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quinta-feira, maio 12, 2022

A freudiana fantasia da vingança contra a "mãe má" no filme 'Boa Noite, Mamãe!'



Uma das características do filme estranho (“Weird Movies”) é aquele que não permite ao espectador o mecanismo psíquico básico do entretenimento, a identificação: afinal, quem o mocinho e o bandido? Além de estabelecer uma fina fronteira entre a realidade e o imaginário através do observador/protagonista não confiável. O filme de terror austríaco “Boa Noite, Mamãe!” (Ich Se, Ich Se, 2014) é um bom exemplo: como o vínculo universalmente inquebrável entre mãe e filhos pode ser desconstruído pela freudiana fantasia de vingança da criança contra a “mãe má”. Gêmeos veem sua mãe retornando para casa após uma cirurgia facial, com o rosto totalmente enfaixado. Logo, começam a suspeitar que aquela mulher pode não ser a sua mãe. Incomunicabilidade e a quebra do elo geracional na sociedade, somado à matriz edipiana, são os elementos do qual o gênero do terror atual se inspira. 

quinta-feira, abril 07, 2022

Filme "Ham on Rye": a impermanência da juventude entre o sonho e o conformismo


“Ham on Rye” (2019), do diretor Tyler Taormina, é um daqueles filmes para cinéfilos aventureiros: é um filme marcado pela estranheza porque, aparentemente, nada acontece. A única âncora narrativa é uma espécie de ritual de passagem tradicional de uma cidadezinha suburbana sem graça: grupos de adolescentes do final do ensino médio rumam para a lanchonete Monty’s no qual, de alguma maneira, será decidido o futuro adulto de cada um. “Ham on Rye” é um filme sobre a impermanência da juventude e a forma como ela parece desaparecer. É um filme vago, mas, estranhamente prazeroso. Há um subtexto sobre o dilema adolescente do “duplo vínculo”: o medo paralisante da rejeição criado pelo dilema de ficar entre o sonho e o conformismo; entre as aspirações e a resignação.

quarta-feira, março 09, 2022

Guerra na Ucrânia: o Império vê Hitler no próprio espelho


"Parecem com a gente!”, exclamou o repórter da CBS News ao ver imagens de refugiados ucranianos. Ato falho sintomático: foi a deixa para aumentar a escalada retórica midiática da iminência de uma “guerra mundial” – afinal, guerra mundiais só acontecem quando brancos estão morrendo. No mundo real, a Segunda Guerra Mundial jamais terminou. Os Impérios nunca pararam de lutar em inúmeras guerras quentes e golpes a sangue frio por décadas. Historicamente, as guerras mundiais sempre liberam o Império Branco (América-Europa) da culpa da própria violência colonial e racismo, ao escolherem o Hitler da vez e dizer “esse era o cara mau” e “nós o pegamos”. Agora, é Putin, com todo o “physique du rôle” para o papel. O Império sempre precisa de um Hitler. Caso contrário, eles teriam que se olhar no espelho e ver sua própria hipocrisia. Há 77 anos, Aimé Césaire, no livro “Discurso Sobre o Colonialismo”, chamava de “efeito bumerangue” quando as guerras se voltam contra o próprio Império, com mesmo racismo e violência que dispensam às suas colônias. E novos “Hitlers” são necessários. A diferença é que não mais gerados pelo Cristianismo. Mas agora pela democracia liberal midiática. 

quinta-feira, fevereiro 24, 2022

'Moonfall': um filme-catástrofe para a nova era da Guerra Fria 2.0 e da pandemia global


“Moonfall: Ameaça Lunar” (2022), do mestre dos filmes-catástrofe Roland Emmerich (“Independence Day”, 2012), é um exemplo do mais recente pico de produções do gênero, sincrônico à crise pandêmica global e à Guerra Fria 2.0 consolidada com a invasão da Ucrânia pela Rússia. Dessa vez, acompanhamos o que aconteceria se a Lua saísse de órbita e entrasse em rota de colisão com a Terra. Esse novo pico de produções de filmes-catástrofe (basta pesquisar o banco de dados do Internet Movie Data Base – IMDB) confirma a tese do sociólogo Ignácio Ramonet: os filmes catástrofes são uma operação psicológica de deslocamento, ao criar um objeto fóbico que fixa a angústia coletiva suscitado em situações de crise. Fixar o vetor da crise como uma calamidade de ordem natural para, dessa maneira, despolitizar os acontecimentos. Freud explica.

