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sábado, março 14, 2020

Série "Rick e Morty": qual bateria o nosso universo alimenta?


Rick and Morty (2013-) é uma das séries de animação atuais que mais explora a complexidade da mitologia gnóstica. Mas não apenas como um simples sci-fy: fã da dupla Doc e Marty do filme clássico “De Volta Para o Futuro”, o criador Justin Roiland queria fazer uma releitura, mas sem viagens no tempo e indo mais além - como a descoberta de infinitos planetas e multiversos (às vezes com versões melhoradas de nós mesmos) nos leva à amoralidade, o niilismo e o relativismo existencial. Mas é no episódio “The Ricks Must Be Crazy” que a série consegue materializar a totalidade da cosmologia gnóstica: mundos dentro de mundos criados com uma única finalidade – manter a bateria do veículo de Rick funcionando. E o nosso mundo, gera energia para quem? Teurgia, Alquimia e Vale do Silício se encontram num dos melhores episódios da série.


Justin Roiland sempre foi um apaixonado pela dupla de personagens Doc e Marty do clássico De Volta Para o Futuro. Ao logo dos anos, Roiland tentou fazer releituras dessa dupla em diversos projetos, até que Dan Harmon ligou para Roiland dizendo que o Adult Swin (bloco de programação com animações adultas do canal Cartoon Network) queria exibir um novo show. E a primeira coisa que mostrou para ele foi uma “animação muito suja”, uma versão niilista e, portanto, “mais humana” da dupla Doc e Marty, sem viagens no tempo.
Foi a série Rick and Morty que estreou em 2013 acompanhando as perigosas aventuras interdimensionais de um cientista alcoólatra à bordo de uma espécie de hovercraft espacial, junto com seu neto Morty – para se ter uma ideia, nos primeiros minutos do episódio piloto encontramos Rick bêbado sobrevoando uma cidade e ameaçando soltar uma bomba de nêutrons que destruirá a humanidade.
 Rick é um cientista brilhante: nas suas viagens interdimensionais entre os multiversos, acaba descobrindo outras versões dele mesmo e da própria família. Muitas vezes acaba matando algumas dessas versões alternativas de si mesma e dos entes queridos. Aos poucos o valor da vida humana começa a valer muito pouco – a vida começa a se tornar um videogame: para eles, a diferença entre o certo e errado começa a desaparecer na amoralidade e niilismo.
Rick and Morty gira em torno da família Smith - os pais Jerry e Beth e a adolescente Summer e o garoto Morty. Rick é o pai de Beth que mora com eles como hóspede. Enquanto Rick é louco, excêntrico e alcoólatra (sempre dando pequenos arrotos e babando pelos cantos da boca), seu neto e companheiro de aventuras Morty é um menino de bom coração, sempre angustiado pelas enrascadas de Rick e que serve de contraponto moral ao ego maquiavélico de Rick.



Mas também Morty é introvertido, solitário e com tendências sociopatas. Rick é até tolerado pelos Smiths porque acabou sendo o seu único amigo do seu filho.
A primeira temporada gira muito mais nos dramas suburbanos da família Smith, enquanto a segunda há muito mais sci-fi, portais interplanetários, intergalácticos e interdimensionais.

Multiversos e relativismo

A cada temporada, os temas gnósticos vão se acumulando: o artificialismo da pluralidade de mundos por trás de uma modorrenta e alienante vida familiar em um subúrbio de classe média; como instituições como família e escola ajudam a criar a ilusão que esconde a complexidade da estrutura que subjaz a realidade; os infinitos multiversos que relativizam valores, deuses e religiões. 


Mas, principalmente, a amoralidade e o niilismo do cientista Ricky, que progressivamente se torna uma espécie de divindade demiúrgica ao longo das temporadas. Como um Senhor que transita livremente entre planetas e dimensões, vendo as diversas versões alternativas (pioradas ou não) de todos, vai tornando-se manipulador e de uma amoralidade que busca apenas o prazer e a autossatisfação – sempre com o contraponto do neto Morty, uma espécie de personagem kantiano que tenta manter a integridade de imperativos categóricos e valores universais. Não importa em qual mundo do multiverso. Além de lutar pela sobrevivência no meio das confusões mortais criadas pela impulsividade de Rick.
Mas é no sexto episódio da segunda temporada que encontramos o próprio Gnosticismo em sua integralidade: a cosmologia gnóstica. O título é “The Ricks Must Be Crazy”, uma óbvia alusão ao cult filme de 1980, Os Deuses Devem Estar Loucos.
Nesse episódio descobrimos qual a fonte de energia que alimenta a bateria da espaçonave de Rick. 

Um microverso na bateria

No episódio, Rick e Morty entram na bateria da espaçonave para descobrir por que o aparelho não está dando a partida. Lá Morty descobre que há um microverso inteiro que gera eletricidade para alimentar o carro de Rick, sem o conhecimento dos cidadãos desse mundo. 
Um mundo que gera energia a partir de dispositivos de movimento mecânico humano, estimulados pela adoração a Rick, uma divindade alienígena que esporadicamente vem visita-los e que é recebido como um híbrido de divindade/celebridade. Um mundo inteiro de seres inteligentes imersos em suas vidas cotidianas e alheios de que toda a realidade nada mais é do que um dispositivo que gera energia para a espaçonave de Rick.


