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sexta-feira, julho 19, 2024

Um estranho aparelho de TV no início da era da televisão no filme 'The Twonky"



Cada invenção de um veículo de comunicação sempre foi recebida com estranhamento e resistência. E com a televisão não foi diferente: recebida com desconfiança e medo. Considerado um dos mais estranhos filmes de ficção científica, “The Twonky” (1953) é uma amostra do zeitgeist do início da era da televisão – um professor de filosofia se confronta com um estranho aparelho de TV comprado pela sua esposa. E que revela ter vida própria, revelando sua estratégia: no início parece benevolente, criando dependência. Para depois manipulá-lo, não conseguindo fazer mais nada por si mesmo. “The Twonky” é uma fábula divertida e maluca sobre a invenção que moldou a segunda metade do século passado. Mas com poderosas metáforas que pautarão os futuros filmes críticos à televisão. 

Ao contrário do que pensamos, a história das invenções na área de comunicação é também a história também das reações negativas e resistências. Desde o surgimento da fotografia até a apresentação pública da televisão para um público estupefato, o que vemos é muito menos uma recepção calorosa e muito mais reações iniciais de estranhamento e resistência.

No caso da fotografia, os primeiros resultados foram tão realistas que as pessoas, feridas em seu narcisismo, recusaram aceitar aquelas imagens como suas. A fotografia só se torna popular quando surge a possibilidade da retocagem diretamente nos negativos, possibilitando reconstruir as imagens de acordo com a autoestima.

Quanto ao cinema, as primeiras imagens em close-up na história do cinema também levaram ao terror os espectadores por acharem estar vendo uma cabeça não só decapitada como também falante... Sem falar da história da primeira projeção pública de um filme pelos irmãos Lumière, em Paris, mostrando um trem chegando a uma estação provocou pânico entre os espectadores por acharem a projeção excessivamente realista como se a locomotiva fosse atropelar a todos.

Com a televisão não foi diferente. A televisão não surgiu para atender a uma necessidade imediata de comunicação. Antes dela o rádio já cumpria o papel de integração social. A TV surgiu diretamente como um meio técnico, mais um eletrodoméstico. Isso pode ser percebido nas primeiras reações das pessoas diante do invento. As reações giravam em torno do pessimismo e ceticismo em relação ao futuro da TV. Por exemplo, para o cineasta americano Darryl F. Zanuck (1902- 1979), a televisão não poderia se manter muito tempo no mercado pois as pessoas logo se cansariam de passar a tarde olhando um “caixote”.

A televisão foi recebida com forte ceticismo e estranhamento: ao contrário do cinema com suas imagens amplas e bem definidas, a TV propunha um olhar para o mundo através de uma pequena tela, com imagens cheias de interferências e fantasmas. 



Não é à toa que Hitler renegou a invenção e preferiu concentrar as estratégias de propaganda no Rádio e Cinema. Era um absurdo para ele ter a sua imagem confinada numa pequena tela, ao contrário da grandiosidade da imagem do cinema.

The Twonky (1953 - filme completo no final da postagem) é um bom exemplo desse zeitgeist que recebeu a televisão. Dirigido e escrito por Arch Oboler (notório pela série de rádio da NBC sobre contos sobrenaturais “Lights Out”), é considerado um dos filmes de ficção científica mais estranhos da década de 1950. 

A televisão comercial nos EUA existia há tão somente doze anos e já estimulava a produção de uma fábula sobre os efeitos perniciosos que ela produziria quando deixasse de ser um mero eletrodoméstico: um poderoso meio de comunicação de massa capaz de alterar definitivamente a natureza da opinião pública, cultura e sociedade.

O tom de The Twonky é de uma fábula maluca, um conto de fadas sci-fi. Mas com poderosas metáforas que pautarão os futuros filmes críticos à televisão como Videodrome (Cronenberg) ou EdTV (Ron Howard).

O diretor e escritor Arch Oboler é uma figura curiosa no underground da história do cinema. O seu trabalho Últimos Cinco Anos (Five, 1951) foi o primeiro filme ambientado em um mundo apocalíptico pós-guerra nuclear. Mas talvez o seu crédito mais famoso seja o filme Bwana Devil (1952), o primeiro filme a utilizar o recurso 3D colorido – lançamento que rendeu àquela célebre foto lendária da audiência em um cinema usando óculo 3D.

