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quinta-feira, outubro 07, 2021

Geração millennial perdida em um labirinto mitológico no filme 'Dave Made a Maze'


A Geração Millennial (ou “Geração Y”, a primeira a nascer e crescer cercado pelas mídias digitais) sempre foi caracterizada pela ansiedade, imediatismo, instabilidade emocional e falta de foco. Então, como representantes dessa geração se comportariam perdidos no interior de uma versão século XXI do mitológico labirinto de Creta, com Minotauro e tudo? Essa é a proposta da comédia “Dave Made a Maze” (2017): Dave, um jovem artista que nunca terminou nada que começou, decide fazer um labirinto de papelão na sala de estar até que alcance a perfeição. Em consequência, seu interior começa a ficar enorme, ganha vida própria e até um Minotauro começa a persegui-lo. Seus jovens amigos millennials também entram na obra para tentar para salvar Dave, para depois se verem perdidos e perseguidos pelo monstro mitológico. Através do autodistanciamento irônico e solipsista, todos tentam interpretar os simbolismos do labirinto e se salvar das armadilhas mortais de papelão. O resultado é um painel psíquico da geração mais tecnológica da História.

A origem de todos os labirintos no Ocidente está no palácio cretense de Minos, de estava preso o Minotauro e de onde Teseu só conseguiu escapar com a ajuda do fio de Ariadne. 

Do labirinto grego da Antiguidade aos labirintos das catedrais góticas (série de círculos concêntricos interrompidos em certos pontos formando um trajeto inextricável), o simbolismo mais geral é o do caminho que conduz o homem ao interior de si mesmo, a uma espécie de santuário interior e escondido no qual reside o mistério do psiquismo humano. 

Caminhar pelo labirinto seria concentrar-se em si mesmo, em meio aos mil rumos de sensações, emoções e ideias, eliminando obstáculos à intuição e fazer voltar a luz. A ida e volta no labirinto seriam o símbolo da morte e da ressurreição espiritual.

Como a geração Millennial (ou Geração Y), reconhecida pelo seu imediatismo e instabilidade emocional, lidaria com esse complexo ascético-místico? Ou mais: como millennials de comportariam encerrados em um simbolismo que de repente se torna real, ganha vida própria e ameaça prende-los indefinidamente?

Essa é a proposta do filme Dave Made A Maze (2017), estreia do cineasta Bill Waterson acompanhando os insights artesanais criativos em papelão, papel-machê e celofane dos filmes de Michel Gondry como Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças (2003), Sonhando Acordado (2006) ou A Espuma dos Dias (2013).

Produto de muitos anos de trabalho dedicado por uma equipe que se recusou a desistir, este é um filme repleto de invenções visuais deslumbrantes. Dentro do labirinto, criações de papelão e papel ganham vida de maneiras espetaculares, pássaros de origami voando pelo ar e feras com tentáculos espreitando em pântanos de papel de seda. 

Dave Made a Maze utilizou mais de nove mil metros quadrados de placas de papelão para criar um mundo de fantasia com alusões não só ao clássico labirinto cretense, mas também referências a Alice no País das Maravilhas, 2001 de Kubrick entre outras produções cuja lembrança fará a delícia dos cinéfilos.



O filme é uma fantasia caprichosa sobre um protagonista que se perde em um labirinto construído em uma sala de estar criado por ele mesmo. Um típico jovem adulto millennial com muitas ideias na cabeça, mas que nunca conseguiu terminar o que começou. Decidido a fazer um acerto de contas consigo mesmo, decide levar às últimas consequência o seu projeto de fazer um labirinto de papelão. Para descobrir que ele é muito maior por dentro, e se perder em algo que ganhou vida própria, está crescendo e até criou um monstro que estava faltando: um sanguinário minotauro com chifres também de papelão que o persegue implacavelmente.

Tudo em tom de comédia tipicamente millennial: blasé, com personagens bacanas, culturalmente expertos a ponto de acharem que nada deve ser levado a sério – nem mesmo as mortes que acontecem no trajeto sinuoso de resgate do protagonista Deve do interior da sua própria criação.

Dave Made a Maze é um filme sobre todas as mazelas da primeira geração que nasceu e cresceu em meio aos avanços tecnológicos que mudariam a face do mundo: Internet, cibercultura e redes sociais. Portanto, é um filme sobre instabilidade emocional, imediatismo, ansiedade e falta de foco, traços de uma geração com sérias dificuldades em criar raízes na História.




O Filme

Dave ( Nick Thune ) é um artista atormentado por bloqueios criativos. Quando sua namorada, Annie (Meera Rohit Kumbhani), sai para o fim de semana, ele concebe um pequeno projeto de artesanato para fazer os sucos fluírem. Ao retornar, Annie fica perplexa ao descobrir os resultados ocupando a sala de estar do apartamento: Dave construiu um labirinto de papelão no interior de uma espécie de pequeno castelo do mesmo material e, embora responda alegremente à saudação dela e pareça estar a apenas alguns centímetros de distância, ele não consegue sair.

