde se substituiria a experiência mediada da informação pela “experiência imediata” da imagem - leia LASCH, Christopher. A Cultura do Narcisismo. R. de Janeiro: Imago, 1983.

Os diálogos ásperos e exaltados entre os ministros do STF que fizeram Dallari falar em “transmissões ao vivo degradantes e desmoralizantes para o STF”, são a ponta do iceberg de um processo social mais amplo de mudança estrutural da esfera pública – a passagem de uma sociabilidade baseada na cultura escrita e impressa para a sociedade do espetáculo atual baseada na experiência imediata da transmissão ao vivo e das redes de comunicação em tempo real.

Para entendermos esse movimento que está colocando em xeque as tradicionais instituições da vida pública, é necessário entender a diferença entre informação e comunicação cuja confusão que fazemos parece ser a base da ilusão da “experiência imediata” criada pela sociedade do espetáculo.

O “êxtase da comunicação”


A imagem não é a realidade,
é o signo da realidade
Muitos argumentos que são mobilizados a favor das transmissões ao vivo do Supremo se apegam na questão da transparência: sem a transmissão não saberíamos como funciona o STF; como saberíamos das chicanas jurídicas que marcaram o julgamento do processo 470?; ou ainda a necessidade de transparência das ações do Estado. A consequência dessa lógica é que o problema então não estaria na transmissão em si, mas a falha de caráter de alguns ministros.

Nesse argumento há um mal entendido sobre a natureza das imagens e, principalmente, das transmissões ao vivo:

(a) a imagem não é a realidade, é o signo da realidade;

(b) de todos os signos, a imagem, principalmente eletrônica e digital, possui uma natureza peculiar: a de ser a simulação de uma presença. Embora o objeto esteja distante e mediado tecnologicamente (câmera, switcher, delay etc.) ele simula estar presente criando a sensação de experiência imediata – técnicas como teleprompter, multimídia, imersões em 3D e realidade virtual acabam reforçando essa ilusão;

(c) a transmissão ainda produziria o chamado “efeito Heisenberg”, como denomina Neal Glaber: efeito secundário onde s mídias não estão na verdade relatando o que as pessoas fazem, ou seja, estão relatando o que as pessoas fazem para obter a atenção da mídia. Em outras palavras, à medida que a vida está sendo vivida cada vez mais para a mídia, esta está cada vez mais cobrindo a si mesma e o seu impacto sobre a vida (sobre esse tema clique aqui).

A sociedade do espetáculo e o seu fascínio pelas imagens viria desse equívoco em ver nelas decalques da realidade, experiências imediatas e “autênticas” porque aparentemente sem mediações e, por isso, transparentes. Desde as imagens dos paparazzis às transmissões dos tribunais, é como que, de repente, nos tornássemos testemunhas oculares da História. É aquilo que o pensador francês Jean Baudrillard chamava de “êxtase da comunicação”.

O declínio da vida pública


Porém, a imagem não é informação e muito menos transparência. A sociedade do espetáculo estaria fazendo profundas alterações na vida pública e suas instituições que historicamente se basearam na cultura do escrito e do impresso. A base de julgamento da chamada opinião pública estaria substituindo a informação simbolicamente mediada pela imagem que supostamente tornaria o mundo transparente, superando a aparente opacidade das letras, palavras e conceitos.

As mídias escritas e impressas trouxeram um importante elemento civilizatório no qual se fundamentou a esfera pública: o texto separou o enunciado da enunciação, o emissor do receptor, tornando o texto autônomo como uma mediação através da qual as ideias seriam discutidas sem a presença persuasiva e sedutora do emissor e sem a identificação apaixonada do receptor.

A vida pública como uma sociabilidade mediada baseou-se numa necessidade simples, como declara Richard Sennett: não sobrecarregar o outro com o eu de alguém. Evitar a sobrecarga da personalidade através de papéis sociais, normas, mídias simbólicas e outros diversos dispositivos de mediação para poupar cada um do inferno pessoal do outro. Evitar a “tirania da intimidade”, nas palavras de Sennett – leia SENNETT, Richard. O Declínio do Homem Público, São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

O funcionamento rotineiro de papéis sociais e normas jurídicas garantiria uma sociabilidade possível, resguardando as idiossincrasias de cada um na esfera privada. Todos esses dispositivos transcritos em textos, livros e outras mediações simbólicas, garantiram em certo período (sécs. XVII e XVIII, segundo Sennett) o auge do funcionamento da esfera pública.

O primeiro duro golpe contra a esfera de mediações públicas foi em 1855 quando, na Exposition Universelle de Paris (a primeira exposição industrial com exposição de fotos), um fotógrafo alemão espantou a multidão ao apresentar duas versões de um mesmo retrato – uma retocada e outra não. Estava inventada a simulação e a autoconsciência por meio das imagens. Foi a base do chamado “efeito Heisenberg”: as imagens deixaram de ser informações, registros objetivos da realidade, para se inserirem  no campo da encenação do eu para os outros.

A vida pública dominada por atores canastrões


Vida pública: atores canastrões
em performances overacting
Mas isso não significa que os papéis e dispositivos públicos desapareceram. Eles agora são reinterpretados pelo princípio da “transparência” e da “autenticidade”. Os papéis agora são encenados em overacting. O exemplo dos eventos transmitidos no julgamento do Mensalão (discussões ríspidas entre Barbosa versus Lewandowsky e Gilmar Mendes versus Barbosa, estrelismos, exibicionismos, acusações grosseiras, trocas de ofensas e diversas performances over para catalisar o foco das câmeras e da opinião pública) é uma amostra da transformação da vida pública, dessa vez no campo do Direito, dispositivo simbólico por excelência da antiga cultura da mídia escrita e impressa.

Da mesma forma na vida pública, profissionais nas mais diversas áreas não podem apenas cumprir de forma competente seus papéis: devem encenar a imagem do homem bem sucedido em ações bem calculadas como vestir-se, falar, ter “inteligência emocional”, atitudes positivas e demais encenações de sucesso como fosse um ator canastrão.

A hegemonia das mídias visuais acabou transformando a vida pública em um palco para as encenações, onde os antigos papéis sociais são agora vividos da forma mais exagerada e mal produzida.

Sob o pretexto de que a sociabilidade deve ser mais transparente e autêntica paradoxalmente a vida torna-se cada vez mais opaca: quanto mais as imagens querem tornar a Política e o Estado supostamente mais transparentes para o cidadão, mais acompanhamos shows de demonstrações de personalidade e de idiossincrasias pessoais; e quanto mais se exige nas relações sociais uma “inteligência emocional”, mais a tirania da intimidade do outro sufoca cada um de nós.

Num exercício irônico de extrapolação, poderíamos imaginar um futuro muito breve onde, tal qual no esporte, os tribunais teriam que se adaptar ao timing televisivo: da mesma forma que o vôlei aboliu a vantagem na contagem de pontos e adotou o tie braker para encurtar os sets e se encaixar nos blocos de programação televisiva, os tribunais acabarão com a “liturgia jurídica” e o ritmo processual para ter um ritmo mais célere e a condenação ser anunciada no horário nobre, no meio do Jornal Nacional – já vimos o início disso com a execução das penas dos condenados do Mensalão ao vivo, em rede nacional, em pleno feriadão da Proclamação da República no ano passado.


Algo como já ocorreu nas modernas igrejas eletrônicas neopentecostais onde a liturgia cristã foi eliminada para, no lugar, adotar o thriller das sessões de descarrego e o frenesi histérico dos fiéis celebrando a teologia da prosperidade.

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