Nossos dispositivos tecnológicos são cada vez mais “glocais”: o contraste entre o global e o local acaba desaparecendo e se fundindo no tempo real das redes digitais. E o celular é o dispositivo que mais captura essa natureza ao mesmo tempo dicotômica e ubíqua. Tudo ao mesmo tempo tão longe e tão perto, o que traz o imperativo moral de não mais ignorarmos crises humanitárias, sociais e políticas, cada vez mais “glocais”. “Mobile” (2018), do diretor norueguês Truls Krane Meby, traz essa discussão sobre as novas tecnologias de comunicação ao narrar o drama de um jovem refugiado sírio estabelecido na Noruega. Tendo o celular como única ferramenta para ajudar sua família, em situação de perigo na fronteira dos Balcãs.
Dentro da perspectiva culturalista da globalização já foi bastante discutido se a mundialização da economia e a revolução digital iriam destruir a realidade social local - se o tempo real imposto pelas redes telemáticas iria destruir a experiência local para substitui-la pela vivência ubíqua do ciberespaço. Até chamou-se essa nova cultura de “cibercultura”.
Mas com o conceito de “glocal” (global+local) a análise da modernidade do final de século passou a destacar uma realidade oposta: a natureza dialética da globalização, convocando a ideia da existência de uma forte conexão simultânea do global e do local. A partir daí, conceitos como “glocal” e “glocalização” passaram a transmitir a necessidade de uma leitura atenta da complexidade local/global, transmutando a vida cotidiana e os modos de comportamento preexistentes.
E para tratar desse tema do celular como um dispositivo “Glocal”, nada melhor que o diretor norueguês Truls Krane Meby – obviamente interessado no relacionamento entre pessoas e tecnologia, como demonstram os seus últimos curtas Alle Er Tilstede (2014) e a produção já analisada por este Cinegnose chamada World Wide Woven Bodies (2015) – clique aqui.
No curta Mobile (2018), temos o telefone celular como o grande protagonista (ou “leitmotiv”) da narrativa. Mas num sentido bem diferente da cinematografia recente que costuma abordar os aspectos negativos desse gadget tecnológico – os curtas Animals (2019) do norueguês Tue Sanggard, Look at Me Only (2016) ou filmes como o italiano Perfeitos Desconhecidos (2016) ou o horror Contato Visceral (2019).
Truls pega um tema atual candente na Europa (a crise dos refugiados da Síria) e o transporta para o seu país natal, mais precisamente uma pequena vila de pescadores noruegueses.
O curta
Mobile acompanha o drama de Walid, um jovem que conseguiu fugir da Síria para a Noruega. Mas a sua família ainda está presa nos Balcãs, na fronteira da União Europeia, e vive um dilema: tinham um acordo pelo preço dos papéis que iria regularizar a entrada na Europa. Mas o contrabandista arbitrariamente aumentou o preço para proibitivos 1.500 euros. Sem o dinheiro e inseguros com a situação (estão em escondidos em uma floresta com mais 60 pessoas que estão se tornando cada vez mais agressivas), planejam entrar na Europa de qualquer maneira, ilegalmente.
Passarão pela fronteira, sob o risco de serem pegos e enviados de volta à Síria. O problema é que a Noruega “é o fim do mundo” (como fala um dos contrabandistas ao telefone) e trazer sua família ficaria muito caro.
Para Walid, a milhares de quilômetros longe de seus familiares, o celular é a única ferramenta que tem nas mãos para salvar sua família.
Acompanhar uma pessoa falando ao telefone não é um tema inerentemente cinematográfico. Mas Mobile consegue criar um clima de suspense envolvente com o trabalho de edição e uma trilha que dá o peso necessário a um drama que só se agrava.
O que torna interessante a edição de Truls Meby é que ele pontua a tensão crescente da situação de Walid com planos gerais de cartão postal da linda vila litorânea norueguesa, com seus picos cobertos de neve e as folclóricas casas das famílias de pescadores. Esse contraponto entre a realidade local que inspira paz e serenidade e a realidade tensa que é passado pelo celular é que arranca uma curiosa forma de suspense – o destino de uma família nas mãos de um pequeno dispositivo une de forma dramática pessoas em pontos diferentes do planeta.
Com isso, Truls Meby consegue atingir um duplo efeito: de um lado em termos de linguagem cinematográfica; e do outro, de crítica social.
Mobile explora o efeito dramático daquilo que em linguagem cinematográfica chama-se “fora do plano” ou “fora do quadro” – quando alguém ou alguma coisa não está visível em um enquadramento, mas possui participação na história ou mesmo na cena.
Walid fala ao telefone e seu olhar tenso aponta para o vazio, enquanto a mente procura desesperadamente uma solução. Protagonista e espectador tentam imaginar o que está ocorrendo a milhares de quilômetros – aquilo que está fora do quadro, do qual só temos duas pistas: as expressões fisionômicas de Walid e as vozes da mãe e do irmão que tentam descreve o cenário de tensão na fronteira do Leste europeu.
E a crítica social: a natureza glocal dos novos dispositivos tecnológicos decididamente tornou o mundo pequeno. Mas, como diz o Homem Aranha, “com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”. Esse mundo que ficou repentinamente “pequeno” não nos permite mais a indiferença ou alienação em relação a crises humanitárias, como essa dos refugiados.
As informações e a “proximidade” dos acontecimentos nos obriga a sairmos da indiferença.
Por isso, a oposição global/local passa ser substituída por outra: solipsismo/ativismo. Em outras palavras, entre a nova alienação criada pelas redes sociais, o solipsismo (o “efeito bolha” criado pelas comunidades digitais) e o ativismo político e social utilizando os dispositivos de convergência como novas ferramentas de intervenção.
Mobile from Truls Krane Meby on Vimeo.
Ficha Técnica
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Título: Mobile
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Diretor: Truls Krane Meby
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Roteiro: Truls Krane Meby
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Elenco: Aihm Alkadhamani, Jawad Alkadhamani, Eman Kamal Aldeen
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Produção: Ragna Nordhus Midtgard
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Distribuição: Vimeo
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Ano: 2018
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País: Noruega
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