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sábado, julho 09, 2022

A bomba autorrealizável da PEC; Brasil renitente de Olivetto; infotenimento demite Casagrande


Com o fim da “esperança branca” da Terceira Via, restou para a grande mídia Bolsonaro mesmo! Porém, não está fácil. Depois de passar esses últimos anos acusando o chefe do executivo de ser negacionista, extremista, golpista e mostrar “colonistas” chorando ao vivo pela morte de pessoas sem UTIs durante a pandemia, como apoiar Bolsonaro? Como evitar expor a jogada de “morde-assopra” da mídia nos últimos tempos? A ansiosa e impaciente cobertura da mídia corporativa pela aprovação da “PEC Kamikase” é a reedição de uma psyOp que deu certo no golpe de 2016:  a bomba semiótica autorrealizável, executada em três fases que a grande mídia tentará pôr em ação até as eleições – aparência, percepção e crença. Enquanto isso, o Brasil renitente do velho milagre econômico da ditadura militar (que se aliou com o Brasil Profundo), e que pariu a publicidade brasileira, dá as caras: um artigo inacreditável de Washington Olivetto em “O Globo”. E, por fim, a demissão de Casagrande da Globo, pelos 75% de aumento das verbas publicitárias de Bolsonaro na Globo e o domínio do infotenimento no jornalismo.

CNN cobrindo ao vivo a votação da chamada PEC Kamikaze (aquela que cria estado de emergência e dribla a legislação prevendo liberação de benefícios sociais em pleno ano eleitoral) com uma repórter nas galerias da Câmara dos Deputados; ao mesmo tempo em que a Globo News tinha, também ao vivo, além de um repórter, a “colonista” Ana Flor fazendo comentários.

Se a velha memória desse humilde blogueiro não trair a última vez que vi tamanha mobilização ao vivo para acompanhar votações no Congresso foi na sessão que selou o destino da presidenta Dilma Rousseff com o impeachment, em abril de 2016.

Mas, para surpresa de todos, o presidente da Câmara, Arthur Lira, vendo o quórum baixo da sessão, por garantia adiou a votação para a próxima terça-feira. Mesmo depois da sessão relâmpago de um minuto às 6h30 da manhã, em comissão da Câmara, para a aprovação do texto à toque de caixa para agilizar aprovação que esperava-se no mesmo dia.

Mas não veio. Na CNN, o apresentador do Prime Time, Márcio Gomes, gaguejou... “Que aconteceu Ricardo! Que reviravolta é essa aí!”, perguntou incrédulo César Tralli na “Edição das 18” da Globo News. Câmera ao vivo fechada no presidente da Câmara Arthur Lira, ao telefone celular, sozinho na mesa diretora, enquanto Tralli, em tom de velório, descrevia: “Olha a cara do Arthur Lira de preocupação... a expectativa era tremenda, era enorme, a aprovação era praticamente certa por vários analistas... tudo o que o governo não queria...”.



Poderíamos perguntar: expectativa tremenda de quem, cara pálida? Desde o impeachment de 2016 e dos leilões de privatizações, não consigo lembrar de tamanha torcida da grande mídia, mascarada por um discurso aparentemente crítico, acusando a PEC de “eleitoreira” ou “populismo eleitoral”.

Nas horas subsequentes à decepção, o discurso foi: (a) culpar a oposição de ter adiado propositalmente a votação (sabemos que, historicamente, quando a base do governo se dispersa numa votação decisiva, é jogada chantagista para arrancar do governo ainda mais “benefícios”); (b) alinhamento do discurso de todos os “colonistas” no seguinte sentido: “PEC Kamikaze deve ser aprovada na semana que vem, não há como oposição segurar!”.

Coincidentemente, “colonistas” como Andreia Sadi começaram a acionar a “correia de transmissão” das notas plantadas de bastidores (o estado da arte do “agrojornalismo”): “bastidores de Lula trabalha com segundo turno contra Bolsonaro”, crava a “colonista” na Globo News. Ao mesmo tempo, o último levantamento da Genial/Quaest e do PoderData mostrando crescimento de Bolsonaro em diversos segmentos já seria uma resposta à perspectiva da aprovação de vales caminhoneiro, gás etc. – clique aqui.



