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sexta-feira, outubro 25, 2024

Os relacionamentos dos vivos se deterioram mais rapidamente do que os zumbis em 'Lá Fora'


O subgênero hollywoodiano sobre o fim do mundo tem uma contradição cuja solução é sempre artificial: o apocalipse é de natureza coletiva, mas o espectador somente consegue se identificar com dramas pessoais. A solução é o clichê de protagonistas que, apesar de tentarem salvar o mundo, sempre arrumam um tempinho para uma discussão de relacionamento: salvar um casamento, reconquistar a ex-esposa ou o amor dos filhos. A produção Netflix filipina “Lá Fora” (Outside, 2024) inova o concorrido tema do apocalipse zumbi ao conseguir fazer uma união orgânica entre os tropos do subgênero zumbi e o quadro das consequências da deterioração de um casamento. Não é o apocalipse que afetou o relacionamento deles. São eles mesmos, confinados em uma fazenda para tentar fugir do apocalipse – revelando como os vivos podem ser tão ou mais assustadores do que o zumbis.

Nos filmes-catástrofe hollywoodianos, o fim do mundo não é apenas um apocalipse coletivo. Mas principalmente o dia de julgamento individual. Esse é um clichê clássico dos filmes desse subgênero: o mundo pode estar se desfazendo em pedaços, mas ainda há tempo, entre um meteoro que cai no planeta ou num tsunami que arrasa Nova York, de um casal protagonista fazer uma discussão de relacionamento para tentar salvar o casamento à beira do divórcio.

Como no dilúvio global que ameaça destruir a civilização no filme 2012, no qual John Cusak faz o clássico pai divorciado tentando reconquistar o afeto dos filhos e da ex-esposa. Tudo em meio a terremotos, tsunamis e cataclísmicas explosões vulcânicas.

Estratégia semiótica para conseguir a mercadologicamente necessária relação psicológica de identificação do espectador – filmes-catástrofe são narrativas em escalas muito amplas: cidades, multidões e grandes extensões territoriais queimando, explodindo ou afogadas. Não oferecem oportunidade de identificação. 

Por isso, é sempre necessário individualizar o apocalipse em dramas conjugais ou em casais que tentam se reatar no meio da catástrofe – o julgamento final é principalmente pessoal. 

Como em 2012 ou em A Falha de San Andreas (no qual um piloto de helicóptero tenta salvar a filha soterrada por um terremoto e, de quebra, reconquistar a ex-esposa), esse esforço de tentar juntar essas duas escalas (a coletiva e individual) acaba sempre sendo forçada e artificial – há cenas em que parece que o ritmo da catástrofe é suspenso para que o casal possa discutir o relacionamento...

O filme do subgênero apocalipse zumbi, a produção Netflix filipina Lá Fora (Outside, 2024), é uma surpresa: mergulha nesse clichê hollywoodiano, porém consegue fazer uma liga orgânica entre a escala coletiva da catástrofe e um drama familiar em meio a uma pouca explicada epidemia zumbi que está destruindo a civilização – tudo que temos é uma família em fuga numa estrada remota em uma van amassada e com a carroçaria suja de sangue. 



Eles fugiram do caos das grandes cidades e estão em busca de algum refúgio remoto no interior.

Mas não é só a civilização que está caindo em pedaços. Também aquela família, vinda de traumas, um passado turbulento e feridas não cicatrizadas.

O diretor do novo filme de zumbis da Netflix é Carlo Ledesma, que também escreveu o roteiro. Ele afirmou que Lá Fora é mais do que “apenas” um filme de zumbis - ele também o rotula como um “thriller psicológico aterrorizante”. O drama familiar também é o elemento-chave. 

Lá Fora é o projeto mais pessoal de Carlo Ledesma, e se baseia em suas experiências pessoais com o sentimento de isolamento durante a pandemia da COVID. 

Mas Lá Fora também trás elementos recorrentes nas produções do cinema e audiovisual asiáticas (e sobretudo coreanas): o ressentimento, as desigualdades, luta de classes e vingança. O que torna o filme Lá Fora uma inovação dentro de um subgênero que parecia já não reservar mais nenhuma grande surpresa, desde o início da saga como o seminal A Noite dos Mortos Vivos, de George Romero, 1968.

Mas, de certa forma, Lá Fora retorna ao insight inicial de Romero à saga dos zumbis no cinema: se A Noite dos Mortos Vivos era uma metáfora da intolerância e dos conflitos raciais na luta pelos direitos civis dos negros naquela década, em Lá Fora está a desigualdade gerada pela posse da terra pela elite fundiária patriarcal que historicamente apoiou governos ditatoriais sanguinários como o de Ferdinand Marcos.



