domingo, janeiro 12, 2014

A bomba semiótica da inadimplência

Em 1999 o colunista José Simão bradava em pleno feriado de 7 de setembro: “Inadimplência ou Morte!”. Mas na época a grande mídia fazia vistas grossas à quebradeira de consumidores e empresas na ressaca do Plano Real. Ao contrário, hoje uma suposta onda de inadimplência se converteu numa agenda midiática obsessivamente repercutida a cada imagem aérea mostrada pela TV da Rua 25 de Março lotada de consumidores: uma combinação resultante de uma suposta inflação descontrolada, crédito fácil, juros baixos e falta de educação financeira da população. Combinado com a pauta do “consumo consciente” e “crédito responsável”, o discurso da inadimplência acaba de se transformar na mais recente bomba semiótica. As explosões dessa nova bomba pretendem criar uma percepção de temor e desconfiança que freie o consumo e favoreça a Banca que organiza o jogo econômico.

Fazia uma pesquisa no acervo digital do Jornal Folha de São Paulo para futura postagem (o filme de Kubrick De Olhos Bem Fechados – procurava resenhas sobre o filme na época do lançamento em 1999) e, sem querer, dei de cara com um texto de José Simão intitulado “Inadimplência ou Morte”, texto do dia 07 de setembro daquele ano, feriado da independência nacional. Em um texto impagável, Simão declarava-se “deprecívico” e naquele feriado cívico não haveria parada militar, porque a pátria estava “parada”.

De forma mordaz, José Simão refletia um momento em que o País estava quebrado, jogado aos pés do Fundo Monetário Internacional após a maxidesvalorização do real um ano antes, logo depois da reeleição de Fernando Henrique Cardoso. A taxa Selic era elevadíssima, mais de 30% ao ano, e com inflação anual de 8,94%. Na prática, a desvalorização do real comeu parte da poupança e dos salários.


Os consumidores devem ser salvos
deles mesmos
O reflexo disso era a escalada da inadimplência dos consumidores e a insolvência de empresas, representada pela ironia e trocadilhos do texto de José Simão. Curioso é que pesquisando os veículos de grande imprensa da época, não havia repercussão sobre essa realidade, a não ser em cadernos e veículos especializados. Muito diferente dos últimos anos, mais precisamente após a reeleição de Lula em 2006, em que a grande mídia passou a martelar números de uma suposta inadimplência endêmica produzida, supõe-se, pela combinação de inflação galopante, crédito fácil, juros baixos e falta de educação financeira da população.

Fazendo um paralelo entre o crescimento dos mercados de consumo do início da era do Plano Real a partir de 1997 e o atual crescimento da chamada “nova classe média”, a classe C, é interessante perceber como a grande mídia encarou de forma diferente essas realidades muito parecidas.

Nos anos 1990 Carla Perez do grupo É o Tchan! e Ratinho foram considerados os símbolos da era FHC, objetos de consumo dos chamados “novo-ricos da cultura”, os “bregas e bárbaros” que, graças a estabilidade da moeda após décadas de corrosão inflacionária, entraram no mercado de consumo através da aquisição de TVs e CDs (veja BARROS E SILVA, Fernando, “Bregas e bárbaros são os novos-ricos da cultura” In: Folha de São Paulo, 09/08/1998) . Época da ascensão dos grupos de pagode formados por carecas de terninho, expressando o gosto cultural de uma nova classe média que ascendia por meio do consumo de novos bens tecnológicos. Tal como hoje, naquela época ocorria um boom de consumo.  A diferença é que naquele momento o crescimento do consumo era motivado pelos ganhos reais dos salários devido a estabilidade monetária.  

Os Mamonas Assassinas ironizavam os novos egressos ao mercado de consumo em uma de suas músicas dizendo que “a minha felicidade é um crediário nas Casas Bahia”. Com estabilização, o crediário é facilitado e torna-se mais uma mercadoria anunciada nas TVs prometendo igualmente a realização de todos os sonhos.

Nesse momento em que o brasileiro repentinamente saia de uma cultura inflacionária (onde não tinha a noção de quanto realmente ganhava e qual era o valor real dos produtos, sempre à espera do gatilho salarial do próximo mês que reajustava automaticamente salários) e entrava em uma economia estabilizada, em nenhum momento a grande mídia apresentou qualquer preocupação pedagógica ou educativa em relação ao dinheiro e consumo, tal como faz hoje por meio de ampla agenda. Pelo contrário, é a fase (curta, é verdade, até o fim do Plano Real em 1998) de apologia ao consumo e estímulo aos empréstimos como a prova do sucesso e confiança do brasileiro no Plano Real.