Roland Emmerich é o mestre dos filmes-catástrofe. Principalmente pela maneira como consegue combinar paranoia e teorias conspiratórias que sempre apontam para uma iminente destruição do planeta.

Em Independence Day (1996), a conspiração governamental para ocultar o segredo alienígena na Área 51; em Godzilla (1998), testes nucleares secretos criam um lagarto mutante gigantesco que, claro, vai querer destruir Nova Iorque; em O Dia Depois de Amanhã (2004), a conspiração para ocultar as consequências apocalípticas das mudanças climáticas; em 2012, tendo como pano de fundo a profecia Maia que supostamente previa o fim do mundo naquele ano, a conspiração das elites mundiais para ocultar a catástrofe geológicas que matará grande parte da população – enquanto a elite, com informação privilegiada, pagava fortunas para um lugar na Arca de Noé high tech.

E agora, Moonfall: Ameaça Lunar, com uma teoria da conspiração tão velha quanto a do pouso da Apollo 11 na Lua dirigido por Stanley Kubrick – a teoria de que a Lua é uma megaestrutura alienígena oca, criada por uma antiga raça para algum propósito não muito claro.

Dessa vez o “mestre do desastre” ao mesmo tempo nos aterroriza e nos fascina (com os espetaculares efeitos especiais CGI) descrevendo o que aconteceria se a Lua saísse de orbita e entrasse em rota de colisão com a Terra.

O filme é lançado num momento em que transforma esse típico exemplar do gênero filme-catástrofe num sintoma: as consequências econômicas globais da pandemia somadas à escalada da crise política no Leste Europeu com o desfecho final da invasão russa na Ucrânia.

Moonfall é um típico filme de um gênero bem particular, que não pode ser confundido com a tendência atual da “Covid Expoitation”, série de filmes que exploram as mazelas humanas em meio à pandemia global: Corona Zombies (mortos pela Covid viram zumbis vingativos), Coronavirus: The Movie (produção hindu), Corona: Fear is a Virus (em meio à pandemia, um grupo fica preso num elevador no Canadá), A Casa da Praia (uma pandemia que vem do oceano), a série Slborn (uma pequena comunidade numa ilha observa indiferente a pandemia global pela TV) ou o curta Apocalypse Norway (um grupo de adolescentes numa área costeira remota ignora a chegada de um vírus apocalíptico na Europa), entre outras inúmeras produções.

Roland Emmerich pega uma carona num gênero que ao mesmo tempo é um sintoma psicossocial e uma operação ideológica de Hollywood – uma tendência que cresceu principalmente no pós-guerra da década de 1950.



Historicamente, os filmes-catástrofes começaram operando um fenômeno de deslocamento no psiquismo coletivo, onde a ansiedade e medo coletivo da guerra nuclear e da guerra fria eram transferidos para um “objeto fóbico” representados por invasores alienígenas, formigas gigantes ou até pássaros assassinos – Os Pássaros, de Hitchcock.

Esse conceito de objeto fóbico é muito mais complicado do que a paranoia criada pelo medo de um inimigo externo. não se trata simplesmente de medo a um objeto. O próprio medo e o objeto, em si, já são sintomas. Como Freud afirmava em 1909, “aquilo que é hoje o objeto de uma fobia, no passado deve ter sido também a fonte de um elevado grau de prazer” (Cf. FREUD, S. “Análise de uma fobia de um menino de cinco anos”, Capítulo III parte II).

Segundo Ignácio Ramonet, esse gênero de blockbuster teria o papel habitual de “deslocamento”: as calamidades fílmicas teriam a função de “criar um objeto fóbico que permitiria ao público localizar, circunscrever e fixar a formidável angústia ou estado de aflição real suscitado pela situação traumática da crise” (Veja RAMONET, Ignácio. Propagandas Silenciosas. Petrópolis: Vozes, 2002, p.86).




Se acompanharmos a produção dos filmes desse gênero veremos que os picos de produção se localizam exatamente em contextos históricos de crise econômica ou política. Trabalhando com o banco de dados do IMDB (Internet Movie Data Base) referente à produção de disaster movies entre 1920-2021, percebe-se nitidamente essa tendência - veja gráfico com esses dados adiante.

Mas antes, vamos falar um pouco sobre a nova produção de Roland Emmerich.