“É maior por dentro”, ele diz, implorando que ela não sacuda as laterais (o que ele experimenta como um grande evento sísmico no interior do labirinto), nem entre. Ele dá permissão a ela para ligar para seu melhor amigo, Gordon (Adam Busch), para pedir ajuda. Mas muito em breve a crise absurda evoluiu para uma festa, com os amigos do casal - incluindo o insistente documentarista Harry (James Urbaniak) e sua equipe de filmagem - prontamente invadindo os confins de papelão para “resgatar” seu anfitrião oculto.

Eles descobrem imediatamente que é absurdamente maior por dentro - muito, muito maior. A imaginação de Dave parece ter dado ao labirinto vida própria, desafiando a lógica tanto direcional quanto espacial. Mas também oferece armadilhas mortais para os incautos. A primeira a morrer é a exagerada Jane (Kristen Vangness). Ainda assim, sua morte sangrenta é retratada em termos de fios vermelhos e confetes, fazendo de Dave Made a Maze transitar entre a comédia e a paródia aos cânones do gênero do terror. 




Outros perigos encontrados incluem um ataque de pássaros de origami, uma “parte íntima feminina gigante em crescimento” cujo apetite é muito freudiano. Além do próprio Minotauro do labirinto (feito pelo lutador da WWE John Hennigan em uma máscara de touro de papelão).

Gordon analisa sucintamente o problema de Dave: “Ele fica todo entusiasmado com as coisas, mas nunca termina nada”. A solução em que o próprio Dave se depara é que, pela primeira vez, ele simplesmente deva concluir este projeto - realmente terminar de construir o labirinto - para salvar a si mesmo, Annie e quaisquer outros sobreviventes.

A primeira impressão em Dave Made a Maze é um traço marcante millennial que é explorado em todo o filme: o autodistanciamento irônico - cada performance é revestida de um ligeiro distanciamento seco. Embora os personagens queiram escapar e salvar suas vidas, eles nunca parecem estar verdadeiramente com muito medo. Os personagens secundários são todos parecem incrivelmente distraídos e base. Enquanto isso, todos os jogadores principais têm suas próprias histórias secundárias e pontos fracos, muitas vezes contrastando com a carnificina. Dave está desestimulado com sua vida, Annie não tem certeza sobre seu relacionamento, a equipe do documentário - liderada pelo ator James Urbaniak - está mais preocupada em conseguir a foto perfeita - não importa quem morra.

Niilismo e autodistanciamento irônico parecem ser completados com o labirinto de mentirinha em papelão e o sangue representados for fios de lã vermelha. São traços marcantes de uma geração tão cercada de tecnologias que acabou criando um mundo solipsista e introvertido, assim como o labirinto de Dave.




Narrativa em abismo e solipsismo – Alerta de Spoilers à frente

Para reforçar o tom de autodistanciamento, a narrativa é construída em abismo: acompanhamos a filmagem de um documentário sobre a epopeia de Dave no labirinto dentro do próprio filme que assistimos. O documentarista Harry praticamente dirige as reações dos personagens no labirinto, na busca da captação das melhores cenas.

É ao mesmo tempo curioso e sintomático acompanharmos a releitura que um filme de estética millennial faz da mitologia do labirinto do Minotauro de Creta. O monstro mitológico representa o amor culpado, desejos injustos, erros recalcados e oculto no inconsciente do labirinto. É a própria representação da dinâmica psíquica do confronto do nosso inconsciente com a realidade.

Esse talvez seja a grande dificuldade dessa geração: a sua realidade é solipsista, fazendo perder o peso existencial, religioso ou simbólico dos acontecimentos. Por isso o término do filme numa atmosfera clichê de “quebra-da-ordem-e-retorno-à-ordem - Todos se encontram de volta ao apartamento e começam a limpar todo o papelão. Harry incumbe Gordon de contar às famílias daqueles que morreram e pergunta a Dave como eles deveriam chamar o documentário. Dave sarcasticamente sugere o nome Dave Made a Maze”. Enquanto Dave e Annie jogam o último pedaço de papelão na lixeira, eles não percebem o Minotauro saindo junto com um pássaro de origami. O Minotauro se afasta enquanto faz um sinal ILY (com os dedos, significando “I Love You”) para os espectadores.

Também sintomático o jogo de palavras em inglês entre “maze” e “labyrinth”. Na verdade, estiveram muito mais num “maze” (confusão, desorientação) do que em um autêntico “labyrinth” (o labirinto, propriamente dito).

O resultado é, mesmo para uma comédia, a perda do peso simbólico e antigo do labirinto, da mitologia até o cinema.  


 

Ficha Técnica 

Título: Dave Made a Maze

Diretor: Bill Watterson

Roteiro: Steven Sears, Bill Watterson

Elenco: Meera Kumbhani, Nick Thune, Adam Busch, James Urbaniak

Produção: Butter Stories, Dave Made An LLC

Distribuição:  Brownie

Ano: 2017

País: EUA

 

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