Porém, o meio em que ele foi mais bem-sucedido foi o rádio, como diretor de uma série na NBC chamada “Lights Out”, ao estilo da televisiva Twilight Zone. Os argumentos escritos por Arch Oboler para muitos episódios tinham fortes simbolismos políticos de críticas à ascensão do nazi-fascismo na Europa.

Talvez por isso a crítica visão sobre a televisão em The Twonky.



O Filme

 Um veemente antifascista, Oboler costumava usar seus dramas de rádio como propaganda benevolente para o modo de vida americano. Em meio aos fantasmas e calafrios de Lights Out, Oboler escreveria até um episódio estabelecendo as virtudes da democracia sobre o fascismo, e a aparente facilidade através da qual os agentes poderiam se infiltrar nas defesas americanas. 

Oboler expandiu seus valores para o cinema, com sua estreia na direção com Strange Holiday (1945) contando a história de uma pequena cidade desavisada dos EUA caindo sob a tirania estrangeira. Alguns anos depois, os valores liberais de Oboler e seu crescente ódio pela televisão encontraram um lugar de encontro em uma história publicada pela primeira vez na edição de setembro de 1942 da revista “Astounding Science Fiction”, “The Twonky”.

Na versão cinematográfica de Oboler, um twonky “é algo que você não sabe o que é”, um nome de infância para qualquer coisa capaz de criar medo. E na América de Oboler, não havia objeto mais potencialmente assustador do que um aparelho de televisão.

No filme acompanhamos o professor universitário, Kerry West (Hans Conried), cuja esposa Carolyn (Janet Warren) está saindo para o fim de semana para visitar sua irmã. Na tradição das esposas de comédia de Hollywood, Carolyn teme que seu marido possa se ressentir da solidão ou da incompetência doméstica em sua ausência, e assim compra uma televisão Admiral para ser entregue. Professor de filosofia, West tem total desdém pela produção televisiva. Comenta ironicamente: "Eu saberei todos os últimos movimentos de luta livre antes que o fim de semana acabe". West folheia um guia de TV de jornal, vendo apenas filmes de cowboys e sorteios de clubes de dança.



Mas antes que se quer ele coloque o fio na tomada, o aparelho ganha vida e passa a caminhar de forma desengonçada pela casa, como fosse uma mula com artrite. A TV parece ter vontade própria. No começo parece ser benevolente: emite um raio que acende cigarros e cachimbos, lava os pratos e ainda replica notas de cinco dólares para que West pague um entregador.

O roteiro de Oboler é bastante ousado e sutil, implicando o tipo de futuro opressivo que fabrica esta TV/robô, um dispositivo tirânico que desintegra com seu raio livros sobre liberdade da mão do professor, o força a ouvir música popular ao invés de Mozart (com seu raio, destrói seus discos).

Além disso, o distrai de assuntos sérios de filosofia, controlando sua mente para que prepare uma aula baseada em um livro de história popular pornográfico chamado “Passion Through the Ages” - um aspecto silenciosamente progressivo no filme é que Oboler retrata uma sala de aula universitária contemporânea racialmente inclusiva). 

A TV “twonky” também assume que há um departamento do governo (o “Bureau of Entertainment”) que envia prostitutas para as casas dos cidadãos e coloca o professor em apuros quando a televisão telefona para que meninas sejam enviadas. 



Poderíamos considerar que o filme foi motivado pela suspeita, desconfiança, inveja ou até medo sentida por um mestre do rádio e do cinema contra o início da era da televisão.

Embora o filme esteva evidentemente impregnado pela paranoia anticomunista da Guerra Fria (a TV como possível arma de manipulação das mentes americanas por forças estrangeiras), The Twonky apresenta em linhas gerais as principais críticas que nortearão a TV nas próximas décadas: o cancelamento do pensamento crítico, a aversão ao pensamento, a imposição da moda sobre a decisão individual, viciosidade e dependência – no início, o aparelho é solícito e conveniente, para mostrar as suas garras depois de criar a dependência.


 

 

Ficha Técnica

 

Título: The Twonky

Diretor:  Arch Obler

Roteiro: Arch Obler, Henry Kutner, C.L. Moore

Elenco: Hans Conried, William H. Lynn, Gloria Blondell

Produção: Arch Oboler Productions

Distribuição: United Artists

Ano: 1953

País: EUA

 

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