O Filme

Os astronautas Jo (Halle Berry) e Brian (Patrick Wilson) testemunham um acidente bizarro enquanto fazem a manutenção de um satélite em órbita, causado por uma massa ondulante de matéria negra. 

Quando eles voltam à Terra sem um membro da tripulação (morto no episódio), ninguém acredita neles; Brian é culpado e colocado na lista negra da NASA. 

Corta para dez anos à frente, para conhecermos KC Houseman (John Bradley de Game of Thrones ), um blogueiro solitário com um gato chamado Fuzz Aldrin. Na verdade, um teórico da conspiração que vê antes de qualquer pessoa que a Lua saiu de órbita e seus detritos destruirão o planeta dentro de semanas. 




Cabe a Brian e Jo retornarem ao espaço e derrotar o que eles chamam de “o enxame”, a misteriosa matéria negra que causou o acidente orbital na abertura do filme – de alguma forma, aquela estranha forma de inteligência alienígena está conectado com o estranho comportamento do nosso satélite “natural”... ou não tão natural assim!

O ator Donald Sutherland está fascinante e assustador como o personagem guardião dos mais sombrios segredos da NASA: um deles, o de que a Lua é um artefato alienígena que parece ter sido hackeado por alguma forma sinistra de IA alienígena que pretende riscar a humanidade do Universo.

Moonfall é um filme-catástrofe vintage, que parece querer retornar aos tropos clássicos dos anos 1990: no meio da catástrofe, com a Terra sofrendo anomalias gravitacionais que destrói cidades com terremotos e tsunamis, há espaço para piadas sem graça, discussões de relacionamentos entre casais e famílias que tentam juntar os cacos de casamentos rompidos. Junto ao combo, crianças que se perderam dos pais e mulheres frágeis à espera do herói.

Mas, como uma pitada de contemporaneidade dos tempos de privatização das viagens espaciais: A NASA é retratada por um viés extremamente negativo, enquanto Elon Musk e suas empresas são mencionados com uma regularidade de arregalar os olhos, a ponto de parecer uma estratégia mercadológica de inserção de produtos – product placement.




O objeto fóbico dos filmes-catástrofe

Acompanhando o gráfico abaixo, podemos observar a confirmação da tese de Ignácio Ramonet: os filmes-catástrofe correspondem imaginariamente ao efeito de deslocamento, isto é, fixar o vetor da crise como uma calamidade de ordem natural para, dessa maneira, despolitizar os acontecimentos.

O primeiro pico de produções está no ápice da guerra fria com a ameaça nuclear dos anos 1950 e começo da década de 1960.

Nos anos de 1970 vemos a consolidação do gênero com Filmes sobre catástrofes (incêndios, maremotos, terremotos, panes tecnológicas, enchentes etc.) que surgiam de repente e abalavam a harmonia de uma comunidade começam a se multiplicar desde o filme Aeroporto (1970). Seguem-se O Destino de Poseidon (1972),Terremoto (1974), Inferno na Torre (1974), Heat Wave (1974), Aeroporto 1975Flood! (1976) entre outros.




Depois de décadas de crescimento e estabilidade econômica no pós-guerra, os anos 1970 foram marcados pela aceleração da inquietude com a crise do petróleo associado às sucessivas derrotas norte-americanas do Vietnã, conflitos raciais, o escândalo de Watergate e a moratória disfarçada de Nixon ao romper o acordo de Breton Woods e decretar o fim do lastro-ouro para o dólar.

Após as crises dos anos 1970, segue-se a era de ouro das políticas neoliberais da era Reagan e Thatcher nos anos 1980 e a estabilidade econômica mediante a socialização dos prejuízos pela dilapidação do Estado. Em uma década triunfante coroada com a queda do Muro de Berlin e o início da ordem global, despenca a produção de filmes desse gênero. O gênero será retomado na segunda metade dos anos 1990, época das primeiras grandes crises financeiras sistêmicas e globais: a crise do México em 1995, a crise das bolsas asiáticas em 1997-98 e o calote russo em 1998.  

A retomada dos filmes-catástrofes vem com filmes como IndependenceDay (1996), Daylight (1996), Twister (1996), Titanic (1997), Volcano (1997), O Inferno de Dante (1997), Impacto Profundo (1998) entre outros.




