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quarta-feira, maio 18, 2022

A uberização do ego no filme 'Spree'



“No futuro, todos terão 15 minutos de fama”, profetizava Andy Warhol. Ele só não contava com a precarização da busca da fama, assim como ocorre com motoristas de aplicativos. A consequência é a “uberização do ego”, construído a partir dos obscuros algoritmos e métricas das redes sociais e plataformas. Esse é o tema de “Spree” (2020), um híbrido de crítica social e terror slash com muito humor negro. Para Kurt Kunkle, toda vida é “conteúdo” para ser transmitido. Seu valor como humano é medido por quantas pessoas sintonizam suas transmissões ao vivo ou "curtem" seus vídeos. Porém, como tornar a si próprio viral? Depois de dez anos com apenas dois dígitos de seguidores, Kurt cansou de gritar no vazio: vira motorista de aplicativo e espalha câmeras pelo carro para transmitir em tempo real o destino sangrento de seus passageiros.

Um jovem de 18 anos matou 10 pessoas e deixou outras três feridas em um supermercado de Buffalo, estado de Nova York, disparando aleatoriamente em clientes. Desde que estacionou o carro no estacionamento, o jovem realizava a transmissão do evento através da plataforma Twitch, conhecida por realizar transmissões ao vivo.

Defendendo o supremacismo branco (o local do massacre foi em um bairro majoritariamente negro), o jovem já havia publicado on line um documento que detalhava a ação terrorista e se identificava.

Todo assassino serial tem a compulsão de imortalizar seu ato de alguma maneira: na era VHS, vídeos para a posteridade; no início desse século, arquivos mp4 salvos no HD de um computador (na esperança da polícia vazar as imagens para a imprensa); e hoje, viralizar através das redes sociais.

Numa sociedade em que ter filhos, escrever um livro e plantar uma árvore deixou de ser o caminho ético e moral para a construção do ego e a ética protestante descrita por Weber deixou de fazer sentido porque Deus morreu (nossa posteridade não é mais avaliada por Ele), o indivíduo convive com a alienação, privação de sentido e realização. Resta aquilo que a indústria do entretenimento mais vende à multidão solitária: entretenimento e fama.

David Riesman, no clássico da sociologia “A Multidão Solitária”, escrevia sobre o ego “alter-dirigido” da sociedade do século XX: um ego erodido por dentro e que precisa da sanção externa (amor, reconhecimento etc.) para sentir-se aceito e vivo – o medo do anonimato e solidão que faz o indivíduo mimetizar aquilo que a maioria é (ou, pelo menos, o que pensa ser a “maioria”).

O personagem Rupert Pumpkin interpretado por Robert De Niro, no filme O Rei da Comédia (1983), de Scorsese, talvez seja a visão cinematográfica mais acabada desse novo homem de David Riesman – sequestra um astro da comédia (Jerry Lewis) para, em troca da libertação, exibir seu número de humor no talk show de Lewis. Pumpkin não admira o gênio cômico de Lewis. Apenas inveja a sua fama. Faz tudo isso para escapar da sua vida medíocre e infeliz sendo admirado por todos – sobre o filme, clique aqui.

Spree (2020), dirigido e co-roteirizado por Eugene Kotlyarenko, nos mostra o Rupert Pumpkin da era da Internet. Assistir a esse filme nos passa a sensação de que eventos como o do assassino serial de Buffalo pertencem àqueles momentos em que a vida parece imitar a arte, a precessão dos simulacros sobre a realidade.



Para Kurt Kunkle (Joe Kerry), toda vida é “conteúdo” e precisa ser transmitida ao vivo pelas redes sociais para alcançar a “viralidade”. O problema é: como a vida deve ser vivida para ser um conteúdo viralizante? Esse é a questão existencial de @kurtsworld96: simplesmente ele não consegue seguidores para si mesmo.

Sem perspectiva familiar, existencial ou profissional, seu destino é terminar os seus dias na casa da sua mãe, anônimo, invejando influenciadores digitais e personalidades das redes sociais.

Seguindo um roteiro bem conhecido na atualidade, sem perspectiva profissional vira motorista de aplicativo (o fictício “Spree”, um aplicativo de caronas semelhante ao Uber). Porém, diferente de Rupert Pumpkin que queria escapar da sua vida medíocre, Kurt Kunkle quer transformar a própria mediocridade em “conteúdo” para o seu videoblog: espalhar câmeras que capturam em tempo real os destinos sangrentos de seus passageiros.



Com muito humor negro, Spree nos oferece uma visão sombria sobre o destino das redes sociais: essas mídias não são apenas o paroxismo da busca da fama a qualquer preço, como no filme O Rei da Comédia. Mais do que isso, Spree nos descreve as consequências de um ego uberizado.

O Filme

Spree começa com um draw my life da trajetória do videoblog chamado “Mundo de Kurt”. 