Um planeta inteiro que gera energia não só para o veículo: para o celular e outros dispositivos do laboratório.
Logicamente, o neto Morty acha tudo moralmente abominável: “isso é escravidão!”, acusa. Rick rebate: “Eles trabalham uns para os outros. Pagam uns aos outros. Compram casas. Eles se casam e fazem filhos que os substituem ao envelhecer...”.
Os nativos daquele mundo são eternamente agradecidos ao seu “Deus”: afinal, sua máquina doada a eles gera eletricidade, alimenta as casas e negócios e melhora a vida. Enquanto o “perigoso” excedente “residual” é descartado de forma “segura” em um vulcão...
Mas um cientista chamado Zeep Xanflorp acaba repetindo o próprio processo demiúrgico de Rick. Ele comete a heresia de imitar “Deus”: cria seu próprio microverso que gerará energia para o seu mundo, interrompendo o fluxo de energia no carro de Rick. Um novo microverso dentro do qual as pessoas vivem suas vidas cotidianas alheias a tudo e que prestam honras ao Deus “Zeep” que, como Rick, trouxe a máquina de gerar eletricidade para aquele mundo.
Conforme Rick briga com seu rival microscópico Zeep Zanflorp, a série aborda a futilidade da existência e os incríveis sacrifícios imposto a um universo para sustentar o estilo de vida do Demiurgo Rick. 
Em “The Ricks Must Be Crazy”, todos os temas gnósticos esparsos nos episódios anteriores, ganham aqui a estrutura total da cosmogonia gnóstica: mundos dentro de mundos simulados e criados com o único propósito – extrair a energia para usufruto do próprio Demiurgo.

Cosmologia Gnóstica

Essa é a cosmologia proposta pelo professor gnóstico Basilides na antiguidade (viveu em Alexandria entre 117 e 138 DC) sobre um universo composto por 365 mundos, onde um plano desconhece a existência do outro. 
Temos ainda o Princípio da Correspondência do Gnosticismo Hermético, os três planos de correspondência do Universo (Físico, Mental e Espiritual) sintetizados pela seguinte máxima de Hermes de Trimegisto: “o que está em cima é como está embaixo, o que está embaixo é como está em cima”. Hermes via esses níveis como graus ascendentes da grande escada da Vida.
Nesse episódio Rick apresenta todas as características do Demiurgo: um genocida irritadiço, manipulador, ciumento e vingativo. Tal como Deus figurado no Velho Testamento bíblico.
E a hipótese mais tentadora desse episódio: se um mundo atinge o estágio de senciência tecnológica a ponto de criar mundos simulados é porque esse próprio mundo já é uma simulação de uma outra criação anterior. Aqui, o Princípio da Correspondência se encontra com a antiga ambição da Teurgia e da Alquimia: retornar a Deus exercendo as mesmas habilidades reservadas aos deuses – “imitativo dei por generatio animae”, “imitar Deus criando vida”.


Essa seria a motivação última da atual criação de mundos simulados, dos games de computadores à própria Internet. Cuja ambição mística da chamada “religião das máquinas” do Vale do Silício é transformá-la numa gigantesca Inteligência Artificial, criada a partir de uma Singularidade – sobre isso clique aqui.  
Essa capacidade de estabelecer um nível meta em seu próprio universo é o pressuposto implícito na hipótese do universo como uma gigantesca simulação de computador em um game cósmico do físico Nick Bostrom (Universidade de Oxford) e Richard Terrile (NASA) – clique aqui.

Energia espiritual

Porém, fica a questão: qual a intencionalidade por trás desses mundos simulados dentro de outros? Qual a finalidade de manter pessoas e sociedades alheias a sua própria natureza e origem?
Em Rick and Morty a finalidade é cínica: manter a bateria que faz pegar aquele hovercraft interdimensional... e colocar em funcionamento os equipamentos do laboratório e carregar o celular do demiurgo Rick.
Aqui temos literalidade e simbolismo. Assim como em Matrix (1999), esse episódio assume na literalidade a noção gnóstica de “faísca espiritual” roubada pelo demiurgo ao confinar a humanidade no cosmos que criou – em Matrix, extrair a energia humana para manter a Matrix e as próprias máquinas em funcionamento.
No Gnosticismo essa “fagulha de luz espiritual” é aquilo que nos mantém espiritualmente vivos (o “élan”) e também mantém a reminiscência das nossas verdadeiras origens: não somos desse mundo, somos exilados – esse é o significado simbólico.
Em Rick and Morty a Ciência e o Conhecimento figuram uma ambiguidade que parece ser a tensão central da série (além dos conflitos éticos e morais entre o avô Rick e o neto Morty): por uma lado é uma forma de libertação e revelação – libertar-se da mediocridade da família, da escola e do estilo de vida suburbano de classe média; mas de outro lado, a tecnociência nos conduz à amoralidade e niilismo radicais com a descoberta de infinitos mundos e planetas.
Relativismo e niilismo que pode ser sintetizada nessa linha de diálogo de Morty em um dos episódios:
Em umas das aventuras, eu e o Rick destruímos um mundo inteiro. Então caímos fora daquela realidade e viemos para essa aqui, porque aqui o mundo não estava destruído e, nessa aqui, estávamos mortos. Então viemos aqui, e pegamos o lugar deles. E todas as manhãs, eu tomo café-da-manhã a vinte metros do meu próprio cadáver apodrecido. [...] Ninguém existe com um propósito, ninguém pertence a nenhum lugar, todos vão morrer. Vem assistir TV?



Ficha Técnica 

Título: Rick and Morty (série de animação)
Diretor: Dan Harmon, Justin Roiland
Roteiro: Dan Harmon, Justin Roiland
Elenco: Justin Roiland, Chris Parnell, Spencer Grammer, Sarah Chalke
Produção: Harmonius Claptrap, Starburn Industries
Distribuição: Adult Swim, Netflix
Ano: 2013-
País: EUA

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