E na segunda metade dos anos 2000 com uma nova onda de instabilidade pela explosão da bolha especulativa imobiliária dos EUA em 2008 e o derretimento da Zona do Euro a partir de 2009, experimentamos um novo pico de filmes catástrofes: Cloverfield – Monstro (2008), Fim dos Tempos (2008), A Estrada (2009), 2012 (2009), A Epidemia (2010) etc. E a onda de filmes continua na década de 2010 como reflexo da demora da retomada da economia mundial: Invasão do Mundo: a batalha de Los Angeles (2011), Ataque ao Prédio (2011) ou O Impossível(2012).

E os anos 2020 começam com a pandemia global e, agora, o ressurgimento da Guerra Fria com a invasão da Ucrânia pela Rússia.

Porém, para haver essa operação psíquica de deslocamento descrita por Ramonet, é necessário o motor imaginário do objeto fóbico. Como Freud observou, esse objeto particular passa a ter uma característica fóbica – aquilo que no presente tem uma característica fóbica, significa que no passado foi fonte de prazer.

O fascínio pelos filmes-catástrofe se origina justamente dessa ambiguidade imaginária das crises: assim como Freud observou que o objeto de uma fobia foi fonte de prazer no passado, crises e instabilidades vislumbram a inesperada possibilidade de libertação com a destruição de uma ordem. Crises e desordens podem produzir desobediências civis e, no âmbito político, possibilidade de novos discursos críticos emergirem. Por isso a necessidade da o cinema transformar a crise em um objeto fóbico (assustador, repugnante etc.), para afastar do horizonte qualquer esperança de mudanças.

Em síntese, o filme-catástrofe explora de uma maneira peculiar o clichê mais geral da indústria de entretenimento de quebra-da-ordem-e-retorno-a-ordem  - não importa o gênero ou tema, esse clichê está sempre presente como uma forma de elaborar a fantasia e as expectativas do espectador: ir ao cinema para quebrar a rotina e o desprazer do cotidiano ao ver, de forma ritualizada a ordem social, política etc. ser quebrada – bancos sendo roubados, terroristas explodindo coisas, a desordem da sociedade à beira do fim do mundo etc. 

E, chegando ao final, prepará-lo para retornar às suas obrigações diárias, como se nada tivesse ocorrido, com o retorno à ordem. 


 

Ficha Técnica


Título: Moonfall: Ameaça Lunar

Diretor: Roland Emmerich

Roteiro: Roland Emmerich, Harald Kloser, Spenser Cohen

Elenco:  Haller Berry, Patrick Wilson, John Bradley, Charlie Plummer

Produção: Centropolis Entertainment

Distribuição: Diamond Films

Ano: 2022

País: EUA

 

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quarta-feira, fevereiro 23, 2022

No futuro impostos e anúncios invadirão nossos sonhos no filme 'Strawberry Mansion'


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A derrota histórica do gênero feminino no filme 'Mundo em Caos'


Com uma premissa estranha e com sérios problemas nos bastidores, o filme “Mundo em Caos” (Chaos Walking, 2021, disponível na Amazon Prime) lembra até o subgênero “sci fi teen” iniciado por “Jogos Vorazes”. Colonizadores esquecidos num planeta distante têm que lidar com “O Ruído”: involuntariamente, somente os homens materializam seus pensamentos mais íntimos através de uma “nuvem” sobre as cabeças. As mulheres foram massacradas por nativos, resultando numa sociedade religiosa hipermasculinizada, armada, violenta, protofascista. E o “ruído” vira um instrumento de controle. “Mundo em Caos” é um filme peculiar, em que a premissa é melhor que o próprio filme: não só por fazer uma alusão à ideia teosófica das “formas-pensamento” como também suscita a tese central de Friedrich Engels em seu livro “Origem da Família, Propriedade Privada e Estado”: o “comunismo primitivo” cedeu lugar na História à opressão de classe e exploração do trabalho com a derrota histórica do gênero feminino. 

quinta-feira, janeiro 20, 2022

O medo e a culpa alimentam o terror demasiado humano no filme 'O Páramo'



Chegamos a esse mundo fisicamente dependentes dos nossos pais e cercados por terrores reais e imaginários que reforçam os nossos laços familiares, tanto pelo amor, medo e culpa. Essa é a matriz edipiana que será replicada da família até a sociedade, na qual o medo se transforma em matéria-prima da dominação. O terror espanhol Netflix “O Páramo” (El Páramo, 2021) re-encena esse drama atávico ao acompanharmos uma pequena família isolada em uma extensa planície desértica, vivendo em exílio para fugir dos horrores da guerra. Mas a distância não é o suficiente para o horror deixar de acompanhá-los. Um horror invisível de alguma besta que está à espreita. Que parece surgir de algo demasiado humano que alimenta todo o terror.

