O mais importante na grande mídia não é o que ela pauta. É o que ela não diz. O jornalismo corporativo tem o dom de atribuir invisibilidade a fatos que não atendem a atual pauta que sustenta a estratégia semiótica de guerra criptografada: a pauta identitária, cultural e de costumes. A invisibilidade do documentário “Democracia em Vertigem” na premiação do Oscar e os 20 dias de greve dos petroleiros são exemplos: depois que o documentário “perdeu” e a greve foi suspensa, de repente a mídia descobriu que existiam, mas como “derrotados”. O que há em comum nesses fatos “invisíveis”? São contra-pautas – revelam temas econômicos que mostram a insustentabilidade da agenda neoliberal. Grande mídia fala agora em impeachment de Bolsonaro depois do ataque à jornalista Patrícia Campos? Agora colunistas da grande mídia descobriram o “projeto de poder autoritário” de Bolsonaro? Mais uma tática de jornalismo Snapchat que hipnotiza a esquerda. Mas a retroescavadeira de Cid Gomes jogada contra policiais milicianos amotinados no Ceará mostra que não se combate o fascismo com flores, mas com uma contra-pauta que faça a esquerda abandonar as lacrações das guerras identitárias-culturais.
Mais uma vez este Cinegnose vai citar uma frase emblemática do velho Leonel Brizola, que deveria ser o princípio metodológico fundamental par a esquerda: “Quando vocês tiverem dúvidas quanto a que posição tomar diante de qualquer situação, atentem: se a Rede Globo for a favor somos contra. Se for contra, somos a favor”.
Em outras palavras: o mais importante na grande mídia não é o que ela pauta. É o que ela não diz. Aquilo que é omitido e se torna invisível para a agenda midiática, é o que dá o verdadeiro significado para tudo que é destacado nas escaladas dos telejornais ou nas primeiras páginas dos jornais.
Se não, vejamos. Até há poucos dias, diante dos arroubos, bravatas e medidas intempestivas do presidente da república e seus filhos, a grande mídia assumia uma espécie de “jornalismo de faxina”. Passava o pano e dizia que tudo era “polêmico”. Nunca se leu ou ouviu tantas vezes essas expressões: “declaração polêmica”... “governo polêmico”... “ministro polêmico”. Com algumas variações como “intempestivo”, “falar sem pensar” e outras que limpavam a poeira, relativizando declarações.
Nunca se ouviu também falar tanto em “é o novo normal”. Outros cravavam que o País estava sendo dominado pela “cultura do foda-se”...
Mas, de repente, parece que a grande mídia fez uma surpreendente descoberta: Bolsonaro e o General Augusto Heleno têm um “projeto de poder autoritário” e estão “forçando os limites da Democracia”.
As ofensas de cunho sexista de Bolsonaro com trocadilhos em torno da expressão “furo de reportagem” contra a repórter da Folha Patrícia Campos parecem ter sido a gota d’água. Por exemplo, num estalo a colunista do conservador Estadão, Vera Magalhães, escreve sobre impeachment por “crimes de responsabilidade e quebra de decoro”.
A revista informativa igualmente “faxineira”, Isto É, passou a pedir abertamente o impeachment do capitão da reserva dizendo que “o chefe de Estado já deu caudalosas razões para a abertura do processo de impeachment”. Fala também em “quebra de decoro e de ferir a liturgia do cargo que ocupa”.
E o que diz a Globo, a chefia da faxina dos últimos meses? A “voz dos mercados”, Miriam Leitão, alertou de que “assim morrem as democracias e nascem as tiranias” e que “o presidente radicalizou e está descontrolado”.
O áudio “vazado”
E, por último e não menos importante, a grande imprensa dá destaque ao áudio “vazado” (sempre quando a grande mídia fala em “vazamento” devemos desconfiar do oportunismo de um fato supostamente aleatório...) do general Heleno – na presença do Ministro Paulo Guedes e de Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) disse: Nós não podemos aceitar esses caras chantagearem a gente o tempo todo. Foda-se!”.
Muito sensacional, impactante! Revela-se a vocação democrática da grande mídia que arma as garras na defesa da ordem democrática e do Estado de Direito!
Mas, o que a grande mídia não mostra? O que jornalões e telejornais condenam à invisibilidade parcial ou total?
Somente alguns exemplos entre inúmeros. Para começar, a indicação de Democracia em Vertigem para o Oscar de Melhor Documentário. No início, críticos especializados da grande mídia audiovisual usavam a indefectível expressão “polêmico” para qualificar a produção que descrevia como a elite brasileira se cansou da Democracia e articulou o impeachment de 2016.
Para depois condena-la à invisibilidade, até chegar a noite da entrega dos prêmios... só para dizer que Petra Costa tinha “perdido o Oscar” – quando somente a indicação já tinha sido uma vitória. Menos para a mídia que tirou o pó e escondeu tudo debaixo do tapete.
