terça-feira, dezembro 22, 2020

Série 'Alice in Borderland': o gnosticismo pop japonês dos mangás ao vídeo

Enquanto o Ocidente absorve religiões orientais pela sua fluidez e exotismo, o Oriente se inspira no esoterismo ocidental. Principalmente a vertente gnóstica na cultura pop japonesa através de mangás e animes. Até chegar aos vídeos, como a série Netflix “Alice in Borderland” (2020-) adaptada do mangá de Haro Aso “Imawa no Kuni no Alice”. Três jovens saem de uma estação de metrô de Tóquio e descobrem que estão num mundo paralelo onde a capital japonesa está deserta e às escuras. Apenas acendem painéis de led exortando a participarem de games repletos de charadas e paradoxos: se não zerar o jogo dentro do tempo, o castigo é a morte. A gameficação da jornada interior do herói se mistura com os mitos gnósticos do Demiurgo, da Alma Decaída e do Divino Feminino.

Mangás e animes japoneses estão repletos de vertentes esotéricas ocidentais de tradição abraâmicas, como o Gnosticismo. Da mesma maneira como o Ocidente absorve religiões orientais principalmente pelo seu estilo fluido e exótico.

Mangás e animes são produtos culturais japoneses caracterizados por gritantes gráficos coloridos retratando personagens vibrantes em narrativas frequentemente preenchidas por temas fantásticos e muito futurismo. São tão sincréticos e parasitários como foi o Gnosticismo na história do esoterismo ocidental, talvez daí o encontro perfeito entre mitologia e entretenimento. 

Mundos alternativos, ultraviolentos e ciberpunks catárticos lutando em mundos undergrounds é o terreno cultural perfeito para os principais tropos da mitologia gnóstica: Demiurgos, almas decaídas, salvadores e o feminino divino. Dessa maneira, a cultura pop japonesa se torna o lugar perfeito para a mitologia gnóstica já que ambos se baseiam fortemente na psicologia, mitologia e estados alterados de consciência.

Baseado no mangá escrito e ilustrado por Haro Aso de 2010 a 2016 (e nesse meio tempo adaptada para uma animação em 2014), a série japonesa em live action da Netflix Alice in Borderland (2020-) é outro flagrante exemplo desse Gnosticismo pop oriental.

Tudo gira em torno de um trio de jovens entediados com suas vidas atuais até que, involuntariamente, no interior de uma estação de metrô de Tóquio, são transportados para um mundo paralelo em que a capital japonesa lembra um cenário pós-apocalíptico: ruas desertas em que aparentemente todos parecem ter desaparecido enquanto animais tomam conta da cidade. Nesse mundo, são recebidos por anfitriões invisíveis que, através de celulares, comunicam regras para participar de jogos mortais – suas vidas passam a depender da solução de enigmas e sobreviver a situações violentas. Eles têm que zerar jogos representados por cartas de baralho: cada naipe ou número de cartas determina o grau de dificuldade e natureza do jogo.


 

As referências à obra de Lewis Carroll (“Alice no País das Maravilhas” e “Através do Espelho”) estão por todos os lados, desde a descida dos protagonistas pela toca do coelho (a estação do metrô), a onipresença dos símbolos dos naipes do baralho, os paradoxos lógicos, charadas e paroxismos dos jogos e até um anfitrião chamado “Chapeleiro”. 

Assim como a obra de Carroll ecoa o fluxo de esoterismo e ocultismo em ascensão no século XIX, Alice in Borderland repercute o Gnosticismo Pop oriental através da sintaxe dos games de computadores onde a sua arquitetura da informação passa a estruturar a realidade de um mundo alternativo.



 Tudo dentro de um pacote híbrido que mistura referências de thrillers como Jogos MortaisEscape Room e até mesmo o terror cerebral de Cube.

A Série

O que Alice in Borderland faz é ir diretamente ao ponto: um dos cruzamentos mais famosos do mundo, Shibuya (Tóquio), onde encontramos três jovens: Arisu (Kento Yamazaki), um rapaz que abandonou a faculdade e passa seu tempo jogando videogames; o durão bartender Karube (Keita Machilda); e um nerd que trabalha numa empresa de TI Chota (Yuki Morinaga). Depois de atrapalharem deliberadamente o pesado trânsito do cruzamento e serem perseguidos por policiais, o trio desce as escadarias da Estação Shibuya e se escondem um cubículo de um banheiro. 

De repente a energia cai, as luzes se apagam e tudo fica em silêncio. Ao saírem, encontram tudo deserto: as pessoas sumiram, o trânsito caótico desapareceu, os celulares estão sem energia e de resto tudo que depende de componentes eletrônicos. Curiosamente, os únicos equipamentos que funcionam são analógicos, inclusive carros mais antigos. Aparentemente, eles são os únicos que restaram em Tóquio. Ou será que não é Tóquio? Um mundo paralelo?

