Quantas vezes, em diversas situações, não falamos em “dar um tempo” ou “esperar a poeira baixar”. É como se tentássemos estancar a seta entrópica do tempo – o Tempo: a grande falha cósmica que condena toda a Criação ao fim, desordem e caos por meio do princípio termodinâmico da entropia. Mas também capaz de conspirar contra os nossos desejos e projetos pessoais. “Things Will Be Different” (2024) é um sci-fi ao mesmo tempo um thriller de ação, um quebra-cabeça e um drama de relacionamentos – um casal de irmãos rouba um banco e procura um lugar para se esconder até tudo se acalmar. Onde? Numa fenda aberta no tecido do tempo, um limbo atemporal entre passado, presente e futuro. Mas, como heróis prometeicos, terão que enfrentar não a polícia terrena, mas as autoridades do Tempo.
Em meio a um relacionamento complicado e cheio de atritos, quantos namorados já não chegaram para o seu parceiro e falou: “vamos dar um tempo?”. Como se quisesse estancar o próprio fluxo do tempo que está corroendo o relacionamento.
Ou quando você está enfrentando uma série de dificuldades e não encontra uma solução acaba optando por não fazer nada para “esperar a poeira baixar”. Novamente, o desejo de estancar o tempo, dessa vez como se quisesse ocultar-se em alguma espécie de nowhere onde o fluxo temporal não existisse.
Parece que a existência é governada por dois princípios, aparentemente antagônicos: de uma lado, a causalidade newtoniana – o mundo racional governado pelas regras de causalidade; do outro, o caos e as leis da termodinâmica – apesar de regido pelas causalidade, Deus parece jogar com dados o jogo do Universo: o cosmos é caótico, tende para um progressivo estado de desordem devido a um problema básico: a flecha do tempo. Todos os sistemas tendem da ordem para a desordem pela entropia, isto é, com o passar do tempo a energia é dissipada e o sistema entra em caos e desordem.
Para a mitologia gnóstica, essa é a condição trágica do Demiurgo que criou esse cosmos: O Demiurgo cria ciclos de tempo como imitação pobre da eternidade atemporal de onde decaiu. Porém, tudo o que consegue é a progressão causal, isto é, a flecha do tempo caracterizada pela inércia e entropia. Enlouquecido, aprisionou a humanidade nesse cosmos para extrair dela a energia necessária para manter o cosmos em funcionamento, adiando o caos final.
Algo assim como o filme Matrix, no qual as máquinas usam a energia psíquica humana para manter a Matrix em funcionamento, além das próprias máquinas.
Dessa maneira, o tempo (e sua consequência, a desordem entrópica) é a grande falha cósmica da Criação, aprisionando a ambos, a humanidade e o próprio Demiurgo.
As narrativas ficcionais, tanto na literatura quanto no cinema, são tentativas imaginárias da humanidade dominar essa natureza entrópica do cosmos: subverter a seta do tempo, voltando para trás ou rompendo a sequencialidade causal, saltando diretamente para o futuro.
Mas, por que não imaginar uma outra forma de subversão: o estado de suspensão absoluta do tempo? O ficar “entre”, encontrar uma fenda na qual a seta do Tempo não exista, realizando aquele desejo dos namorados num relacionamento turbulento ou diante de problemas insolúveis – “dar um tempo” ou “esperar baixar a poeira”.
O filme Things Will Be Different (2024) faz exatamente isso, criando uma das narrativas mais inovadoras sobre um tema tão batido, a viagem no tempo.
O filme acompanha dois irmãos, Joseph (Adam David Thompson) e Sidney (Riley Dandy) que estão com duas mochilas cheias de dinheiro – eles assaltaram um banco e precisam de um esconderijo para fugir da polícia. Mas Joseph tem uma carta na manga: um caderno com instruções detalhadas sobre como encontrar, em uma fazenda remota, um portal temporal no qual mergulharão no esconderijo perfeito: numa espécie de purgatório atemporal, uma fenda na seta do tempo dentro da qual darão um tempo até a poeira baixar. Apenas duas semanas dentro de uma versão alternativa daquela fazenda, presa em algum lugar entre passado, presente e futuro.
Escrito e dirigido pelo cineasta estreante Michael Felker é ao mesmo tempo um thriller de ação, um quebra-cabeça, um drama de relacionamento e um show de som e luz, tudo de uma só vez. Cria um mundo com suas próprias regras e conta uma história em sua própria linguagem visual.
Parece que chegará a uma conclusão óbvia, mas depois vira tudo em vários plot twist para introduzir novos elementos que criam novo quadro para o filme.
O Filme
Things Will Be Different abre com um o áudio de uma conversa telefônica que define a premissa do roteiro. A dupla irmãos Joseph e Sidney têm mochilas cheias de dinheiro, fruto de um assalto. Tudo o que eles precisam é de um lugar para se esconder até que tudo se acalme. Que lugar melhor para fornecer a eles o refúgio perfeito do que um lugar em uma linha do tempo totalmente diferente?
