Estreando em longas metragens, o diretor Eddie Alcazar faz uma extrapolação alucinatória das tendências atuais do aprimoramento cosmético do autoconhecimento através de uma viagem sensorial que combina ficção científica com horror corporal ao estilo Cronenberg. “Perfect” (2019) é um filme que lembra a narrativa sensorial e abstrata de “Mãe!” (2017) de Darren Aronofsky, no qual a viagem interior do protagonista combina com arquétipos e mitologias gnósticas. Um jovem psiquicamente perturbado é enviado para uma clínica com sofisticada tecnologia de reprogramação mental através de “implantes microbiônicos” no corpo do paciente, descobrindo da pior maneira possível o preço da “pureza da mente”. As atuais tecnologias do espírito prometem o sucesso ilimitado do autoconhecimento. Mas a viagem interior pode encontrar os mais perigosos instintos que ligam às nossas origens ancestrais.
Para Freud, o processo de sublimação é o ponto de encontro entre o desenvolvimento do indivíduo e a construção da civilização. O processo civilizatório começa a partir do momento em que os instintos são induzidos a buscar outros caminhos para a satisfação, que não a imediata.
Segundo Freud, a energia vital do psiquismo humana é o instinto, a mais básica energia dos seres vivos. Como energia básica (reprodução, fome, sede, medo), ela busca gratificação imediata pois a sobrevivência do indivíduo depende dela. Porém, a busca dessa felicidade instintiva individual entra em choque com a organização social e as necessidades do grupo. É necessário um mecanismo psíquico onde o indivíduo renuncie ou adie a satisfação imediata do seu instinto em troca de uma vida social segura:
Através de um trabalho repressivo, a civilização redireciona a energia instintiva. O instinto, deixado por si mesmo, buscaria uma satisfação imediata, aqui e agora. Para que a civilização produza cultura é necessário disciplinar esta energia, redirecionando-a para alvos socialmente valorizados. A gratificação imediata é adiada na busca de uma satisfação posterior, porém, num grau culturalmente elevado – trabalho, religião, arte, cultura etc.
Porém, como ficaria esse mecanismo psíquico de sublimação numa sociedade que promove a gratificação imediata através do consumo como moralmente boa? Para o filósofo alemão Herbert Marcuse, o resultado seria a dessublimação, na qual os novos gadgets culturais (tecnologia, mercadoria e consumo) não conseguiriam mais transmutar as energias instintivas em desejo pelo futuro. Dessa forma, a civilização conviveria com o paradoxo do progresso tecnocientífico ao lado da barbárie, avanço tecnológico e violência.
Uma dessublimação que se tornaria também repressiva quando o preço desse imediatismo da gratificação é o aperto das amarras do indivíduo à disciplina do ciclo trabalho-consumo-endividamento.
O filme Perfect (2018) do estreante e visionário diretor e escritor Eddie Alcazar parte desse pressuposto freudiano sobre sublimação e civilização – num futuro indeterminado e numa sociedade altamente tecnológica um jovem protagonista flerta com seu abismo interior: a atração pela violência predadora instintiva que o torna uma espécie de assassino serial.
Disfuncional em uma sociedade que aspira à perfeição, sua mãe o envia para uma clínica para “curá-lo” a partir de uma tecnologia que possa mudar sua “percepção” a partir de “implantes microbiônicos” no seu corpo.
Entre a ficção científica e o horror corporal ao estilo Cronenberg, Perfect possui uma narrativa altamente abstrata que acaba se aproximando bastante da proposta de Mãe! (2017) de Darren Aronofsky. Principalmente porque Eddie Alcazar se concentra na jornada interior do protagonista e seus conflitos personificados por personagens arquetípicos do inconsciente coletivo da humanidade. Porém, através de uma tecnologia do espírito manipulada pelos especialistas demiúrgicos de uma instituição cujo projeto é escolher uma “jornada” para cada paciente.
Tal como Aronofsky, Alcazar ingressa na mitologia gnóstica: uma jornada interior que tenta se libertar de uma tecnologia terapêutica invasiva com propósitos demiúrgicos.
O Filme
Num futuro próximo, acompanhamos as primeiras cenas onde um jovem (Garrett Wareing) faz um telefonema desesperado para sua mãe (Abbie Cornish) implorando para que ela volte para casa de sua viagem “com as amigas”. Não sabemos seu nome (a única referência está nos créditos finais como “Vessel 13”, mas sabemos que ela está numa terrível encrenca: ao seu lado, recém-assassinada, está o corpo da sua namorada deitada numa cama.
Em seguida, sua mãe o leva numa limusine para uma clínica distante, em meio a florestas e montanhas – um lugar na qual a própria mãe passou um tempo, até ser “curada”.
O jovem passará algum tempo naquelas instalações futuristas (parece menos uma clínica e mais algum cenário de editorial de moda ou design). Logo o problema do jovem fica claro para o espectador: ele está na clínica para que não aja de forma violenta com os outros – a narrativa sugere que tenha se tornado um assassino serial.