É Borderland. Mas é quando cai a noite que os jovens se deparam com um mistério ainda mais profundo. Uma mensagem em um brilhante telão de led se acende na escuridão, que os conduz ao primeiro game que deverão disputar.

Chegando ao prédio para as setas luminosas indicam, descobrem que outros jogadores também participarão – outros incautos que também não sabem como foram parar ali. As regras são transmitidas por smartphones especiais disponíveis para cada jogador. Uma carta na tela identifica a natureza e a dificuldade do jogo, além do tempo restante. 



Cartas de paus simboliza um jogo de equipe; ouros, um game de intelecto; e copas é o mais problemático: jogo de traição que explora as fraquezas alheias. E é claro que o talento e inteligência para games do jogador compulsivo Arisu ajudará bastante.

As regras são draconianas: um raio vindo do céu explodirá sua cabeça se (a) tentar abandonar o jogo; (c) não conseguir zerar o jogo no final do tempo. A vitória, concede vistos para permanecer mais alguns dias em liberdade na cidade de Borderland. Acabado o visto, o jogador é obrigado a se inscrever no próximo jogo, se não... um raio cairá em cheio na sua cabeça.

O espectador nunca saberá o próximo game maluco que está por vir. Junta-se ao trio, uma jovem hiperatlética, Yuzuha (Tao Tsuchiya), que era alpinista no mundo real. Para a equipe será a união perfeita: o intelecto para resolver charadas de Arisu somada à destreza atlética de Yuzuha.

Zerar os games é uma forma de terem mais tempo para poderem encontrar uma saída que estaria em um lugar idílico chamado “The Beach”. Ouvem boatos sobre esse lugar, liderado pelo “Chapeleiro”, um líder carismático que transformou um resort em uma espécie de religião de culto ao hedonismo – todos vivem em constantes festas, até o próximo jogo mortal.

Poder, religião e hedonismo

Esse é o primeiro tema gnóstico que salta aos olhos nessa primeira temporada da série: a maior parte do tempo os protagonistas não tentam descobrir o que é tudo aquilo, quem está por trás (aliens? Algum tipo de experimento secreto? É apenas Tóquio ou Borderland é a versão alternativa de todo o planeta?). Ou seja, não há o horror metafísico que impulsionaria a busca da verdade.



Ao contrário, o demasiado humano se impõe: através do Poder (o Chapeleiro e sua milícia que domina The Beach), da religião consoladora (o culto ao hedonismo como prazer escapista) e do próprio hedonismo em si (pensar apenas no presente, já que todos podem morrer a qualquer momento), o jogo de ilusões dos games é mantido – assim no Gnosticismo, a ilusão da realidade é reforçada pelas ilusões do poder, da religião e do hedonismo.

Ao contrário de Truman ou Neo em Matrix (protagonistas que querem descobrir a verdade lá fora da simulação) Arisu e Yuzuha querem apenas retornar ao “mundo antigo” e tentam pensar Borderland apenas como um sonho ruim. 

Por isso, o papel dos games é fundamental em Alice in Borderland: os jogos tornam os protagonistas no personagem gnóstico do Viajante: tal como no filme Vidas em Jogo (The Game, 1997), o personagem do Viajante é aquele que está aprisionado em um jogo que sempre parece dar errado, o controle da situação parece estar irremediavelmente perdido criando uma suspensão radical das fronteiras e diferenças. As fronteiras entre aparência e essência, ficção e realidade estão suspensas. O Jogo mistura-se com a própria percepção que os personagens têm sobre o que entendem como realidade.

Durante os episódios, os games forçam os protagonistas passar por experiências nas quais revisitam seus traumas e questões existenciais do mundo real do qual foram abduzidos. Em outras palavras, acompanhamos a arquetípica viagem do herói que parte da segurança do lar em direção a terras estrangeiras que fazem pouco sentido, mas que eventualmente oferecerão grandes lições.

O que acompanhamos em Alice in Borderland é uma verdadeira gameficação da jornada interior gnóstica: não há conhecimentos passados por mestres ou manuais que ajudem o herói a alcançar o “elixir” – como descreve a velha Jornada do Herói de Vogler (o chamado “Paradigma Disney”) e Campbell (“O Herói de Mil Faces”). Nas charadas e paradoxos nas fases progressivas dos jogos, o “jogador” terá que extrair o “conhecimento”. Que na verdade, já está no interior de cada personagem. Porém, esquecida pelos traumas deixados no “mundo antigo”.


 

Ficha Técnica 

Título: Alice in Borderland (série)

Criador: Shinzuke Sato

Roteiro: Yasuko Karamitsu

Elenco: Kento Yamazaki, Tao Tsuchiya, Yuki Morinaga, Keita Machida

Produção: Iyuno

Distribuição:  Netflix

Ano: 2020-

País: Japão

 

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