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quinta-feira, agosto 18, 2022

Para entender a série "The Sandman" com a filosofia de Alfred Whitehead


A “Filosofia do Processo” de Alfred Whitehead e os mundos fantásticos da obra de Neil Gaiman têm mais coisas em comum do que podemos imaginar. Ambos pensam numa inusitada cosmologia que rompe com a dualidade cartesiana ao proporem universos (no caso de Whitehead, de elétrons a pessoas) no qual se ingressam entidades metafísicas que criam o potencial, a criação, o novo. Em “The Sandman”, de Neil Gaiman, Morpheus e o reino dos sonhos; em Whitehead, os “objetos eternos”. A série Netflix “The Sandman” (2022-), adaptada pelo próprio autor, repleto de seres míticos que governam seus reinos que tangenciam com o mundo “real”, figura o mundo dos sonhos e sua espécie de “Biblioteca Akáshica” (referência teosófica de Gaiman) que representam como a humanidade cria os seus objetos eternos, os Perpétuos, como o repositório de todos os desejos e potencialidades de um mundo muito além do cartesianismo.

Qual a relação entre o escritor de contos, romances e histórias em quadrinhos Neil Gaiman (1960 -) com o filósofo, lógico e matemático Alfred Whitehead (1861-1947)? Além do fato de serem britânicos, há algo mais: enquanto o universo de Neil Gaiman é formado por mundos de elaborada fantasia, cheio de personagens míticos que governam e vagam por seus reinos e que, eventualmente, tangenciam com o suposto mundo “real” no qual habita a humanidade, também a chamada filosofia do processo de Whitehead vê nossa realidade habitada não só por “entidades atuais”, mas por ingressão também por “objetos eternos” – puras possibilidades que fazer surgir no jogo humano, o jogo divino: a possibilidade do novo, de mudanças, de acontecimentos ou, na conceituação do filósofo, de “concrescências”.

A série Netflix The Sandman (2022), baseada nos quadrinhos de Neil Gaiman e adaptada pelo próprio autor (ao lado de David Goyer e Allan Heinberg) acompanha o Mestre dos Sonhos ou Morpheus (Tom Sturridge), um tipo contemplativo, mortalmente pálido, de cabelos escuros bagunçados e lábios franzidos. Ele é uma das sete entidades divinas conhecidas coletivamente como “Perpétuos”: Morte, Desespero, Desejo, Destruição, Delírio, Destino e Sonho. Entidades eternas antropomórficas que representam não apenas forças eternas da natureza, mas também forças do psiquismo coletivo.

Seu reino é apresentado em todo o seu esplendor enquanto viajamos por ele, enquanto Sonho narra em off o seu propósito e função nesse cosmos: tão antigo quanto a própria existência, depois que o primeiro ser vivo começou a sonhar, Morpheus molda e extrai a força dos sonhos para construir o seu reino – e um ser benignamente autoritário, cuja preocupação principal é manter os dois mundos separados, os humanos na sua suposta “realidade” e o seu reino para onde vão os humanos durante o sono.

Embora Morpheus seja essa figura demiúrgica, também esse personagem de Gaiman é tributário da noção de Jung do inconsciente coletivo – um lugar de figuras, símbolos que aparecem repetidamente em nossos sonhos.


 

Além de Jung, The Sandman combina folclore, mitologia e literatura em torno da função biológica do sono na qual passamos um terço de nossas vidas. Como toda obra de fantasia, Neil Gaiman está questionando a história dominante que a sociedade ocidental conta para si mesma: que nos tornamos racionais, desencantados e livres das mitologias, crendices e histórias fantásticas do passado.

Como o próprio Mestre dos Sonhos fala na abertura da série, os humanos vivem suas vidas cotidianas imersos em nossas preocupações, obrigações e problemas, achando que esta é a nossa única realidade. Se tudo fosse atual, isto é, em que todos os eventos fossem regidos pelas leis sociais e naturais, não restaria espaço para o potencial, para qualquer possibilidade de criação ou novidade. É justamente nessa realidade em que o jogo humano não deixa espaço para o jogo divino que entre Sandman e suas entidades perpétuas.



Elas ingressam nesse mundo para criar potencialidades – como fica clara na personagem da bibliotecária do Reino dos Sonhos Lucienne (Vivienne Acheampong) que cataloga livros escritos e aqueles que ainda serão criados, porque estão em processo de elaboração nos sonhos dos escritores – lembrando a crença da Teosofia e da Antroposofia nos chamados “Registros Akáshicos”: o compêndio de todos os eventos, pensamentos e intenções humanas do passado, presente e futuro. Codificados no plano etérico da humanidade.

