Pages

quinta-feira, maio 19, 2022

O Mal silencioso que cresce sob nossos pés em "A Fita Branca"



Muito já foi escrito sobre as raízes do nazifascismo – banalidade do Mal, personalidade autoritária, ressentimento coletivo etc. Mas poucos filmes foram tão profundo na questão como o filme de Michael Hanake “A Fita Branca” (Das weiße Band - Eine Deutsche Kindergeschichte, 2009) ambientado em uma vila rural no norte da Alemanha alguns anos antes de explodir a Primeira Guerra Mundial. São duas horas e meia de um mergulho na alma de uma vila extremamente religiosa, moralista e temente a Deus. Mas algo profundamente perverso e maligno está crescendo no subterrâneo daquela comunidade. Justamente onde deveria haver inocência e esperança: as crianças, que no futuro serão a primeira geração a apoiar o nazismo.

A ideia subjacente era fazer um filme sobre um grupo de crianças que transformam os ideais que lhes foram pregados em princípios absolutos, depois punem os indivíduos que fizeram a pregação, que não vivem de acordo com esses ideais. Assim que um ideal ou um princípio se transforma em ideologia, torna-se perigoso. As crianças tendem a levar a sério o que lhes é dito, e isso pode se tornar perigoso. (...) Não acredito que as crianças sejam inocentes. As crianças não são inocentes, são ingênuas e aceitam as coisas como lhes dizem. Quando você toma algo literalmente, pode ser perigoso.

Assim o diretor Michael Hanake explica o seu filme A Fita Branca (Das weiße Band - Eine deutsche Kindergeschichte, 2009), um filme que imediatamente tornou-se um clássico, filmado em um detalhista preto e branco (em cenas iluminadas apenas por candeeiros e velas, por isso filmado em cores para posteriormente ser convertido em p&b) e ambientado em uma vila rural no norte da Alemanha alguns anos antes de explodir a Primeira Guerra Mundial,

São duas horas e meia de um mergulho na alma de uma vila (uma sociedade patriarcal e autoritária), um tipo de sociedade que pareceria normal naquela época em todo mundo. Mas há algo de profundamente errado sob a superfície cotidiana em que acompanhamos um bom doutor que atende à comunidade, um ministro luterano atento à vida religiosa e costumes da comunidade, e um barão que emprega metade da vila nas colheitas de trigo e repolho. 

E as crianças são os grandes protagonistas – foram testadas sete mil crianças, até chegar ao cast de atores e atrizes infantis amadoras que alcançam um nível de espontaneidade e sinceridade que impacta ao contrapor a suposta inocência infantil a algo de profundamente perverso e maligno que está pulsando naquela vila.

As escolhas do período histórico e daquela pequena vila protestante não foram por acaso. Michael Hanake conta que a ideia do filme de uma foto de um pouco antes da Guerra sobre um coro de crianças em uma igreja protestante – aliás, cena final do filme. Para ele, eram crianças que tinham internalizado os imperativos morais que foram ensinados pelos seus pais. Essas crianças cresceriam para ser a primeira geração de alemães a apoiar o nazifascismo.

Será que haveria algo no rigor moral do protestantismo (maior do que no catolicismo) que teria feito essa geração tender para o extremismo?



Muito já foi dito e estudado sobre as raízes no nazifascismo no século XX: da banalização do Mal em Hanna Arendt (da natureza ontológica para política e histórica), passando pelo medo à liberdade (Fromm), e encontrando a psicologia de massas e ressentimento (Reich) e os estudos da personalidade autoritária de Adorno e Horkheimer. 

Porém, subjaz uma questão: por que a banalização, o ressentimento e o medo à liberdade foram encontrar no nazifascismo sua tradução política? Em outros termos, por que o mal-estar psíquico social foi desembocar na intolerância, persecução e violência, e não numa alternativa democrática ou mesmo revolucionária? Essa é a “pergunta valendo um milhão de dólares” que a esquerda até agora não conseguiu responder, apesar de todos os esforços teóricos de pesquisadores como citados acima.



A Fita Branca propõe algo diferente: enquanto as análises sempre foram a posteriori da tragédia histórica, porque não buscar as fontes na própria infância de uma geração que, mais tarde, apoiaria uma catástrofe política e humanitária? Michael Hanake vai encontrar essas fontes em alguma coisa malévola que silenciosamente cresce no subterrâneo psíquico daquela vila religiosa e temente a Deus.

O Filme

Tudo se mantém estável nesta vila há gerações. O barão (Ulrich Tukur) é dono da terra. O agricultor, o pastor (Burgart Klaubner), o médico (Rainer Bock), o professor, os criados, até mesmo as crianças, desempenham seus papéis. É uma sociedade patriarcal e autoritária.

A história nos é contada muitos anos depois, pelo professor (Ernst Jacobi). No filme, o vemos jovem (Christian Friedel). O velho pretende narrar com objetividade e precisão. Ele não vai tirar conclusões. Ele não tem as respostas. Ele vai se ater aos fatos. 

O primeiro fato é este: alguém esticou um fio entre as árvores na entrada do pátio do médico que cruelmente jogará o médico e o cavalo desavisados ​​no chão, ferindo os dois. Quem fez isso e o porquê, nunca nos é dito. Certamente, no final do filme, podemos acreditar que o médico mereceu, um doutor aparentemente gentil, mas um homem odioso que molesta sua filha de 14 anos e usou e abusou sexualmente da parteira, desafiando-a a cometer suicídio quando ele a rejeita. Nesta aldeia, todas as mulheres são subjugadas.



