Pages

quinta-feira, outubro 17, 2024

'Daaaaaalí!': surrealismo com começo, meio e fim, mas não necessariamente nessa ordem


“Uma história deve ter um começo, um meio e um fim, mas não necessariamente nessa ordem”, disse Goddard. E o diretor de cinema mais surrealista da atualidade, o francês Quantin Dupieux, levou ao limite essa frase no filme sobre o gênio surrealista Salvador Dalí. “Daaaaaalí!” (2023) não é um filme biográfico – Dupieux ele adotou na montagem e edição fílmica a mesma abordagem do pintor surrealista para entregar um conto particularmente louco. Os surrealistas viam no cinema a expressão do inconsciente que revolucionaria uma sociedade burguesa e careta. Ironicamente, virou a matéria-prima da revolução publicitária, do pop e entretenimento. E ao ver a realidade superando o surrealismo de suas telas, no final da vida Dalí agarrou-se no personagem que criou para si mesmo.

Se Monet foi o único pintor impressionista que sobreviveu para ver o sucesso de crítica e de mercado para a arte de sua geração novecentista, o pintor surrealista Salvador Dalí foi o último da vanguarda modernista do início do século XX a ver os seus registros oníricos saindo da tela e invadindo a realidade através da publicidade, sociedade de consumo e cultura pop.

Se na década de 1930, os modernistas (em particular os dadaístas e surrealistas) chocavam a sociedade do velho capitalismo, no pós-guerra tudo mudou. A publicidade, a sociedade de consumo e a indústria do entretenimento ironicamente realizaram a agenda vanguardista. Se Dalí mostrou como era possível colocar imagens do inconsciente em uma tela, a Publicidade e Hollywood transformaram isso num negócio – diariamente vemos desejos, fantasias e imagens oníricas em filmes e vídeos publicitários.

Em pleno ano 1970, ele e sua esposa Gala se lançaram como socialites, fazendo festas concorridas com artistas, modelos e a presença indefectível do roqueiro Alice Cooper. 

Todos aqueles mundos oníricos de relógios derretendo ou de um castelo flutuando sobre o oceano, de Magritte, foram trazidos para a realidade através dos efeitos especiais no cinema e vídeo.  Além disso, festas e orgias não chocavam mais o conservadorismo burguês: virou virtude promocional de socialites e artistas pop.

No final da vida, Dalí não tinha mais o que pintar (dizem até que costumava assinar reimpressões de obras antigas, para ganhar algum dinheiro em cash para custear seu caro estilo de vida). Restou a ele agarrar-se no personagem que criou para si mesmo.

O filme Dalíland (2022), com o pintor surrealista interpretado por Ben Kingsley, narrou de forma tragicômica esse estágio final da vida de Salvador Dalí.

Faltava o diretor mais surrealista da atualidade, o francês Quantin Dupieux, para fazer a versão mais divertida e de um surrealismo metalinguístico sobre o célebre pintor. O filme Daaaaaali! (2023) é uma deliciosa versão do irônico final de vida de um pintor que havia se transformado em um produto pop, tão contemporâneo como Andy Warhol.



Certa vez, o diretor Godard disse que “uma história deve ter um começo, um meio e um fim, mas não necessariamente nessa ordem”. Pois o filme Daaaaaali! segue à risca a dica de Godard: Dupieux faz uma narrativa vertiginosa, como fosse um fluxo de consciência guiado pela linguagem onírica, como bem pretendia a arte surrealista e dadaísta – o filme tem três começos, seis meios e quatro ou, talvez, cinco finais. 

E para dar conta dessa vertigem, Dalí é interpretado por cinco atores, em diferentes idades do pintor, que muitas vezes se alternam numa única sequência.

Tudo tão bem articulado que faz todos os segmentos pousarem, ao final e durante os créditos finais, no lugar certo. 

Não que tudo isso faça algum sentido. Isso é o que menos importa para Dupieux. Daaaaaali! parece querer, de forma metalinguística, tirar as imagens oníricas das telas do pintor e trazer para a realidade – a grande ironia de Dalí no final da sua vida, ao ver o mundo se equiparando às suas telas da década de 1930.

É como se, por onde Salvador Dalí caminhasse, ele tivesse o dom de deformar o tempo e o espaço. E todos ao redor fossem obrigados a, de alguma forma, encontrar o seu papel no fluxo onírico do pintor.

Ver a realidade ao redor tornando-se tão surrealista como suas telas o enebriou num mundo solipsista onde não haveria mais espaço para mídias escrita ou impressa. 

Essa é a tensão central em Daaaaaalí!: um pobre jornalista de uma revista que tenta uma entrevista exclusiva com o pintor.  Dalí, como sempre torce o nariz: ele quer apenas ser registrado por câmeras de cinema – mas tem que ser daquelas grandes e pesadas, “Cinematogrrrrraphique!”, como insiste Dalí.



O Filme

 Logo na primeira sequência, Dupieux lança de um truque cinematográfico de corte e edição capaz de transformar um espaço em absurdamente infinito: Salvador Dalí sai de um elevador e percorre um corredor de um hotel. Na outra ponta do corredor, ansiosa, aguarda Judith (Anaïs Demoustier), uma farmacêutica frustrada que acabou virando jornalista. 

