Enquanto digitava mais uma postagem para esse blog Cinema Secreto, meu filho assistia ao canal Disney XD. Dentre as várias vinhetas que recheiam os intervalos da programação (e como há intervalos em TV por assinatura!) uma chamou-me a atenção e parei de digitar. A vinheta se intitulava “Disney XD Freestyle Football”, alusiva ao evento da Copa do Mundo na África do Sul (assista ao vídeo no final dessa postagem).
No vídeo vemos um adolescente fazendo embaixadas e malabarismos com uma bola de futebol. Com recursos de edição clipada, o mesmo adolescente aparece sucessivamente em vários ambientes urbanos (campo de futebol society, quadra de esportes, interior de um depósito etc.) dando continuidade às suas manobras com a bola.
De repente, um recurso metalingüístico inspirado claramente nos games de computador: os movimentos do jogador são apresentados em slow motion e a trajetória da bola e o movimento do jogador são esquadrinhados por linhas geométricas como uma espécie de telemetria, apresentando os graus dos ângulos e curvaturas. A bola não cai uma vez, não há falhas, as linhas da telemetria mostram a perfeição dos movimentos. No último plano o jogador adolescente dá um forte chute para o alto, a bola sobe e a câmera acompanha o movimento mostrando, do alto, o jogador pulando com os punhos cerrados como um vencedor num estádio lotado e uma chuva de papéis picados.
Logicamente a destreza do adolescente é o resultado da montagem de sucessivos planos, dando uma ilusão de continuidade das ações. Mas para uma criança, ainda alheia aos recursos técnicos de edição e montagem de um vídeo, o efeito realista é evidentemente forte.
Mais do que a ilusão produzida pela edição e montagem, há algo mais profundo e significativo nesse vídeo. Uma mudança de paradigma para o futebol, refletindo uma tendência que envolve todas as mídias: a racionalização e neutralização do Mal.
Como já abordamos em postagens anteriores, do ponto de vista gnóstico o cosmos físico, desde o seu início, é constituído na sua essência pelo Mal. As manifestações dessa natureza ontológica do Mal estão no caos, aleatório, imperfeição, “reversibilidade simbólica” (Cf. Baudrillard: a Paz tende a Guerra, o Bem ao Mal, o movimento à entropia etc.), acidente.
Como afirmou Stephan Hoeller (no livro “Gnosticismo: a tradição oculta”), as descobertas científicas como a Teoria do Caos e da Incerteza no campo da Física comprovaram a desconfiança dos gnósticos em relação ao cosmos físico: o domínio da imperfeição e do Mal, uma espécie de ordem e simetria caótica e não-linear, onde cada ato resulta num efeito contrário em dimensões exponenciais.
Certamente é no Jogo, no Lúdico, na Fantasia e no Erotismo que essa natureza manifesta-se de forma clara. É nesses campos que experimentamos um prazer irônico e paradoxal: o prazer no erro, na falha. Explicando melhor, o prazer do jogo não está no desempenho maximizado que eliminasse todas as possibilidades de erros, resultando numa transparência total. Pelo contrário, o prazer está no percurso, no perigo, no inesperado que deve ser contornado, superado ou não.
Mas todo o complexo midiático ou a indústria do entretenimento se recusam a aceitar essa natureza não-linear do Jogo e do Lúdico. Racionalizam e neutralizam a presença do Mal através de ídolos que nunca falham, exímios craques em 100% do tempo.
"Princípio do Desempenho" e “Brancura Total”
Dois pensadores refletiram, cada um partindo de pressupostos diferentes, sobre essa tendência midiática: o alemão Hebert Marcuse e o francês Jean Baudrillard.
Partindo do referencial da chamada Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, Marcuse tematizava nos anos 60 a ideologia do “princípio do desempenho” que estava por trás da aparente liberação da sexualidade na cultura do capitalismo tardio. A sexualidade não estava sendo liberada a partir de seus próprios termos (fantasia, erotismo, jogo etc.), mas a partir de princípios do mundo do trabalho e da mercadoria: eficácia, eficiência, produtividade, resultado, lógica do mundo racional e da linearidade. O sexo hiperbolizado, maximizado, anabolizado (tamanho do pênis, o número de orgasmos alcançados, e assim por diante). Do campo do lúdico e do erótico o sexo salta para o campo do desempenho e da maximização lineares.
Jean Baudrillard parte de referenciais gnósticos cátaros e maniqueos (como explicitamente declarou em entrevistas próximas da sua morte) para denunciar a tendência da mídia em criar uma espécie de “brancura total”: um mundo des-simbolizado, sem erros, falhas, sujeira, desperdício. Através de uma progressiva tecnologização criar um mundo com total transparência, assepsia e limpeza. Denegar a “reversibilidade simbólica” onde cada ato produz o seu oposto: a transparência do Mal.
Um projeto tecnognóstico para o futebol?
Voltando à vinheta do Disney XD, temos inscrito nesse vídeo a aspiração da denegação do Mal no jogo: extrair do futebol seu aspecto mais lúdico (a falha, o erro, o acidente) por meio do imaginário tecnológico (linhas de uma telemetria imaginária). Futebol deixa o campo do lúdico para se inserir no desempenho e na “brancura total”.
Talvez esteja em andamento um projeto tecnognóstico (no sentido cabalístico e não alquímico – sobre essa distinção importante dentro do Gnosticismo veja os links abaixo) para o futebol. Os crescentes protestos da mídia especializada contras as “falhas” da arbitragem e a reivindicação por tecnologia no futebol (chips ou sensores na bola, arbitragens por vídeos etc.) certamente expressam essa tendência anti-lúdica para o esporte. A aspiração cabalística da Tecnognose em impor ao mundo disforme e caótico um código binário que imponha autoritariamente a ordem, linearidade, previsibilidade, num cosmos que, na sua essência é exatamente o oposto.
Mas o prazer de todo Jogo é o contrário: o prazer em burlar essa telemetria que o Demiurgo quer impor ao seu cosmos defeituoso e rir, ironicamente, de cada falha, de cada acidente. Ou, como fala o Coringa de Heath Ledger: “Por que tão sério?”.