Esse humilde blogueiro lembra bem desse momento. Toda uma geração, habituada que estava com os hábitos de consumo de uma recente cultura inflacionária onde salário e preços cresciam em termos nominais como bola de neve, em pleno Plano Real continuou consumindo da mesma forma de antes. E o resultado dessa ausência de educação financeira não poderia ser pior: sem gatilhos salariais, o salário começava a acabar bem antes do final do mês, criando o efeito vicioso dos empréstimos e cheques pré-datados. Quem não se lembra dessa época onde esse tipo de cheque virou em dado momento uma segunda moeda? Muita gente até ganhava uns trocados imprimindo etiquetas “cheque bom para” feitas em Word ou Corel Draw para serem vendidas a lojistas, a fim de se ter um controle sobre a avalancha de desses cheques no comércio.

O humor de José Simão era uma das poucas vozes na grande mídia que retratava, de uma forma indireta, essa ressaca da estabilidade monetária.

A construção da agenda da inadimplência


Sabemos que a grande mídia vem funcionando nos últimos anos como um verdadeiro partido de oposição. Ao contrário dos partidos políticos oficiais, ela é mais coesa, estruturada e eficiente. Uma prova disso é a articulação e detonação do que chamamos de bombas semióticas: conjunto de artefatos de comunicação que sistematicamente vem sendo detonadas na opinião pública, travestidas de informação através de mídias impressas, digitais ou audiovisuais, cujo objetivo não é a persuasão ou convencimento, mas a criação ondas de choque ou disseminação estilhaços de signos na esfera pública. Bombas cujo alvo não é a razão, mas a emoção.

Nos últimos anos as notícias sobre o aquecimento econômico e a inclusão de milhões de brasileiros dos estratos inferiores da sociedade no mercado de consumo, sistematicamente são acompanhados por notícias sobre o crescimento da inadimplência e o descontrole dos gastos dos brasileiros que, supostamente pela falta de educação financeira, comprometeriam a maior parte dos seus rendimentos. Muito diferente do passado, nos anos subsequente ao lançamento do Plano Real onde o aquecimento do consumo pelos ganhos reais do salário era bem recebido pela grande mídia.

E não só na grande mídia. O tema começa, inclusive, a ser tema de papers acadêmicos especializados que tematizam a expansão do crédito no Brasil versus vulnerabilidade do consumidor (veja SBICCA, Adriana e outros, “Expansão do crédito no Brasil e a vulnerabilidade do consumidor” In: Revista de Economia & Tecnologia, out-dez 2012) ou o apoio de bancos e grandes empresas a publicações como “diálogos Akatu” (do Instituto Akatu), revista  que se define dessa forma: “discussões e mesas-redondas sobre o equilíbrio financeiro, levando em conta a importância da educação e do planejamento no combate ao endividamento e à inadimplência” (veja “Consumo consciente do dinheiro e do crédito”).

A bomba semiótica da inadimplência


Acompanhando a cobertura feita pela grande mídia sobre as vendas no comércio no período de festas e, agora, na época das liquidações, percebe-se um enfoque unificado:

(a) 13o salário veio para pagar dívidas contraídas pelo consumidor ao longo do ano;

(b) Consumidor está cauteloso, preferindo comprar “lembrançinhas” como presentes de Natal;

(c) Números de inadimplência crescem e batem recordes comparando-se com dados de anos anteriores do mesmo período. As notícias sobre a queda de 3,22% da “série histórica” (o termo “histórico” confere um tom de gravidade necessário) nos números da inadimplência são associados aos supostos efeitos benéficos do aumento da taxa Selic que tornaram o crédito mais caro, freando o ímpeto do consumo;
(d) Termos como “economia”, “poupança”, “cautela”, “tentação”, “estar consciente”, “pensar duas vezes” etc. tomaram conta das coberturas das vendas natalinas. Mesmo nas vendas de liquidação de ano novo, imagens de lojas lotadas com consumidores carregando aparelhos de TV ou eletrodomésticos são acompanhadas por declarações selecionadas onde pessoas falam que estão “economizando” e não comprando. Pautas sobre consumidores que compram “inutilidades” por impulso ocupam telejornais. Percebe-se que o viés da grande mídia ao consumo é principalmente de ordem mais moral do que econômica/racional.
(e) A mobilização da grande mídia para tentar “proteger” o consumidor de si mesmo é tão grande que alguns telejornais escalam “especialistas em finança popular”, como a jornalista Mara Luquet no SPTV da TV Globo que basicamente filtra as notícias mais pessimistas e sombrias dos analistas econômicos para criar um cenário cuja única opção ao espectador é: não compre!
Mara Luquet: educação financeira e
o terrorismo da inadimplência
Essa pauta acaba criando situações irônicas e até engraçadas como, por exemplo, a dissociação entre discurso e imagem. Imagens aéreas mostravam a Rua 25 de março e imediações no centro de São Paulo superlotadas de consumidores carregando sacolas e grandes embrulhos, enquanto Mara Luquet discorria sobre um trágico cenário de inadimplência e quedas nas vendas...

