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quinta-feira, fevereiro 20, 2020

Curta da Semana: "World of Tomorrow" - clonagem, memória e esquecimento


Em um futuro próximo uma criança atende um chamado em um videofone. É ela própria, 227 anos no futuro. Na verdade, um clone seu na terceira geração. Na busca da imortalidade, uma elite abastada passou a clonar corpos e memórias. Cópias de cópias, copiando-se a si mesmas. Mas alguma coisa se perde na sucessão de gerações de clones – eles nunca são autênticos: o futuro é tomado por uma nostalgia daquilo que não se consegue mais lembrar. Indicado ao Oscar de melhor curta de animação em 2016, “World of Tomorrow” é uma narrativa criativa comovente e engraçada de um tema melancólico. Na busca da imortalidade, a tecnologia tenta traduzir digitalmente aquilo que nos torna humanos: as memórias. Assim como a arte perde a “aura” na reprodutibilidade técnica, também corpos e memórias clonadas perderão algo que jamais conseguiremos lembrar. 


No seu texto mais conhecido, “A Obra de Arte na Época da sua Reprodutibilidade Técnica”, o pensador alemão Walter Benjamin fazia uma reflexão de como a reprodutibilidade causou uma deterioração da “aura” do objeto artístico – acaba perdendo o “aqui e agora”, sua autenticidade, o momento singular na cena do seu acontecimento, graças à tecnologia industrial de reprodução.
Dessa maneira, a arte passa a ser dominada pelos valores da exposição, da aquisição e propriedade das cópias – o modo de produção capitalista passa a faturar em cima da distribuição da arte. Tudo aparentemente em nome da democratização da arte e da cultura, franqueando para as massas a possibilidade de também fruir o objeto artístico.
Extrapolando as teses de Walter Benjamin, nessa cultura industrial baseada na reprodutibilidade técnica poderíamos encarar o projeto científico da clonagem com o paroxismo da reprodutibilidade, numa cultura obcecada pela cópia, aquisição e propriedade.
Se os produtos artísticos e culturais podem se perpetuar por séculos, tornando-se imortais, por que não a humanidade também alcançar a dádiva da imortalidade? Porque não tornar aquilo que nos define, as memórias, tecnicamente reprodutíveis. Disponíveis para download a partir de uma nuvem de dados, para serem carregados em nossos novos corpos, clonados do nosso eu original.
Mas, se como apontava Benjamin, nessa reprodutibilidade perde-se a “aura” da obra original, será que também algo se perderia nessa sucessão de gerações de clones?

Esse é um dos temas do surpreendente curta-metragem de animação World of Tomorrow (2015), dirigido, animado e editado por Don Hertzfeldt – Billy’s Ballon (1998), Rejected (2000), além trabalhar como animador em alguns episódios de Os Simpsons. O curta foi indicado ao Oscar de melhor curta de animação em 2016.
World of Tomorrow combina minimalismo e abstração, com uma explosão de cores, símbolos e um estilo de desenho que emula o traço infantil. 
                        Mas não se deixe levar pela aparente planicidade das imagens: cada enquadramento é denso de detalhes e significados, criando um mundo futuro com um incrível detalhismo técnico-científico para um curta de apenas 15 minutos. Por isso, é impossível assistir ao curta somente uma vez, para conseguir assimilar a verossimilhança do mundo do Amanhã.