Usando o identificador de internet @kurtsworld96, ele faz vídeos sobre sua vida, mas até agora não conseguiu criar seguidores para si mesmo – não consegue passar dos dois dígitos. No mundo dele, seu valor como humano é medido por quantas pessoas sintonizam suas transmissões ao vivo ou "curtem" seus vídeos. Ele tem inveja de todos que tiveram sucesso como "influenciador" ou "personalidade" de mídia social. Ele quer o que eles têm. 

“É muito difícil continuar fazendo um ótimo conteúdo, sabe? É um jogo de números e agora me sinto como um zero”, confessa Kurt desanimado.

No “Mundo de Kurt” ele apresenta tópicos da vida familiar a comentários políticos e históricos. Em um episódio muito especial sobre o 11 de setembro, ele conclui: “Ninguém jamais poderia esquecer um evento como esse. Real ou falso."



Kurt Kunkle é Rupert Pupkin para a era da Internet. Ele mora na casa com sua mãe, separada do seu pai, um aspirante a DJ fracassado. Kurt não tem muito a seu favor. Ele quer ser famoso, mesmo que não tenha habilidades, talentos ou até mesmo uma personalidade atraente. 

Então ele vem com uma ideia. Será um motorista de compartilhamento de carona do Spree. Cansado de gritar no vazio, encherá o carro com câmeras de painel e envenenará todos os passageiros que o incomodarem. Ele vai transmitir tudo isso ao vivo. Será uma maneira infalível de "aumentar seu público".

A fúria assassina de Kurt é conveniente porque ele só envenena pessoas "más": um cara branco racista, um misógino tóxico que chama Kurt de "incel", um bando de garotas festeiras irritantes. 

Poderia ter sido mais interessante se o assassinato de Kurt fosse indiscriminado. Talvez o diretor Eugene Kotlyarenko queira ser politicamente correto. 

Kurt está furioso porque, mesmo com todo o assassinato e caos, ele não "virou viral". Mas então ele pega como passageira em seu carro Jessie (Sasheer Zamata), uma comediante que construiu sua marca principalmente através da promoção de si mesma nas mídias sociais. Quando Kurt descobre quantos seguidores ela tem, fica obcecado por ela. Ele pergunta: "Como você aumentou seu público?" Jessie diz, sem rodeios: "Sou engraçada". Ele quer tocar em seu público, ele quer pegar carona em sua "influência". Mas como?



Contado inteiramente através de vídeos de celular, câmeras de painel e filmagens de CCTV, o filme é um híbrido de crítica social e comédia de humor negro, detalhando como esse garoto sociopata decide ficar famoso na internet.

A narrativa é absolutamente frenética, com música estridente sem parar, conversas constantes de Kurt direto para a câmera e uma proliferação de telas: telas de telefone dentro de telas de telefone dentro de telas de telefone, seções de comentários que se desenrolam rapidamente, mensagens de texto chegando etc. Às vezes há uma tela dividida, às vezes a tela se divide em três. Spree é um relato de um dia inteiramente na Internet, pulando do YouTube para o Twitter, do Google para o TikTok e vice-versa, nunca ficando em um local por mais de alguns minutos. 



A virtude de Spree é conseguir enfrentar duas dificuldades sobre o tema. Primeiro, apesar do mundo dos influenciadores das mídias sociais oferecerem uma rica matéria-prima para sátiras e críticas, há uma dificuldade na fonte: o próprio fenômeno já uma sátira em si mesmo. A própria linguagem mash up dos influenciadores já é uma paródia, exigindo uma metalinguagem que não caia na visão moralista de ver tudo como “superficial”, “egoísta” ou “materialista”.

O que nos leva à segunda virtude: Spree encontra uma abordagem nova e contemporânea sobre o tema da busca desesperada por fama – fenômeno do século XX, a busca desenfreada pelos “quinze minutos de sucesso”.

Sintonizado com a sua época, Spree encontra o “ego uberizado” (ou “spreezado”, como sugere o título): assim como os trabalhadores precarizados do capitalismo de plataforma, até a própria busca da fama tornou-se precarizada.

Se Rupert Pumpkins buscava escapar da própria vida miserável e solitária almejando ascender ao talk show televisivo de Jerry Lewis, Kurt quer transformar sua própria mediocridade em “conteúdo”: ele nem pretende escapar, mas afundar-se ainda mais na mediocridade fazendo paródia dela mesma. 

Ter a sua mediocridade submetida às métricas e algoritmos obscuros das plataformas. Assim como os trabalhadores precarizados de um Uber.


 

Ficha Técnica

 

Título: Spree

Diretores: Eugene Kotlyarenko

Roteiro: Eugene Kotlyarenko e Gene McHugh

Elenco:  Joe Kerry, Sasheer Zamata, David Arquette, Sunny Kim, Joshua Ovalle

Produção: Dreamcrew, Forest Hill Entertainment, SuperBloom Films

Distribuição: HBO Max

Ano: 2020

País: EUA

 

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