Dessa maneira é curioso o paralelo com a filosofia especulativa de Alfred Whitehead que pretendia rejeitar o cartesianismo através de uma renovação da metafísica. Uma nova cosmologia capaz de perceber o mundo em formação e transformação constante, através da ingressão no jogo das “entidades atuais” dos “objetos eternos” – qualidades, estruturas, padrões que expressariam formas abstratas dentro do movimento nas entidades atuais (sejam elas de elétrons a pessoas).

Parece que tanto Gaiman quanto Whitehead partilham do mesmo impulso de “reencantamento” de um mundo desencantado: encontrar a metafísica em ação no próprio devir do mundo.

A Série

Por décadas Hollywood procurou encontrar uma maneira de dar vida nas telas ao épico de fantasia sombria de Neil Gaiman – a saga de Morpheus e seus irmãos, os Perpétuos.

Até agora. A melhor resposta para esse quebra-cabeças veio não extamaente como adaptação cinematográfica, mas uma série de televisão. A outra resposta foi trazer o próprio Gaiman à bordo da produção – sentimos a mão do autor por toda parte, pois ele tenta adaptar fielmente a história em quadrinhos, quase edição a edição em cada episódio. Mesmo com algumas pequenas mudanças no que diz respeito à modernização da representação de uma história de 1989, há fidelidade mais do que suficiente para conquistar os fãs de longa data. 



Porém, para os recém-chegados, a rapidez com que fatos e detalhes são jogados podem deixar o espectador inicialmente aturdido. Mas há um pequeno personagem do corvo chamado Mathew (que, na clássica Jornada do Herói, corresponde ao papel do Pícaro – o alívio cômico que acompanha o herói): ele fará todas as perguntas a Morpheus que certamente correspondem às próprias dúvidas do espectador. Como, por exemplo, quando o Mestre dos Sonhos vai visitar Lúcifer no Inferno acompanhado do corvo – que acaba ajudando a elucidar as dúvidas narrativas.

Tom Sturridge, ainda um ator não conhecido, é perfeito em fazer Morpheus carne e sangue, habilmente expressando o estoicismo, distância e tristeza do personagem, fazendo um mix punk-Lord Byron. Com isso ganha uma presença na tela que é difícil desviar o olhar, tornando-o muito parecido com os quadrinhos.

O primeiro episódio narra sua captura pelo ocultista rival de Aleister Crowley: Roderick Burgess (Charles Dance). Mantém o Mestre dos Sonhos por um século preso em um orbe de vidro e aço aninhado dentro de um círculo de invocação. Há uma triste reviravolta desde o início, pois descobrimos que não era esse Perpétuo em particular que Burgess estava atrás – ele pretendia capturar a Morte, para negociar com ela a devolução do seu filho morto.

Morpheus é enfraquecido não apenas pela longa separação de seu reino, mas também pela perda de suas ferramentas de poder: um pequeno saco de areia que lhe permite viajar pelo mundo dos sonhos (assim como convocá-lo) ; um elmo, que lhe permite viajar livremente pelo mundo desperto; e o mais importante, um amuleto de rubi que lhe permite criar sonhos — e destruí-los.



O quinto episódio é o melhor: na busca do elemento final (o rubi) é que The Sandman experimenta a virada mais estranha. Situado quase inteiramente dentro de um restaurante, o episódio explora o sonho de um homem por um mundo melhor: um mundo em que mentiras não possam existir. O homem com esse sonho é John Dee (David Thewliss, proporcionando o melhor desempenho da série), o filho desequilibrado da mulher que roubou todos as ferramentas de Morpheus do ocultista Burgess, muitos anos atrás. John Dee, e seu sonho, são desencadeados em uma variedade desavisada de funcionários e frequentadores da lanchonete. Suas maneiras suaves escondem uma ambição inadvertidamente sinistra, e o episódio de longa-metragem se desenrola com a garçonete, um cozinheiro e quatro clientes assistindo seus mundos se desintegrarem através das maquinações das ambições de Dee. Depois de condenar esses companheiros humanos, Dee tem um confronto maravilhosamente etéreo com o próprio Morpheus, culminando no próprio reino dos sonhos.

Com a recuperação das ferramentas de Morpheus, as coisas então caem bruscamente, ameaçando a série de perder o ímpeto inicial e o foco. Tendo que reconstruir o seu reino depois de um século de abandono, Morpheus confessa a sua própria sensação de deriva para sua irmã Morte no episódio subsequente. Enquanto o episódio seis oferece uma pausa bem-vinda da ação, apresentando um encontro entre Morpheus e um homem feito imortal (através de uma aposta entre a Morte e Sandman).