Lá há outros pacientes, todos incrivelmente lindos, elegantes. A câmera desliza de forma suave pelos ambientes, mostrando pessoas entediadas que ocasionalmente mergulham numa piscina diante de uma paisagem estonteante.
Entre eles está Sarah (Courtney Eaton) que faz uma amizade breve com o jovem – ela parece ter alcançado o estágio mais avançado de evolução no tratamento e o tenta alertar de alguma coisa.
Nessa clínica todos as orientações terapêuticas são feitas através de interfones instalados em cada quarto, alertado que o jovem terá “escolher seu caminho”, para então iniciar o tratamento.
Um tratamento bizarro, que consiste no paciente cortar de si mesmo pedaços de carne do próprio corpo com um tipo de estilete futurista, e substituí-los por pedaços de um material plástico transparente numa bizarra variação de terapia de auto-aperfeiçoamento – literalmente cortar as partes malignas do seu ser para apresentar aos outros a versão melhor e ostensivamente mais pura de si mesmo para o mundo.
Os “implantes microbiônicos” são retirados de cartelas, semelhantes àquelas de pilhas vendidas em supermercados. E têm o poder de alterar as percepções presumivelmente “defeituosas” em algo mais socialmente aceitável.
Narrativa gnóstica
Uma clínica que atende membros de uma elite cujas “percepções” não se adequam à vida social. No caso do jovem, um “cérebro animal”, cujas origens instintivas estão na vida dura das savanas ancestrais e que não é mais adequado para o mundo de hoje em dia – a civilização e a disciplina.
O propósito é demiúrgico: forçar a abertura de cada paciente para ser feita uma “reprogramação completa”. Só assim, o paciente alcançará a “tranquilidade”, a “pureza” e a “paz da mente”.
Mas há algo de monstruoso em todo esse processo. Sarah (ocupando o mito de Sophia na narrativa gnóstica clássica) eventualmente salvará o herói dessa jornada interior guiada por propósitos abusivos de controle.
O pano de fundo da narrativa mitológica sobre o choque da ancestralidade humana com a civilização é a crítica às chamadas “tecnologias do espírito”: tecnologias do self no sentido dado pelo pesquisador francês Lucien Sfez: uma secreta aliança com as novas tecnologias computacionais ao comparar o psiquismo humano a um software, o cérebro a um hardware e a interioridade humana como uma máquina expressiva governada pelo mesmo princípio das redes telemáticas: rede, paradoxo, simulação e interação. Estas “tecnologias do Eu” chegam na crista da onda eufórica em relação à Internet e às tecnologias computacionais e de simulação – sobre esse tema leia SFEZ, Lucien, A Saúde Perfeita: crítica de uma nova utopia, Loyola, 1996.
Por isso, Perfect se associa a uma já extensa lista de filmes que tematiza essas tecnologias terapêuticas que prometem autoconhecimento e auto aperfeiçoamento: Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (2004), Almas à Venda (2007), Beyond The Black Rainbow (2010), A Cura (2016), Complicações do Amor (2017), entre outros.
O mundo daquele futuro próximo figurado em Perfect é apenas sugerido, sem entrar em detalhes. Mas sugere ser niilista e hedonista – uma cultura na qual o avanço tecnológico prometeu prazer e conforto. Enquanto continua pulsando, dentro do inconsciente humano, os instintos ancestrais ainda não redimidos ou sublimados pela sociedade.
Produzindo aquilo que Freud chamava de “mal-estar da cultura”. Mas, servindo de pretexto para as inúmeras variáveis das tecnologias do espírito invasivas.
Assim como no filme Mãe!, Eddie Alcazar propõe aos espectadores uma narrativa altamente abstrata e mitológica, enveredando-se no Gnosticismo. Isso fica claro no personagem Sarah desempenhando o papel arquetípico de Sophia.
Na mitologia gnóstica, Sophia (na tradição gnóstica simboliza simultaneamente o aspecto feminino de Deus e a alma humana) foi um “aeon” responsável pela transição do imaterial para o material, do numenal ao sensível, causado por uma falha – uma paixão que produziu um filho (o Demiurgo, Yaldabaoth, o “filho do caos”).
Sophia decai prisioneira no cosmos físico produzido pelo Demiurgo. Mas Sophia consegue ascender de volta ao Pleroma – a Plenitude. Porém, observa os homens e deseja que eles alcancem a gnose e também se libertem do mundo físico para alcançar o mundo espiritual.
O problema é que, nesse cosmos físico, alcançar essa espiritualidade é confundida com gadgets tecnológicos (ironicamente representado no filme pelo material plástico transparente acondicionado numa cartela de papelão) que prometem um atalho no autoconhecimento. Mas o que entrega é o aperto ainda maior nas amarras que nos prendem nesse mundo.
Ficha Técnica
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Título: Perfect
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Diretor: Eddie Alcazar
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Roteiro: Eddie Alcazar, Ted Kupper
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Elenco: Garrett Wareing, Courtney Eaton, Tao Okamoto
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Produção: Brainfeeder Films
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Distribuição: Breaker
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Ano: 2018
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País: EUA
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