terça-feira, dezembro 14, 2021

'Histórias que Nosso Cinema (não) Contava' e 'Os Motéis e o Poder': militares, sexo, poder ontem e hoje


Dois eventos sincronicamente ligados marcaram a ditadura militar brasileira: a criação da Embratur e o seu projeto de investimentos em motéis e a Embrafilme impulsionando os filmes da pornochanchada. Essa aparente contradição entre o discurso moralizante da defesa dos valores da família e de Deus e o estímulo ao erotismo e pornografia na verdade revela o “sadismo de potência” clássico dos governos totalitários. O documentário “Histórias Que o Nosso Cinema (Não) Contava” (2017) e o lançamento do livro “Motéis e o Poder”, de Ciça Guedes e Murilo Fiuza de Melo revelam essa peculiar relação entre sexo, poder e sociedade. Mas também nos fazem pensar numa comparação com a atualidade: diferente do golpe militar “old school” de 1964, hoje vivemos o golpe militar híbrido. Qual seria a atual relação entre sexo e poder? Acompanhando o psicanalista Erich Fromm, poderíamos responder: o “sadismo necrófilo de destruição”, forma de sadismo “frio” no qual a destruição se sobrepõe ao prazer da excitação pelo controle do outro. 

terça-feira, novembro 30, 2021

A gnose na tela mental pós-morte no filme "Perdidos na Escuridão"



Muitos falam que no momento da morte a vida passa diante de nossos olhos. Isso pode ser mais do que uma metáfora: e se nos perdermos em nossas próprias memórias através de um mecanismo de negação, confundindo alucinação com realidade, memórias falsas e vívidas? O filme “Perdidos na Escuridão” (Wander Darkly, 2020) aborda esse tema PsicoGnóstico de como a morte pode se tornar uma matrix que nos aprisiona em uma tela mental de cacos de memórias que não conseguimos mais juntá-las. Depois de um acidente de carro, um jovem casal que vivia um relacionamento em crise, tenta reconstituir a verdadeira linha do tempo das suas memórias. Uma viagem através de todos os estágios do luto – negação, raiva, barganha, depressão e aceitação.

sexta-feira, novembro 19, 2021

Teoria da Estupidez de Bonhoeffer explica por que o Brasil deu nisso


“A estupidez é um inimigo mais perigoso do que o mal. Diferente da estupidez, o mal tem as sementes da sua própria destruição”. A Teoria da Estupidez, descrita pelo teólogo, pastor e membro da resistência anti-nazista, Dietrich Bonhoeffer, explicaria perfeitamente o Brasil atual: a estupidez seria um fenômeno que está na raiz de todos os problemas. Diferente da canalhice e do mal-intencionado, a estupidez não é uma falha no caráter ou súbita suspensão da razão: é uma categoria sócio-psicológica, bem objetiva, com origens no funcionamento heurístico da nossa mente, sempre em busca de atalhos por meio de vieses cognitivos. E de todos os vieses, o efeito de rebanho é o mais proeminente. Por isso, a estupidez é orgulhosa de si mesma: tem a chancela do grupo, da “maioria”. Para Bonhoeffer, conhecer a natureza da estupidez é urgente porque, ao contrário do mal, contra a estupidez não temos defesa.

quinta-feira, outubro 07, 2021

Geração millennial perdida em um labirinto mitológico no filme 'Dave Made a Maze'


A Geração Millennial (ou “Geração Y”, a primeira a nascer e crescer cercado pelas mídias digitais) sempre foi caracterizada pela ansiedade, imediatismo, instabilidade emocional e falta de foco. Então, como representantes dessa geração se comportariam perdidos no interior de uma versão século XXI do mitológico labirinto de Creta, com Minotauro e tudo? Essa é a proposta da comédia “Dave Made a Maze” (2017): Dave, um jovem artista que nunca terminou nada que começou, decide fazer um labirinto de papelão na sala de estar até que alcance a perfeição. Em consequência, seu interior começa a ficar enorme, ganha vida própria e até um Minotauro começa a persegui-lo. Seus jovens amigos millennials também entram na obra para tentar para salvar Dave, para depois se verem perdidos e perseguidos pelo monstro mitológico. Através do autodistanciamento irônico e solipsista, todos tentam interpretar os simbolismos do labirinto e se salvar das armadilhas mortais de papelão. O resultado é um painel psíquico da geração mais tecnológica da História.