O mesmo destino teve a greve dos petroleiros: depois de 20 dias de paralisação, só ganhou as manchetes quando foi suspensa. E ainda assim, escondendo a vitória do movimento – a suspensão da demissão dos mais de mil empregados da Fábrica de Fertilizantes do Paraná, Fafen-PR.
Para a grande mídia, a liderança do movimento suspendeu a greve para “dialogar em Brasília com a Petrobrás em audiência do Supremo Tribunal do Trabalho”. Ou seja, o vitorioso fora o ministro Ives Gandra Martins, do TST, que havia declarado a greve como ilegal. E não os petroleiros que reverteram as demissões.
Enquanto isso, a notícia de que a produção industrial brasileira fechou 2019 em queda de 1,2%, simultânea à disparada do dólar e saída em massa de dólares do País foram recebidos com a expressão eufemística “sinais contraditórios da economia”, segundo o solerte Gerson Camarotti na Globo News, tentando apagar o incêndio.
Globo finge que não vê... |
Jornalismo Snapchat
Mas o gênio irascível do ministro Paulo Guedes veio salvar o dia: a sua ironia contra as empregadas domésticas conseguiu sequestrar a pauta, alimentando a agenda identitária da grande mídia que serve de tática diversionista para desviar a atenção do respeitável público.
Discutir se Guedes foi preconceito ou ofensivo é melhor do que a ter que falar dos incômodos “sinais contraditórios” que possam colocar em xeque a agenda neoliberal.
Mas depois do jornalismo de faxina, também entra em ação o chamado “Jornalismo Snapchat”: a crise dos serviços públicos com a fila de 2 milhões de pedidos de concessão da aposentadoria, além da fila de 3,5 milhões que esperam pelo Bolsa Família, foram noticiados em brevíssimas edições para depois ser esquecida – assim como no aplicativo de mensagens Snapchat onde cada “snap” dura um breve período, para depois ser excluído do aplicativo e servidores.
E o que há em comum em todos esses fatos que ganharam o dom da invisibilidade pela grande mídia? São fatos que emergem da esfera econômica:
(a) Mais do que relatar os fatores políticos que levaram ao impeachment, Petra Costa revela a elite que se perpetua no Estado e que banca a República e que, às vezes, também se cansa da Democracia: Banqueiros (os credores do Estado), as famílias proprietárias da grande mídia (os defensores do Estado) e as construtoras (responsáveis pelo aço e cimento da infraestrutura do Estado);
(b) A greve dos petroleiros se reveste de importância crítica (e a grande mídia sabe disso) porque revela a possibilidade de resistência contra a política de privatizações aceleradas da infraestrutura estratégica nacional;
(c) Os “sinais contraditórios” da economia são sintomas de que a política econômica de austeridade fiscal não produz desenvolvimento sustentável;
(d) E que a extensão da paralisia dos serviços públicos aprofundará ainda mais a desigualdade e a insustentabilidade econômica.
Contra-pauta econômica
Aqui começamos a compreender o gênio de Brizola que a esquerda jamais entendeu: aquilo que a grande mídia NÃO quer dizer é mais importante do que ela pauta. Mas o que acompanhamos é como esquerda sempre é sequestrada pela pauta da grande mídia, sempre reagindo tal como o cão de Pavlov ao ouvir a sineta do laboratório: saliva à espera da comida!
Ora, por que, de repente, parece cair a ficha na cabeça da grande mídia para ela descobrir que Bolsonaro tem um projeto de poder antidemocrático e tirânico? Por que esse timinig atrasado digno de um Rubens Barrichello?
A grande mídia fala em impeachment? Ora, nos EUA Trump chegará ao final do seu mandato com a oposição e a mídia falando diariamente em impeachment. Mais um exemplo da estratégia semiótica de extrema-direita de sequestro da pauta midiática – estratégia diversionista, quando se sabe que, na real, um impeachment depende de uma conjunção astronômico-política incapaz de ser criada pelas oposições. Tanto Trump quando Bolsonaro sabem disso. E por isso, mandam “bananas” para os jornalistas porque, afinal, foram eles que os colocaram no poder.
Este Cinegnose vem insistindo que Bolsonaro, seu clã e General Heleno não são oponentes comuns – e muito menos militares daqueles velhos tempos da ditadura brasileira dos anos 1970. Se lá no passado tínhamos a estratégia violenta e tosca da censura, hoje estamos diante de uma calculada estratégia semiótica criptografada.
Assim como na criptografia onde os protocolos de transmissão modificam a informação para impedir a compreensão pelo inimigo, também governo e grande mídia inundam a opinião pública de informações contraditórias, polêmicas diversionistas para retirar o foco daquilo que realmente importa e que é sensível ao conjunto mídia/Governo: o fracasso da política (?) econômica e a exposição da luta de classes – a liquefação do Estado pela banca financeira credora da dívida pública, privatizando o lucro e socializando o prejuízo: liquidação dos programas e garantias sociais.