Termos como “crédito consciente”, “consumo responsável” (com suas variantes como “consumo sustentável”, “ético” ou “consciente”) começam a dominar a grande mídia e o discurso das grandes instituições financeiras. De repente, 17 anos depois da estabilização da moeda, descobre-se a necessidade de uma “educação para o consumo”.  Significativamente, esse discurso é construído quase simultaneamente ao discurso governamental do aquecimento econômico, queda no desemprego e inclusão da chamada classe C no mercado de consumo.

A arbitrariedade e seletividade do momento da construção do discurso da inadimplência (nos anos 1990 esse discurso nem era pleiteado em meio a um crescimento real da inadimplência) na grande mídia e a sua transformação em agenda na opinião pública torna-o uma evidente bomba semiótica cuja detonação visa três efeitos esperados:
(a) forçar o governo a se ajustar a uma agenda econômica neoliberal com o aumento da taxa Selic para beneficiar a Banca;

(b) criar um ambiente de temor e desconfiança do consumidor;

(c) criar uma percepção tão negativa na opinião pública em relação à economia que freie o crescimento do consumo e sabote o discurso do governo federal sobre a inclusão social.
Obviamente, a bomba semiótica da inadimplência destoa da realidade (por exemplo, pesquisa do SPC realizada em todas as capitais do País e divulgada em dezembro revelou que as “incertezas” da economia não abalaram a confiança do consumidor, disposto a gastar mais no final de ano), mas ela revela outra função a longo prazo: reforçar a agenda da necessidade de proteger o consumidor de si mesmo e a projeção da imagem do consumo como algo perigoso – percepção oportuna para a Banca, mais preocupada com a liquidez da economia do que com o seu “aquecimento”.

Uma operação semiótica arriscada


Campanha "Unibanco: nem parece banco" -
as origens da operação semiótica do
discurso da inadimplência
Mas o discurso da inadimplência esconde uma curiosa operação semiótica: uma estratégia retórica onde o discurso quer negar a si mesmo. Quando o finado Unibanco lançou a campanha publicitária cujo slogan era “nem parece banco”, estava lançando as bases de uma arriscada operação semiótica que, mais tarde, passaria a ser incorporada pelo próprio discurso da inadimplência: assim como o banco não parecia querer associar a empresa a algo útil e desejável (o desejável paradoxalmente seria a negação da sua própria natureza), também o crédito e o consumo imaginado pelo discurso da inadimplência é paradoxal – algo como “nem parece consumo” ou “nem parece crédito”.

“Consumo consciente”, “crédito responsável” e outras contradições em termos transforma todo o sistema financeiro e da sociedade de consumo em opção moral do indivíduo. Esse discurso esquizofrênico (consuma, mas não muito; tome crédito, mas com moderação; fume, mas não trague...) é resolvido magicamente pela palavra “ética”, termo etéreo e sedutor que resolve uma questão sistêmica da necessidade de integração dos indivíduos no jogo: se a Banca sempre ganha e seus efeitos injustos são sentidos por todos, o discurso politicamente correto da ética e responsabilidade joga, no final, a culpa nas possíveis opções erradas no indivíduo, como, por exemplo, no caso da suposta falta de educação financeira.

Imerso numa sociedade de consumo e bombardeado por toda uma parafernália de impulsos subliminares, palavras mágicas como sustentalibidade, ética e responsabilidade mascaram essa situação esquizofrênica onde um sistema irracional cobra do indivíduo o oposto: racionalidade e discernimento.


Por isso, supostamente o consumidor esquizofrênico deve ser salvo de si mesmo. É a conclusão do discurso oportunista da inadimplência cujo único beneficiado é a Banca que organiza um perverso jogo econômico.

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