segunda-feira, setembro 27, 2021

Édipo, culpa e fantasia-clichê no terror do filme 'We Need to Do Something'


Tudo começa promissor em “We Need to Do Something” (2021): um tornado aproxima-se de um bairro de subúrbio e a família abriga-se no banheiro, para ficar prisioneira depois que uma árvore caiu e bloqueou a porta. Mas parece que há algo de mais terrível lá fora. Um terror indie sintonizado com as ansiedades da atual pandemia e que minuciosamente constrói um horror psicológico baseado na linguagem extracampo com a câmera e montagem. Porém, acaba caindo na velha armadilha da matriz edipiana da psicanálise dos cânones do gênero terror hollywoodiano: desejo e culpa que alimentam a velha fantasia-clichê da “quebra-da-ordem-e-retorno-à-ordem” – o Mal como remédio amargo para redimir a ordem do núcleo familiar, mesmo que seus membros estejam despedaçados em ressentimentos uns com os outros. 

quarta-feira, setembro 22, 2021

Será que o Departamento de Estado dos EUA assistiu ao filme 'Cronicamente Inviável'?


Ao revisitarmos o filme do cineasta Sérgio Bianchi, “Cronicamente Inviável” (2000), a primeira sensação que temos é de que, mais de vinte anos depois, nada mudou ou regrediu no País: estão lá as mazelas sociais e econômicas atuais – um abismo social marcado pela humilhação, intimidação, violência policial, preconceito etc. Mas há algo mais, assustador! O filme é tão metódico e didático em mapear as feridas psíquicas nacionais derivadas do militarismo e escravidão (não é um filme sobre luta de classes, mas sobre ressentimento e desespero) que se tornou objeto de inúmeros textos acadêmicos especializados nos EUA. Será que “Cronicamente Inviável” fez parte dos documentos primários dos “brasilianistas” do Departamento de Estado norte-americano que operou a “revolução colorida” da guerra híbrida brasileira? O filme monta um quadro tão perfeito do mal-estar do povo e da má-consciência das elites que poderia ser a fonte de dados perfeita para a estratégia que acionou o gatilho da cismogênese que envenenou o psiquismo brasileiro, sustentando o golpe militar híbrido. 

quinta-feira, setembro 02, 2021

'Não Vamos Pagar Nada' infantiliza crise brasileira com medo, culpa e ressentimento



Nos tempos que a Globo atuou como partido de oposição até o golpe de 2016, a teledramaturgia foi uma das principais armas: novelas e séries para ativar os principais gatilhos imaginários: judicialização e justiçamento. Agora, a teledramaturgia está a serviço da blindagem da política econômica neoliberal apoiada pelos patrocinadores da emissora: banca financeira, agronegócio e exportadores de commodities. A produção Globo Filmes “Não Vamos Pagar Nada” (2020) é exibida na TV aberta no momento quando a política neoliberal cobra seu preço: inflação, desemprego e crise energética. Desempregadas e sem ter como comprar o básico, um grupo de donas de casa saqueia um mercado local. Para depois se confrontarem com seus maridos e a polícia. Uma perfeita peça ideológica em forma de comédia: com uma narrativa infantilizada, explora o medo e sentimento de culpa. Que no adulto se transformam em ressentimento.

terça-feira, agosto 31, 2021

Em 'True Stories' Freud encontra a América Profunda


É uma coincidência significativa o filme de David Byrne e Talking Heads, “True Stories” (1986) ter sido relançado pela Criterium Collection, em DVD e Blu-Ray, em 2018. Assim como o seu relançamento ocorreu em meio do governo de extrema-direita de Donald Trump, seu lançamento nos anos 1980 foi no meio do governo também conservador de Ronald Reagan. Naquele momento, reeleito. Byrne vai ao encontro de personagens inspirados em histórias de tabloides dos EUA: tipos da América Profunda na cidade fictícia de Virgil, Texas. Uma espécie de Vale do Silício texano, na qual o futurismo das novas tecnologias não é o suficiente para alterar a moralidade e a cultura conservadora de pessoas que não querem saber de justiça ou liberdade – tudo que querem é serem “dignas do amor”. “True Stories” ilustra o principal insight freudiano de “Psicologia de Massas e Análise do Ego”: mais do que a morte, o que mais tememos é não sermos amados.