Os quatro episódios finais concentram-se dois personagens que vai dar novo rumo à temporada: “Vortex” (Rose Walker - Vanesu Samunyai) e o perigo inadvertido que ela representará para o equilíbrio entre o mundo “real” e o dos sonhos; e a presença de um novo antagonista:  Coríntio (Boyd Holbrook) - um pesadelo que fugiu do Reino dos Sonhos e pretende se aliar com o Vórtex para destruir o reinado de Morpheus, arrastando um carisma malévolo. Ele inspirou legiões de fãs, na forma de assassinos em série que o veem como um líder inspirador.



Sonhos e objetos eternos

The Sandman aglutina diversas mitologias, personagens literários e filosóficos sobre o sonhar e o dormir. 

As civilizações gregas e romanas antigas entendiam os sonhos como mensageiros e mensagens. 

Morpheus atraiu os poetas clássicos. Na “Metamorfose” de Ovídio, ele é um dos mil filhos de Somnus, um sonho que muda de forma e “mestre mímico” que se movia “em asas silenciosas”. Morpheus revela a sofisticação psicológica da mitologia clássica, um rico corpo de histórias que não apenas explicavam o funcionamento do mundo natural, mas também o funcionamento interior da mente humana.

Nos séculos XIX e XX, Morpheus, ou The Sandman, tornou-se um personagem mais benevolente. Não mais um servo dos deuses, foi frequentemente evocado como alguém que poderia reunir amantes perdidos em sonhos. Tais sentimentos são encontrados no poema de Alexander Pushkin, Morpheus, e na canção “In Dreams”, de Roy Orbison, onde Sandman se torna “um palhaço cor de doce” que espalha poeira estelar. 

A natureza não convidada, incontrolável e sem sentido dos sonhos perturbou nossa defesa moderna da racionalidade e da razão, fazendo com que fossem descartados como mero jogo mental inconsciente. Quando os pioneiros da psicoterapia do século XIX e início do século 20 se envolveram com sonhos, eles tentaram racionalizar o significado e a função de seu conteúdo aparentemente aleatório e ilógico.

A “Interpretação dos Sonhos” (1899), de Sigmund Freud, argumentou que os sonhos forneciam insights sobre repressão e trauma psicológicos, muitos deles de natureza sexual. Aplicando interpretações racionalizadas, os sonhos não eram lixo mental, mas revelavam insights sobre os desejos proibidos de mentes individuais. Não mais influências externas entregues por mensageiros divinos, os sonhos estavam firmemente enraizados dentro de nós. Curiosamente, a natureza sinistra da história de Sandman de Hoffman atraiu a atenção de Freud em seu ensaio de 1919, “The Uncanny”.



No entanto, é o ex-amigo e rival de Freud, Carl Jung, a quem a ideia de Gaiman do Mestre dos Sonhos tem uma dívida maior. O reino compartilhado dos sonhadores de Morpheus é a expressão ficcional da noção de Jung do inconsciente coletivo, um lugar de figuras, símbolos e imagens arquetípicas que aparecem repetidamente em todos os nossos sonhos.

Jung procurou ir além da dualidade cartesiana, tentando apresentar uma síntese: o conteúdo onírico não é meramente individual, mas “possuído” por entidades coletivas representada por símbolos recorrentes nas mais diversas culturas e civilizações.

O dualismo cartesiano mente-corpo, matéria-substância foi o responsável por todas as premissas metafísicas modernas, tais como Hegel, Kant ou Espinoza. Alfred Whitehead e a sua Filosofia do Processo alia-se ao esforço da Fenomenologia do século XX (Husserl, Bergson, Merleau-Ponty) e mesmo de Jung para encontrar uma síntese numa realidade na qual se ingressam entidades eternas pensadas não mais como objetos etéricos, mas potenciais imersos capazes de criar movimento, novidade, criação. Em suma, acontecimento.

O universo fantástico de Neil Gaiman parece partilhar dessa espécie de “metafísica em queda” na fenomenologia do cotidiano: o mundo dos sonhos e sua Biblioteca Akáshica representam como a humanidade cria os Perpétuos como o repositório de todos os desejos e potencialidades de um mundo muito além do cartesianismo.


 

 

Ficha Técnica

 

Título: The Sandman (Série)

Diretor: Mike Barker

Roteiro: Neil Gaiman, David Goyer e Allan Heinberg

Elenco:  Tom Sturridge, Boyd Holbrook, Vivienne Acheampong, David Thewlis, Jenna Coleman

Produção: DC Comics, DC Entertainment, Netflix

Distribuição: Netflix

Ano: 2022

País: EUA/Reino Unido

 

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