Com o fim da “esperança branca” da Terceira Via (a esperança de um neoliberalismo “limpinho”, sem a truculência de extrema-direita que o Big Money e grande mídia tiveram que tolerar fechando o nariz), restou, no frigir dos ovos, Bolsonaro mesmo! 

O problema de estratégia comunicacional passa a ser esse: como, mais uma vez, apoiar Bolsonaro diante de mais uma “escolha difícil”, mesmo depois da grande mídia acusá-lo de negacionista, golpista, extremista, mostrando “colonistas” como Natuza Nery chorando ao vivo diante da insensibilidade de um presidente totalmente alheio às pessoas que morriam sem vagas nas UTIs durante a pandemia.

Por outro lado, nem passa pela cabeça sequer uma cobertura imparcial da campanha de Lula - Florestan Fernandes Jr apontou que a TV Record de São Paulo iniciou a exibição de reportagens para colar no PT o rótulo de "partido associado ao PCC". As "reportagens", diz Florestan, são coordenadas pelo núcleo de jornalismo investigativo da emissora, dirigido por André Caramante – clique aqui.

A solução dessa sinuca de bico, mesmo com toda má consciência da grande mídia, é lançar a bomba semiótica autorrealizável – dentro do arsenal de bombas semióticas, sabemos que a profecia autorrealizável foi o ato final da derrubada do governo Dilma, com pautas bombas de Eduardo Cunha no Congresso e apresentadores de telejornais histéricos diante de gráficos descontextualizados alertando que o abismo econômico que estaria próximo. Criando um truísmo que se autorrealizou em crise econômica real.

Profecia autorrealizável: prognóstico que, ao se tornar uma crença, provoca sua própria concretização. Para essa bomba semiótica ser executada, são necessários três ingredientes explosivos: aparência, percepção e crença.

(a) Aparência: a decretação do “estado emergencial” foi uma jogada para driblar a legislação eleitoral que impediria a decretação de um “pacote de bondades” a meses das eleições. Estranhamente, a grande mídia nada fala disso. Preferindo fazer uma crítica anódina sobre “populismo eleitoral”.

Ora, porque haveria um tal “estado de emergência” se o noticiário das últimas semanas do jornalismo neoeconômico (“neo”, porque abandonou a economia política para se concentrar na cobertura dos mercados financeiros) bate bumbo com números que apontam aumento do PIB, crescimento da indústria automobilística e queda no desemprego?



Compreende-se o silêncio: a PEC entraria em contradição com a própria estratégia midiática de blindar Paulo Guedes e salvar as aparências das políticas neoliberais selvagens – em última instância, garantir a agenda de privatizações aguardada pela banca das finanças.

Essa aparência silenciosa deve ser mantida a todo custo para que a bomba semiótica dê certo.

(b) Percepção: esse é o detonador da bomba semiótica: através da repetição diária do noticiário, é necessário criar a percepção de que voucher para caminhoneiros, vale gás e aumento em duzentos reais do Auxílio Brasil, de fato, vai beneficiar Bolsonaro... porque é “populismo eleitoral”.

Antes de qualquer pesquisa ou sondagem que comprove isso em números, através de um discurso ambíguo (porque aparenta ser uma crítica), grande mídia está moldando diariamente a percepção de que benefícios sociais a poucos meses das eleições “pode” beneficiar Bolsonaro - o uso desse verbo de maneira ambígua (entre imperativo afirmativo e presente do indicativo) é sintomático.

(c) Crença: O wishfull thinking da grande mídia é que essa percepção se torne uma crença, detectável nas próximas pesquisas eleitorais, fechando o ciclo da profecia autorrealizável: os números apenas confirmariam a percepção anteriormente estimulada: grande mídia conseguiria transformar uma mera percepção em truísmo – verdade incontestável e evidente por si mesma.