O Curta

World Of Tomorrow é sobre duas Emilys. A primeira, Emily Prime, é uma criança de um futuro próximo, que no início do filme atende um chamado em um elaborado videofone/console de computador. 
A mulher que está entrando em contato com ela é uma versão de terceira geração de si mesma - chamada Emily 3G - criada por meio de um processo de clonagem em breve popular, no qual as pessoas criam suas próprias duplas e depois carregam suas memórias nelas, na tentativa de viver para sempre. 
Mas 227 anos depois que Emily Prime atende o telefone, o mundo está prestes a acabar pela aproximação de um gigantesco meteorito. Então, Emily 3G entra em contato com o seu eu original para lhe contar sobre como será sua vida nos próximos dois séculos. E trás ela para o futuro através de uma arriscada viagem no tempo.
No futuro imaginado por Hartzfeldt, a humanidade está obcecada pela preservação, imortalidade e nostalgia. Mas continua dividida por uma rígida desigualdade social. Aqueles que não conseguem se clonar armazenam suas memórias em cubos digitais, ou permitem que seus rostos mortos sejam esticados sobre máquinas animatrônicas, para que ainda possam fazer parte da vida de seus entes queridos. 
O curta cria a imagem de uma regressão infinita - clones assistindo as memórias dos clones anteriores quem também assistira as mesmas memórias da geração anterior de clones. Mas essas pessoas que se lembram de se lembrar das lembranças do passado têm que se confrontar com uma degeneração da qualidade dessa combinação clones/memórias – as novas cópias vão se tornando menos animadas (e literalmente mais azul) quanto mais ela se afastam da memória original. 
Pode parecer tudo triste e melancólico, mas Hartzfeldt consegue dar um tom criativo, engraçado e comovente. Engraçado, principalmente pelo diálogo travado entre a adulta Emily 3G e a original, Emily aos quatro anos. Grande parte do humor vem do contraste entre a lógica infantil de uma voz “fofa” e a lógica adulta em voz monocórdica (quase robótica) da Emily 3G.  
                        Grande parte da narrativa ocorre num espaço abstrato e interativo: a Internet do futuro, a “Outernet” – a versão neural das redes atuais na qual a nuvem de dados das memórias se conecta com os neurônios dos clones hospedeiros.



Há muitos momentos de comovente surrealismo: a advertência de Emily 3G, em meio às linhas grossas e névoa amarelada na Outernet, sobre os riscos de se perder nas memórias... Ou a histórias dos robôs sensíveis à luz, condenados a caminhar eternamente na Lua para fugir da noite lunar... Ou a “galeria da memória”, um museu cuja curadora foi Emily 3G com telas nas paredes com projeções de memórias... Ou ainda outro museu em cuja instalação há um clone exposto, sem memória carregada, onde os visitantes unicamente vêm para vê-lo envelhecer dentro de uma espécie de vtitrine.

A imortalidade tecnognóstica – alerta de spoilers à frente

Mas por que, à beira do fim da humanidade, Emily 3G tenta voltar ao passado para se conectar com a Emily original? Revelar o motivo seria um grande spoiler, mas tem a ver com a nostalgia “de algo que não consegue se lembrar”.
Se Benjamin falava da perda da aura na reprodutibilidade técnica, em World of Tomorrow há também algo que foi se perdendo em gerações de cópias de memórias e clonagens: o viver o presente, o aqui e agora. 



Num futuro contaminado pela nostalgia (já que se vive unicamente de memórias de segunda mão), Emily 3G está sedenta por autenticidade: o presente, a experiência do aqui e agora.
World of Tomorrow é um curta oportuno, principalmente quando sabemos que aquilo que motiva o avanço da atual tecnologia digital é o imaginário tecnognóstico da imortalidade – a possibilidade da mente (ou quem sabe, do próprio espírito) ser escaneado e transcodificado em bytes e mandado para uma “nuvem” – o céu da informação.
Aquilo que o engenheiro computacional Jaron Lanier chama de “religião das máquinas” ou “pós-humanismo”.
Esse élan místico-religioso por trás da ciência computacional é bem conhecido, como alerta o cientista de computadores e criador do conceito de realidade virtual, Jaron Lanier, de que uma nova religião (a “religião das máquinas” ou “totalitarismo cibernético”) seria uma ideia corrente entre pesquisadores e empreendedores digitais – sobre isso clique aqui.
O Vale do Silício desenvolve conceitos quase religiosos como o de “singularidade”: a crença de que em um dado momento a curva de evolução ficaria tão vertical que ultrapassaria o limite do próprio gráfico – as máquinas ficariam tão inteligentes pelo acúmulo de dados que superariam as capacidades humanas, levando a uma inteligência tão sobre-humana que seria incompreensível para os nossos pobres cérebros dependentes de sinapses bioquímicas.
E tudo o que restaria para nós, seria fazermos um upload final das nossas consciências para esse céu da informação. Tudo em busca da imortalidade.
E a clonagem seria um conveniente complemento para esse projeto: clonar o nosso “hardware” dentro do qual rodará o nosso “software” espiritual.
Mas, como alerta World of Tomorrow, até o fim do mundo seríamos atormentados pela nostalgia de algo que não se consegue lembrar.

Ficha Técnica 

Título: World of Tomorrow (animação)
Diretor: Don Hertzfeldt
Roteiro: Don Hertzfeldt
Elenco: Julia Pott, Winona Mae, Sara Cushman
Produção: Bitter Film Production
Distribuição: Vimeo
Ano: 2015
País: EUA

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