O Filme

O que o escritor e diretor Carlo Ledesma explora um paradoxo em seu filme: como o horror de um trauma infantil acaba criando um ciclo de violência que é mais terrível do que qualquer uma das ações dos mortos-vivos. 

O preço que Lá Fora teve que pagar foi a ira dos fãs de filmes de zumbis. Lá Fora é quase desprovido daquelas sequenciais de ações pulsantes dos massacres de zumbis às quais estamos tão acostumados em tais filmes. Em vez disso, Ledesma examina as fragilidades e feiura das emoções humanas que parecem ser piores do que o aspecto dos zumbis.

O filme começa com o vídeo do casamento de Francis (Sid Lucero) e Iris (Beauty Gonzalez), deixando claro que o relacionamento do casal será o assunto-chave da história.

Avanço rápido em alguns anos para vermos as Filipinas destruída por um violento e grotesco surto viral. Como a maioria dos filmes de zumbis, a infecção se espalha através do modo usual de ser mordido. 

Agora encontramos Francis e Iris cansados e grisalhos. Estão juntos com seus dois filhos, Josh (Marco Masa) e Lucas (Aiden Tyler Patdu), viajando através de um belo campo em uma van severamente amassada – índice da dimensão do caos que deixaram para trás. 



Por insistência de Francis, a família se abriga na casa de fazenda de seus pais. Francis descobre que seu pai tomou a medida final para evitar virar um zumbi - atirou na própria cabeça. 

Francis pega a arma e o relógio do cadáver de seu pai. A arma imediatamente prova ser útil, já que Francis tem que atirar em sua própria mãe que virou um agressivo zumbi. Uma vez assegurado que a casa está livre de perigo, Francis insiste em ficar lá, pois sente que é mais seguro do que lá fora.

É aqui que a história de Ledesma se desvia para o território de O Iluminado de Kubrick. A casa, onde Francis passou sua infância, começa a mudá-lo até enlouquecê-lo. Flashbacks nos mostram que Francis foi abusado pelo pai naquela mesma casa. As cicatrizes disso ainda podem ser encontradas, pois Francis muitas vezes sucumbe aos terrores noturnos. A cada dia que passa, Francis começa a se tornar igual ao seu pai. A roda do abuso da posição dominante do patriarca começa a rodar e começa a ganhar força à medida que o estado mental de Francis começa a se deteriorar.

Francis assume a persona autoritária do pai e a todo custo manterá a família prisioneira naquele casarão. Porque lá fora estão os monstros dos quais quer manter a família supostamente protegida.  

Lá Fora também é um quadro das consequências da deterioração de um casamento. A cada momento que passa entre eles, Francis e Iris mostram que não é o apocalipse que afetou o relacionamento deles. Eles são eles mesmos. 



A crítica social tem seu ponto alto quando os zumbis, ex-servos e trabalhadores rurais do pai de Francis, tentam invadir a fazenda. Repetindo as últimas palavras que disseram antes de se tornarem mortos-vivos – palavras que remetem aos sentimentos de ressentimento e vingança.

Apesar de não abraçar verdadeiramente os tropos do gênero, Lá Fora é proficiente quando se trata de lidar com seus zumbis. Grotescamente maquiados, os zumbis neste filme também carregam um carrapato assustadoramente excêntrico. 

Eles constantemente dizem suas últimas palavras vivas quando ainda estavam vivos. O corpo morto-vivo decapitado da mãe de Francis atacando-o enquanto dizia 'desculpe' foi um ótimo começo. Enquanto o outro zumbi repetindo o pedido “passaporte, por favor” é o toque sinistro de como o apocalipse pode chegar sem avisos.

É um pequeno detalhe, mas que se torna aterrorizante quando uma nova criatura com olhos negros se aproxima de você, repetindo suas palavras finais (ou alguma palavra singular) sem parar. Talvez não pareça tão aterrorizante, mas realmente é.

Poderíamos categorizar Lá Fora como um “alt-zumbi”: os tropos do subgênero dos mortos-vivos constituem apenas um pretexto para mostrar que os relacionamentos (sejam sociais ou íntimos) dos vivos podem ser tão ou mais assustadores do que o zumbis.

Francis em Lá Fora e Jack Torrance em O Iluminado que os digam.


 

 

Ficha Técnica 

Título: Lá Fora

Diretor: Carlo Ledesma

Roteiro: Carlo Ledesma

Elenco: Sid Lucero, Beauty Gonzalez, Marco Masa, James Blanco, Aiden Tyler Patdu

Produção: Black Cap Pictures

Distribuição:  Netflix

Ano: 2024

País: Filipinas

 

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