Para que tudo isso funcione, TEM que ser aprovada a "PEC da Eleição" ou "PEC Kamikaze". Daí a ansiedade da grande mídia, colocando repórteres e colonistas ao vivo na Câmara como fosse uma transmissão esportiva e repetindo insistentemente que a PEC “será aprovada terça-feira”. A ansiedade é tanta que já nessa sexta-feira “colonistas” tentam adivinhar em qual período do dia da próxima terça seria aprovada a PEC... se o quórum será alcançado pela manhã ou só no período da noite...

Parece até leilão de privatização...

Washington Olivetto e o Brasil renitente

Não é por menos que o festejado publicitário Washington Olivetto, de repente, dá as caras em um artigo no jornal O Globo. Afinal, ele, assim como a publicidade brasileira, foi produto do chamado “milagre brasileiro” na ditadura militar. 

O artigo de Olivetto “O Rio de Janeiro Continua Lindo”, descrevendo o passeio do filho e mais amigos (australianos e franceses) num passeio comemorativo no Rio de Janeiro pela aprovação em uma escola de cinema na Califórnia, é uma peça desse “Brasil renitente” – que durante a guerra híbrida brasileira (2013-16) se aliou ao Brasil Profundo para engrossar o caldo do golpe. 



Brasil renitente, aquele da elite brasileira saudosa dos tempos da “Casa Grande e Senzala”, de um país socialmente ordenado e hierarquizado com seus elevadores sociais, empregadas uniformizadas morando em seus quartinhos e elevadores de serviço para que serviçais não sujem os carpetes dos halls sociais.

Um passeio lindo e maravilhoso dos enfants pela cidade maravilhosa, segundo Olivetto, para “desfazer, principalmente nos garotos estrangeiros, um pouco da péssima imagem que o Brasil vem construindo no exterior nos últimos anos”. Mas o que chamou mesmo a atenção foi um detalhe do texto em que Olivetto se refere à ex-babá do filho e uma espécie de faz-tudo da família: mais do que a fórmula habitual “ela é como se fosse da família”, Olivetto escreveu literalmente ‘virou parte da família”. Será que ela terá direitos aos bens do pai-patrão?

Tudo leva a crer que não, já que o texto codifica, em cada linha, o imaginário renitente de um passado idílico em que a Casa Grande escravizava a senzala. Um país que só pode ser maravilhoso se mantiver a ordem.

Essa foi a indústria publicitária parida na ditadura militar e que construiu uma imagem do Brasil melhor do que o próprio país. 

Como comprova outro gênio da publicidade tupiniquim, Nizan Guanaes. Em um artigo na Folha de São Paulo, em 2011, incomodado com a ascensão da classe C nos tempos neodesenvolvimentistas do PT, o publicitário reclamou: “preciso de uma Dona Flor, mas que não precisa ter o corpo de Sônia Braga. Precisa é cozinhar!”. Nizan quer uma cozinheira para fazer “aquela grande e vasta comida brasileira” – clique aqui.

E, claro, que, assim como Olivetto, Nizan Guanaes também deu as caras nesse momento tão difícil para o Brasil renitente que não consegue encontrar uma “esperança branca” de Terceira Via”.

Em um texto no perfil "N Ideias", no Instagram, transformado em uma bem editada peça de divulgação da “Escola de Repertório”, Guanaes exortou: “Brasil precisa de uma elite estudada e culta”, para superar a “constrangedora” falta de cultura da nossa elite. “Em vez de dar uma Ferrari por meu filho, coloquei ele na melhor escola de São Paulo. E ele, por conta própria, escolheu fazer o colegial em uma das melhores prep schools dos EUA”. 

Para quê? Para construir um país melhor. Como? Adquirindo conhecimento em Havard, Yale, Stanford, Cambridge. “Nessas escolas que se forma o stablishment social que vai influir no mundo”, exulta o velho publicitário.