Se seguisse o sábio aforismo de Leonel Brizola, a esquerda procuraria uma contra-pauta (é a Economia, estúpido!) ao invés de ficar a reboque da grande mídia num comportamento reativo.
O problema é que também as esquerdas (parlamentar, namastê e identitária) são prisioneiras também da cultura da “lacração” das mídias sociais: a cada tirada, comentário ou “denúncia” em reação a alguma provocação de extrema-direita, a blogosfera dita progressista vibra ao comemorar que fulano de tal foi “enquadrado” ou tomou uma “invertida”.
Fascismo não se combate com flores
Os irmãos Cid e Ciro Gomes deram uma verdadeira lição para essa esquerda lacradora e refém da pauta da grande mídia no episódio da “greve” da polícia militar do Ceará - na verdade um motim em tons milicianos com encapuzados mandando fechar o comércio e saqueando carros da própria polícia.
A cobertura da imprensa corporativa da crise da segurança cearense seguia o tradicional script de todas as crises de segurança: uma cobertura formal, destacando a decisão da Justiça pela ilegalidade da greve de policiais militares com supostos atos pontuais de insubordinação – como, por ex., três policiais presos em flagrante esvaziando pneus de viaturas policiais.
Isso até o senador licenciado Cid Gomes investir contra policiais encapuzados que bloqueavam um quartel para impedir o trabalho da polícia militar. Primeiro com um megafone: “Tô aqui desarmado e vou enfrentar quem armado estiver, sob o custo da minha vida! Mas ninguém vai fazer o que esses bandidos estão fazendo aqui em Sobral!”.
Para depois dirigir uma retroescavadeira contra uma barricada formada por encapuzados, até tomar dois tiros calibre 40 propositalmente letais mirados na altura do peito.
As imagens de Cid Gomes sendo conduzido por populares, sangrando e cercado por celulares fotografando ou filmando, foi icônica e, por isso, com alto rendimento semiótico – isto é, um evento que pode criar múltiplas conexões de significados. Aquilo que a Semiótica chama de “semiose”:
(a) Os disparos contra o senador forçaram a cobertura jornalística subir para um outro patamar: não é mais apenas um movimento de policiais por aumento salarial. De repente, um portal como o G1 começa a usar o termo “amotinados” ao invés de “manifestantes” ou “grevistas”.
O ato “tresloucado” de Cid Gomes fez chamar a atenção que há algo mais por trás de uma greve que promete se alastrar para outros estados: o poder das milícias associadas a lideranças parlamentares bolsonaristas.
Isso potencialmente iria além do limite da indignação da grande mídia com Bolsonaro: bem ou mal, o capitão da reserva é o fiador da agenda neoliberal de reformas tão desejadas pelo mercado e a banca financeira. No máximo, as críticas contra o presidente chegam ao impeachment por “falta de decoro”, “descontrole”, “radicalização” e “pouco apreço à liturgia do cargo”. Falam até de “projeto de poder autoritário”, personalizando a figura. Sem conectá-la com uma rede mais ampla de crime organizado.
O ato de Cid Gomes foi sentido pelo presidente, ao ponto de contra-atacar: “agora a Globo vai botar a culpa em mim pelos tiros em Cid Gomes”...
(b) Não faltaram as comparações nas redes sociais entre o atentado contra Bolsonaro em 2018 e os tiros sofridos por Cid Gomes em Sobral. Enquanto vemos fotos do senador sendo levado trajando uma camiseta ensanguentada, a facada no abdômen no então candidato a presidência sequer manchou sua camiseta, e a faca, de sangue...
(c) “Fascismo não se combate com flores”, falou o irmão Ciro Gomes aos jornalistas após visita no hospital onde Cid foi submetido a procedimentos de retirada das balas. E concluiu: “E nós aqui vamos enfrentar com armas, se for necessário!”.
O gesto “intempestivo” de jogar uma retroescavadeira contra o batalhão da polícia militar amotinado revelou o que o sequestro da pauta midiática pelos temas identitários, de combates culturais e de costumes pretende esconder: o real projeto do bolsonarismo de se cercar de militares no governo como fosse num forte Apache, enquanto milícias e polícias militares se imiscuem por meio de motins para conquistar ruas e cidades pelo Brasil afora.
As imagens fortes de Sobral mostraram a urgência de a esquerda criar uma contra-pauta, e parar de perder tanto tempo em redes sociais com “lacrações”, “invertidas” e “enquadramentos” e ir às ruas...
Como não se cansa de dizer o velho jornalista Mino Carta, o País precisa de “sangue escorrendo nas calçadas”...
“Violência é a parteira da História”, dizia Karl Marx. Nesse momento, a extrema-direita parece ser mais marxista do que a própria esquerda.
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