sábado, julho 17, 2021

Zumbis e seus subtextos no filme 'A Noite Devorou o Mundo'


Esqueça séries como “Walking Dead” e apocalipses zumbis com aventuras épicas de lutas pela sobrevivência. Desde que a prestigiosa revista francesa “Cahiers du Cinéma”, no final dos anos 1960, apontou o subtexto político negligenciado pelos americanos no seminal “Noite dos Mortos Vivos de George Romero, o cinema francês sempre enxergou muito além na mitologia dos zumbis. Um exemplo é “A Noite Devorou o Mundo” (La Nuit a Dévoré le Monde, 2018, disponível na Prime Video): ao contrário dos cânones do gênero, acompanhamos o isolamento do protagonista, a progressiva normalização psíquica da catástrofe e, por fim, a solidão. Olhando a partir do nosso ponto de vista na era da pandemia, o filme ganha uma surpreendente atualidade: isolamento social e o pânico da contaminação.

terça-feira, julho 13, 2021

A incomunicabilidade da condição humana de estrangeiro em 'Paris,Texas'


Um homem caminha pelo deserto sem lembrar de nada da sua vida recente. É resgatado pelo irmão e lentamente reconstruirá suas memórias sobre porque abandonou esposa e filho. Para depois embarcar num road movie tentando reunir sua família. Ou para mais uma vez abandoná-los, paradoxalmente por amor a eles? Tudo dentro de um cenário de incomunicabilidade, ironicamente numa sociedade cercada pelos meios de comunicação e outdoors de publicidade em highways e aeroportos que salientam a condição humana de estrangeiro: alienação e estranhamento. Obcecado pela mitologia norte-americana dos desertos, highways solitárias e grandes cidades, em “Paris,Texas” (1984) o cineasta alemão Wim Wenders tenta encontrar o sublime numa cultura marcada pela saturação e banalização através dos temas do sacrifício e da empatia.

sexta-feira, maio 28, 2021

Sexo, fascismo, o "pênis" da Fiocruz e Alan Moore


Qual o sincronismo de assistir ao documentário “The Mindscape of Alan Moore” e acompanhar uma semana que começa com a carreata de Bolsonaro acompanhado de possantes motos da militância alt-right e termina com a confirmação da depoente bolsonarista Mayara Pinheiro na CPI da Pandemia confirmando áudio dela sobre ter visto “um pênis na porta da Fiocruz”? Moore (conhecido escritor de HQs) explica o argumento do gibi “Lost Girls”: como os adultos, via repressão sexual e moralismo, canalizam as energias sexuais dos jovens para a guerras e assassinatos. Argumento que ecoa as teses de Wilhelm Reich sobre a psicologia de massas do fascismo, basicamente em torno de duas teses principais: preocupação exagerada (seja pela repressão ou ansiedade) em relação à sexualidade e erotismo e representações do poder e da rudeza - importância exagerada em relações assimétricas de poder-submissão. Principalmente a relação com o simbolismo fálico através da ostentação, paranoia e angústia da castração.

quinta-feira, maio 27, 2021

'When The Wind Blows': nada mudou do holocausto nuclear à pandemia global


O impacto cultural da animação “When The Wind Blows” (1986) foi esquecido por décadas. Mas o seu relançamento em DVD revela uma estranha sensação de que as coisas nada mudaram: a Guerra Fria e a ameaça do Holocausto Nuclear podem ter passado, mas foram apenas substituídos pelo medo do terrorismo e da escalada das pandemias – sejam virais ou digitais. Com músicas de Roger Waters e David Bowie, a animação é muito mais do que um libelo pacifista: mostra como a propaganda e a desinformação, aliados à nostalgia nacionalista, nos tornam cegos e motivados mesmo diante das políticas de extermínio. Num lugar remoto no interior da Inglaterra, um doce casal de velhinhos tenta sobreviver aos primeiros impactos de uma explosão nuclear. Com fleuma e patriotismo acreditam na propaganda governamental que parece ocultar algo de muito mais sinistro. Como se sabe, a primeira vítima da guerra é a verdade.

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