 Simples assim: uma elite culta certamente colocará ordem para o progresso do país... para finalmente aquele Brasil renitente retorne ao seu passado idílico. 

Com militares? Essa será, mais uma vez, a “difícil escolha” que esses luminares da nossa elite terão que enfrentar.



Casagrande foi demitido pelo infotenimento

Numa entrevista conduzida pelo colunista Kennedy Alencar no Uol, o ex-jogador de futebol e comentarista Walter Casagrande descreveu alguns dos motivos que o fizeram ser demitido da Globo “em comum acordo”: "os meus comentários e posicionamentos já não repercutiam no jornalismo esportivo da emissora. Ninguém dava continuidade ao debate... a única repercussão era nos outros veículos”, afirmou. Mas, para ele o principal motivo foi a chegada do “entretenimento” no esporte da Globo: a tendência dos jornalistas e comentarista terem de ser “divertidos”.

“Eu acho o futebol uma coisa séria. Ele mexe com a parte social e política do Brasil e sempre mexeu... não é uma coisa engraçada, é uma coisa muito séria", disse Casagrande.

Em ano eleitoral, depois de ameaçar a Globo de cassar sua concessão pública e exortar seus seguidores a bradar o slogan “Globo Lixo”, agora Bolsonaro despeja verbas publicitárias na emissora: aumento de 75%, comparado ao mesmo período do ano passado. Esse é o primeiro sincronismo em torno da saída de um comentarista a poucos meses da Copa do Mundo. Um comentarista sempre identificado com a “Democracia Corinthiana” dos anos 80 e com o ativismo das Diretas Já – movimento ignorado no início pela própria emissora. Afinal, Casagrande é um notório crítico do governo e histórico apoiador do PT.

Porém, para este humilde blogueiro, o principal fator é a derrota de Casagrande frente a tendência do infotenimento (informação + entretenimento) que tomou conta do jornalismo – e agora, pelo menos na Globo, tomou conta da cobertura esportiva. 

Isso explica por que o principal apresentador do telejornal esportivo da rede, "Globo Esporte", ser o jornalista e humorista Felipe Andreoli cujo currículo foi marcado pela participação do programa de infotenimento CQC, da Band. 

E que o comentarista que mais ganha espaço na emissora é o também ex-jogador Caio Ribeiro: bom moço com um eterno sorriso estampado e que participa de esquetes engraçados como acompanhar torcedores na frente da TV fazendo merchandising das linguiças Aurora nos churrascos em varandas gourmet.

Até tentaram “infoentretenemizar” Casagrande com quadros como “Fala Casão” em que ele dava seus pitacos dentro do estereótipo do “maluco beleza sem noção”. Mas o ex-jogador não entrou no papel e continuou fazendo comentários sérios.

Robert Stam, no seu texto clássico “O Telejornal e seu Espectador”, de 1985, já antecipava o predomínio do infotenimento no jornalismo. O teórico norte-americano em cinema e audiovisual tomava como ponto de partida uma coisa que de tão óbvia chega a ser considerada natural, mas que, segundo ele, deveria nos causar espanto: o fato de o telejornal ser agradável. Pauta, montagem, edição, roteirização, todos os elementos formais e de conteúdo são organizados (independente das notícias serem “boas” ou “más”) para, em última instância, ser uma experiência agradável ao espectador.

Afinal, de um lado, os anunciantes não querem ver seus produtos subliminarmente associados a experiências negativas e, do outro, o espectador não quer que o prazer narcísico da identificação do olhar com a câmera e o “imperialismo da poltrona” (conforto, tranquilização, identificação etc.) sejam abalados.

Afinal, num país tão imerso no baixo astral econômico, social e político, transformar más notícias em infotenimento é uma necessidade ideológica de primeira hora... já tem até um repórter no telejornal local de SP capaz de dar as más notícias do aumento dos preços dos itens da cesta básica com um sorriso no rosto... 

 

 

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