Quem não
conhece a célebre pintura de Goya de Saturno (Cronos na mitologia grega)
devorando seu próprio filho? Como filhos de Cronos, também somos devorados pelo
tempo, tornando cada tomada de decisão nossa em causas de efeitos que serão
irreversíveis. Esse é o tema do filme francês “Irreversível” de Gaspar Noé. “O
tempo destrói tudo” diz a frase de abertura, em um filme que lembra “Amnésia”
de Nolan: a história é contada no sentido inverso onde acompanhamos a
desconstrução de personagens que de selvagens e brutais vão se tornando sensíveis
e apaixonados. Noé propõe uma reflexão incômoda e brutal sobre o tempo, através
de duas cenas que já são consideradas antológicas na história do cinema: um
estupro e a briga em uma boate gay onde um rosto é desfigurado por um extintor
de incêndio. Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende.
Título:
Irreversível (2002)
Diretor: Gaspar Noé
Plot: Contado de
trás para frente, o filme narra a busca por vingança de Marcus e Pierre, depois
que Alex (Mônica Belucci) namorada de Marcus e ex de Pierre, é estuprada
violentamente.
Por que está
“Em Observação”? – O blog se interessa por filmes que exploram a questão do tempo
na narrativa. Irreversível, ao lado de Amnésia de Christopher Nolan, é um
desses filmes: a história é contada ao contrário e cada cena é rodada
totalmente sem cortes, até a câmera dar uma pirueta e jogar o espectador para
outra cena, a parte anterior da história. E por que? O sentido já é dado logo
no início do filme com a frase “o tempo destrói tudo”. Muitos críticos definem o filme como uma
fábula sobre o destino. A cada cena que passa o filme parece indagar porque as
coisas não tomaram outro rumo, porque somos vítimas do destino.
O plot é
extremamente simples, mas a grande atração é a edição e cenas violentas como a
do estupro e o estrago que o extintor de incêndio faz no rosto de um personagem
na sequência da briga em uma boate gay. Tudo no filme parece feito para criar
no espectador estranhamento, repulsa e incômodo. Na primeira exibição no
Festival de Cannes 2002 Irreversível foi definido como “repulsivo”, “doentio” e
“gratuito”. O enquadramento da câmera não centraliza ninguém na tela, gira de
forma desfocada e surreal para marcar o recuo no tempo da narrativa e a
narrativa parece desconstruir os personagens: à medida que o tempo passa (ou
volta) os protagonistas Pierre e Marcus vão se tornando totalmente diferente
daqueles seres brutais e selvagens do início do filme. De homens sedentos por
vingança, vão se transformando em seres apaixonados e bem menos agressivos,
incapazes de fazer mal a uma mosca.
Por isso, a
grande questão que o Gaspar Noé quer discutir: a irreversibilidade do tempo, o
porquê das nossas tomadas de decisões e como elas, a cada instante, influenciam
de forma irreversível, o futuro. De certa forma, o diretor francês parece
querer desconstruir um dos grandes mitos do cinema, principalmente
norte-americano: o mito da segunda chance, a possibilidade da vida nos oferecer
sempre uma segunda oportunidade para nos redimir de erros cometidos no passado.
Noé parece ter em mente o mito grego de Cronos devorando seus próprios filhos.
Como filhos do tempo que somos, também somos devorados por ele, vencidos pela
sua irreversibilidade. Tudo finda e é consumido, tornando nossas decisões
fatalidades.
Por isso essa
discussão do tempo é essencialmente gnóstica, já que para os gregos Cronos
refere-se a apenas uma faceta da existência: o tempo cronológico e linear das
coisas terrenas. É imperfeito e produz a entropia e caos. Ainda existiria Kairos (o momento indeterminado no tempo
onde algo de novo acontece) e Aeon (o
tempo divino onde as horas não passam cronologicamente, o tempo de Deus). Daí o
descompasso que sempre vivemos entre Cronos e o nosso psiquismo,o efêmero versus
o eterno.
Daí a linguagem
fílmica intensiva do diretor nas cenas: sem cortes, elas são pensadas para
serem impactantes e duradouras em nosso psiquismo, apesar da transitoriedade
que a linguagem fílmica impõe – a história tem que ser contada, o tempo deve
passar.
O
que esperar do filme? – A crítica afirma que a violência e o desconforto (produzido
pelo enquadramento e ausência da decupagem nas cenas) fazem muitos espectadores
abandonarem o filme na metade. Assim o crítico de cinema Tony Pugliesi
sintetiza o que o leitor do Cinegnose
pode esperar do filme Irreversível: “Incômodo.
Se tivéssemos que escolher apenas uma palavra para descrever Irreversível, com certeza, a palavra escolhida seria
"incômodo". Ou então poderíamos utilizar palavras similares como
intrigante e chocante. Entretanto, incômodo, como você irá perceber ao longo
desta análise, nada tem a ver com a possibilidade que o filme de Gaspar Noe
seja uma película ruim, muito pelo contrário. Chocante porque a produção possui
duas tomadas (seqüências) fantásticas que já entram para a história do cinema
devido a forma de como foram gravadas e, também, claro, pela coragem de Noé em
gravar essas seqüências. Acredite, elas são muito difíceis de serem até mesmo
assistidas. Intrigante, óbvio, pelo modo como a película fora filmada; edição
fantástica, brilhante. E ela que faz o filme.”