Outros incidentes ocorrem. Um celeiro é queimado. Uma criança é encontrada assassinada. Alguém fez cada uma dessas coisas? A questão é que apenas uma pessoa não poderia facilmente ter feito tudo isso. Há informações sobre onde várias pessoas estavam em vários momentos. É como fosse um convite para o espectador jogar um jogo de detetive e deduzir o criminoso. Porém, em A Fita Branca as pistas não coincidem. 

Mas a vida aparentemente continua de forma ordenada, como um giroscópio que se inclina e depois se endireita. O barão volta a manter seu povo na linha. O médico retoma sua prática, mas é inexplicavelmente cruel com sua amante. O professor ensina, os alunos estudam e cantam no coral. Os cultos da igreja são atendidos. E uma fita branca é usada por crianças que foram más, mas agora tentarão ser boas. 

Muitos dos eventos que Haneke nos mostra são universais na vida das crianças, mas apresentados em sua versão mais cruel e amarga. O filho do mordomo (talvez um de 12 anos), de uma família grande e crescente, se ressente do fato de sua mãe ter dado à luz mais um menino. O que acontece inesperadamente é que o filho (somos levados a suspeitar) deixa a janela do bebê aberta no auge do inverno - uma tentativa de se livrar de seu odiado rival. 

Este filho do mordomo e um irmão mais velho têm tanta inveja do filho mais novo do barão, Sigi, que o jogam na lagoa e roubam seu apito. O mordomo enfurecido baterá brutalmente em seu filho, exigindo que ele entregue o apito. O menino nega obstinadamente sua culpa e então, enquanto o pai desce as escadas ainda em sua raiva, ouvimos o som inconfundível do apito vindo do quarto do menino - confissão ou desafio: talvez ambos. A fidelidade do mordomo ao barão é abjeta; seu sustento depende disso, e assim o ataque de seu filho ao mimado e amado pequeno Sigi (Fion Mutert), filho do barão, tem um significado psicológico e até político mais profundo.




Os momentos mais terríveis acontecem entre o pastor luterano e seus dois filhos mais velhos, enquanto ele os sobrecarrega com vergonha e culpa. O filho é informado de que, por causa de sua masturbação, ele apodrecerá e morrerá aqui na terra, e presumivelmente será condenado no futuro. Suas mãos estão amarradas nas laterais da cama todas as noites, não apenas como punição, mas para seu próprio bem. 

A filha mais velha do pastor, injustamente castigada e humilhada pelo pai na frente de seus colegas, escapa de seus tormentos hipócritas apenas desmaiando. Ela vai se vingar, matando o pássaro de estimação de seu pai, crucificando-o em uma tesoura. Isso é mais do que julgar seu pai pelos imperativos morais que ele pregou. Em sua vingança, há algo que vai além dos imperativos morais, chegando ao diabólico. Não é apenas a questão de punir seu pai. É um show de crueldade inabalável para uma criatura inocente e vulnerável. 

Hipocrisia e ressentimento – alerta de Spoilers à frente

A ambição de A Fita Branca está na sua tese principal: a geração que mais tarde se tornaria nazista, teve a infância marcada pela percepção da hipocrisia de seus pais: a distância entre os valores que pregavam e o que efetivamente eram nas suas ações secretas – filhos ilegítimos, amantes humilhadas, traições, assédios e abusos sexuais etc. Crianças marcadas com a fita branca por serem más. Porém, viam seus pais e autoridades fazerem exatamente o contrário daquilo que professavam.



Criança internalizam os valores adultos e ingenuamente passa a acreditar neles. Crença tão profunda que passam a punir os próprios adultos por não cumprirem aquilo que professam.

Haneke mergulha na escuridão (literalmente, os ambientes domésticos são marcados pela escuridão e sombras contrastando com a claridade e esplendor da Natureza exterior) da hipocrisia das vidas domésticas e familiares. Enquanto o pastor luterano mantém no cabresto a rigorosa moral religiosa da comunidade ele “passa pano” sobre a suspeita do professor sobre a participação das crianças (seus próprios alunos) em uma conspiração punitiva contra os adultos. Além de ameaçar denunciá-lo à Justiça e mandá-lo à prisão por querer difamar uma comunidade supostamente tão respeitável.  

Haneke afirma que A Fita Branca não é um filme contra a religião. Mas Haneke é cristão, porém contra a Igreja. Por isso, o filme vê uma aliança secreta e involuntária entre a rígida moral protestante e a irrupção do nazifascismo. Afinal, antes dele, Freud suspeitava que a infância não era assim tão inocente. Mas, talvez, ingênua: introjeta valores e ideologias e tendem a levar a sério o que lhes é dito. Para depois descobrir a hipocrisia de seus pregadores. E buscar a vingança. Talvez aí esteja a base de todo o ressentimento que na História foi traduzida politicamente pelo extremismo.



 

Ficha Técnica

 

Título: A Fita Branca

Diretores: Michael Haneke

Roteiro: Michael Haneke

Elenco:  Christian Friedel, Ernst Jacob, Ulrich Tukur, Leonie Benesch, Ursina Lardi, Fion Mutert

Produção: Wega Film, X-Filme Criative Pool

Distribuição: Imovision (Brasil)

Ano: 2009

País: Alemanha

 

Postagens Relacionadas

 

A transparência do Mal em “Saló ou os 120 Dias de Sodoma” de Pasolini

 

 

Filme “Borgman” mostra como uma família burguesa se autodestrói

 

 

 

O ovo da serpente do PT e a concepção fascista de vida

 

 

Fascismo, sexo e poder em “Tras El Cristal”