Joseph (ou Joe) tem algum tipo de plano de fuga e leva sua irmã para um lugar que funciona como um portal para viagens no tempo. Uma Sidney relutante segue o plano de Joe, mas não sem avisá-lo para trazê-la de volta em segurança em duas semanas para poder retornar para sua filha, Stephanie. E também saldar muitas dívidas com aquele dinheiro.
Armados com rifles de mira telescópica, chegam a uma fazenda remota e abandonada, expulsam um grupo de arruaceiros e invadem a casa apressados.
O plano parece simples. Joe tem as instruções escritas em um caderno, que inclui um roteiro envolvendo sincronização dos relógios da casa. Encontram a porta de uma espécie de closet que os transporta aparentemente para o passado — uma época na década de 1950. A casa até então em ruínas de repente se torna um lar de boas-vindas. Com uma geladeira se reabastece continuamente e uma dispensa repleta de comidas e bebidas. Parece que o plano de Joe está prestes a ser ainda mais tranquilo do que ele imaginava.
Porém, eles não viajaram para o passado, mas para uma espécie de limbo atemporal, entre o tecido do tempo – passado, presente e futuro.
A salvo da polícia no interior desse limbo, os irmãos passam essas duas semanas para repararem seu relacionamento, abalado por tragédias familiares e intolerâncias mútuas.
As duas semanas eventualmente passam e é hora de se despedir de seu refúgio. Mas o inesperado acontece - Joe e Sid descobrem que a porta para acessar o portal está bloqueada. Uma tábua está pregada na porta com uma mensagem que pede que eles iram ao moinho ao lado da casa. Chegando ao moinho, eles encontram um baú de ferro contendo um gravador e instruções para “definir o ciclo”. A configuração do ciclo refere-se ao estabelecimento da conexão entre dois cronogramas – o limbo e o futuro.
Uma vez que o ciclo é definido, Joe é instruído a usar o gravador de fita como fosse um walkie-talkie para se comunicar com “eles”.
É nesse ponto que Things Will Be Different se aproxima de uma obra clássica do escritor gnóstico pop Philip K. Dick: o pequeno conto “Os Agente do Destino” (“Adjustment Bureau”), adaptado ao cinema em 2011 – autoridades que atuam nos bastidores do tempo, cuja missão é corrigir pequenos desvios criados pelo acaso e fazer as vidas das pessoas mais importantes seguirem o trajeto previsto nos planos decididos pelo “Presidente” (o filme sugere ser o próprio Deus criador).
Em Things Will Be Different, as autoridades irão puni-los por terem burlado a seta do tempo – para azar deles, conseguiram até escapar da polícia, mas não dessa espécie de polícia do Tempo.
Mas há uma saída negociada: terão que, em contrapartida, eliminar um “intruso” que também invadiu o limbo temporal em que eles estão. Tudo o que devem fazer é aguardá-lo, para depois matá-lo. O que se transforma numa espécie de “Esperando Godot”, obra do teatro do absurdo de Beckett – o que deveria ser uma espera de duas semanas, transforma-se em um ano de angustiante espera.
Enquanto a relação entre eles se deteriora – o que deveria ser um reinício para reconstruir a vida, vira um pesadelo.
Mas o “intruso” acaba aparecendo, porém com a firme determinação de matar os irmãos.
A partir desse ponto, o espectador deverá enfrentar um quebra-cabeça de loopings e paradoxos temporais.
O filme reserva um destino prometeico para os protagonistas – como Prometeu, eles roubaram o fogo dos deuses: tentaram ludibriar a própria seta entrópica do Tempo, ou seja, o próprio tecido da realidade.
Quando a ciência prometeica (representada desde personagens como Frankenstein até filmes como “Matrix” e “Show de Truman”) procura se igualar a Deus ao tentar criar a vida ou manipular o continuum tempo/espaço, na verdade inconscientemente está procurando imitar o Demiurgo, incorrendo no mesmo destino trágico.
O filme comprova como um filme indie, de baixo orçamento e sem efeitos especiais (sejam práticos ou por computação gráfica) pode criar uma intrigante ficção científica baseada apenas na força do roteiro, edição, montagem e design de áudio - guincho de um passo nas tábuas do chão ou do som distante de algo (ou alguém?) movendo-se através do milharal que faz fronteira com a fazenda, que é o principal local para a história.
Este conjunto principal é explorado tão obsessivamente, com repetições estratégicas, que a fazenda começa a parecer uma ilha amaldiçoada de terra nas planícies americanas - um espaço que pode parecer figurativo ou real, dependendo do que está acontecendo na história.
Ficha Técnica |
Título: Things Will Be Different |
Diretor: Michael Felker |
Roteiro: Michael Felker |
Elenco: Adam David, Thompson, Riley Dandy, Chloe Skoczen |
Produção: Last Life, Rutic Films |
Distribuição: XYZ Films |
Ano: 2024 |
País: EUA |