Seu grande salto na nova carreira seria essa exclusiva com o célebre pintor. Dalí caminha pelo corredor, enquanto a assistente da jornalista checa o quarto onde ocorrerá a entrevista: será que não falta nada? Água, copos... E Dalí caminha, falando sem parar, se autocelebrando como gênio excêntrico... e o corredor nunca termina. O que dá tempo para Judith, nervosa, ir até o banheiro e voltar... e o serviço de quarto chegar com mais garrafas de Perrier... e Dalí nunca chega, embora o contato seja visual.

Um genial recurso de corte simples, mas cria um efeito infinito tão surreal quanto um fluxo onírico da vanguarda modernista.

Neste momento Dalí é interpretado por Édouard Baer, mas em outros momentos será interpretado por Gilles Lellouche, Jonathan Cohen, Pio Marmaï e Didier Flamand, cada um diferente em idade e forma corporal, mas o mesmo em bigode e maneirismo. Vestido impecavelmente com capa de pele e terno, seu suporte tão ereto quanto a bengala que carrega e seu bigode com cera. Há uma teatralidade irreprimível em tudo o que ele diz e faz.

Eventualmente chega ao final do corredor, ele se acomoda em uma poltrona para a entrevista. Quando Dali se dá conta de que a entrevista é para uma revista e não para ser filmada, ele acaba com tudo e vai embora. Dalí tem uma profunda crença de que apenas as artes “cinématogrrrrrrraphique” estão equipadas para retratar sua personalidade, que ele considera como sua conquista artística de coroação.



É o traço autorreferencial e metalinguístico de Dupieux: o cinema e a sua capacidade de criar ilusões com a montagem e edição se equipara à própria linguagem dos sonhos, a própria matéria-prima do movimento do Surrealismo. Como Dupieux demonstra, na prática, na montagem da sequência do corredor.

Mais tarde, Judith telefona para Dalí, interrompendo sua pintura de uma cena que já observamos, finalizada, no fundo de uma entrevista anterior na TV - um homem com uma cabeça alongada e outro com um lenço na boca, posando na frente de uma casa de fazenda em ruínas. 

Dupieux reproduz no filme algumas iconografias de Dali através de versões práticas de suas configurações surreais, transcrevendo fielmente para o cinema. Como no prólogo do filme, recriando a pintura de Salvador Dalí “Fonte necrófila fluindo de um piano de cauda”.

Judith está desesperada pedindo uma segunda chance. Ela garantiu o interesse de um produtor, Jerôme (Romain Duris), que está entusiasmado em filmar sua entrevista, e promete a Dalí “a maior câmera do mundo”. 



Isso apela ao ego monstruoso da terceira pessoa do homem, mas quando novo encontro também desmorona, Judith tentará e tentará novamente, às vezes chegando tão perto, às vezes não chegando a lugar nenhum. 

Não que possamos ter certeza de que algo disso está acontecendo. Tudo poderia ser parte de um sonho, contado a Dalí.

Como, por exemplo, em um jantar, em que um padre conta um sonho em que é baleado por um cowboy, enquanto os convidados, incluindo Gala Dalí (Catherine Shaub-Abkarian, rígida e enigmática sob o cabelo alto), desfrutam de um ensopado de crânio de cabra fervilhado de larvas. Dalí o aspira com a filmagem em sentido inverso, criando uma incrível proximidade com a linguagem dos sonhos tal como descrita por Freud – o fluxo onírico com uma dinâmica composta por condensações (metáforas) e deslocamentos (metonímias).

O tempo em Daaaaaali! é elástico. Muitas vezes quando Dalí está sozinho ele acaba encontrando com outras versões dele mesmo: ele vislumbra um velho e estridente Dalí em uma cadeira de rodas, e começa a suspeitar que ele, o grande e impossível gênio, não tem controle sobre como o tempo age sobre ele. 

O filme segue a lógica do sonho com escasso interesse em qualquer coisa linear. A cronologia é seguidamente distorcida, os quadros são reproduzidos de trás para frente; uma piada prolongada as vezes se torna o equivalente a um conjunto de bonecas russas infinitamente aninhadas umas dentro das outras.

E perdida nesse fluxo surreal, está a jornalista inexperiente Judith, tentando uma entrevista exclusiva com o gênio e seu ego gigantesco.

Seu grande pecado é vir da mídia impressa. Salvador Dalí acha nenhum texto poderá traduzir a sua grandeza. Somente as imagens em movimento do cinema seriam capazes de fazer tal transcrição.

Por isso, o filme Daaaaaali! guarda uma ironia profunda em torno da morte das vanguardas modernas: dadaístas e surrealistas viam no cinema a arte definitiva que libertaria o inconsciente ao expressá-lo nas imagens em movimento por meio da montagem e edição. Revolucionaria a sociedade conservadora e burguesa. 

Mas tudo o que ficou foi a indústria do entretenimento que transformou Dalí numa de suas grandes atrações.  


 

 

Ficha Técnica 

Título: Daaaaaalí!

Diretor: Quantin Dupieux

Roteiro: Quantin Dupieux

Elenco: Anaïs Demoustier, Édouard Baer, Romain Duris, Gilles Lellouche, Jonathan Cohen, Pio Marmaï, Didier Flamand

Produção: Atelier de Production

Distribuição:  Kinology

Ano: 2023

País: França

 

Postagens Relacionadas

 

Tragédia e ironias no filme 'Dalíland': como a realidade superou o surrealismo

 

 

Na exposição "Mondrian e o Movimento De Stijl" o irônico final das vanguardas modernas

 

 

Niemeyer e Brubeck: a morte da utopia da "arte total"

 

 

 

Lenin inventou o Marketing?