Pages

domingo, agosto 01, 2021

'Doutor Sono' aprofunda visão gnóstica de 'O Iluminado' de Stephen King e Kubrick


O escritor Stephen King sempre deixou bem claro sua discordância com a adaptação cinematográfica de Kubrick do seu livro “O Iluminado” de 1977. Achou o filme clássico uma “experiência mórbida, niilista e vazia”. Foi pensando em se livrar do filme que acabou sobrepondo o próprio livro, que em 2013 escreveu o livro “Doutor Sono”, continuação de “O Iluminado” no qual aprofunda o insight gnóstico sobre a “iluminação” que Kubrick não aprofundou: existem forças ocultas nesse mundo que prosperam com a dor e a miséria dos vivos, explorando egoisticamente a luz encontrada dentro dos outros. Coube ao cineasta Mike Flanagan a difícil missão de juntar no filme de 2019 “Doutor Sono” os legados de King e Kubrick. Acompanhamos o menino Danny, agora adulto, lidando com seus dons paranormais de “iluminado” e tendo que enfrentar essas forças ocultas, para retornar ao icônico Hotel Overlook. Agora transformado num parque temático de pesadelos para os fãs do gênero.  

“É um Cadillac sem motor. Você não pode fazer nada a não ser admirá-lo, como uma escultura. O propósito principal foi retirado: contar uma história”. Dessa maneira o escritor Stephen King certa vez se referiu à adaptação do cineasta Stanley Kubrick do seu livro de 1977 “O Iluminado”.

Para King, O Iluminado de Kubrick foi uma experiência mórbida, niilista, sem compaixão com seus personagens e, ao mesmo tempo, superficial e vazia. O final do filme (diferente do livro) não consegue dar a redenção e humanidade aos protagonistas, segundo King.

O Iluminado, de Stephen King, possuía um pressuposto gnóstico que, na versão cinematográfica, foi pouco desenvolvido: existem forças nesse mundo que prosperam com a dor e a miséria dos vivos, explorando egoisticamente a grandeza encontrada dentro dos outros: a “iluminação”. Para o Gnosticismo, a fagulha de luz espiritual dentro de cada um de nós, que nos conecta com a divindade fora desse cosmos físico de dor e sofrimento. A gnose seria justamente a autodescoberta dessa força e seu controle não apenas uma forma de autodefesa. Mas também de rota de saída desse mundo.

Por isso, não foi fácil a missão assumida pelo cineasta Mike Flanagan (A Maldição da Residência Hill): conectar as visões opostas de Stephen King e Stanley Kubrick no filme Doutor Sono (Doctor Sleep, 2019), a continuação de O Iluminado

Flanagan foi encarregado de fazer uma sequência de um filme que se mantém fiel a um livro que ignora as mudanças feitas no primeiro filme. Isso não é fácil. Diferentes personagens estão em diferentes lugares no final das versões do livro e do filme O Iluminado, e Flanagan tem que unir os dois. 

Por exemplo, o livro original de King termina com a explosão do Overlook Hotel. Ao contrário de O Iluminado de Kubrick, no qual Jack Torrance termina como mais uma das almas penadas presas no hotel. Flanagan luta para satisfazer fãs de King e Kubrick. Mas ele é talentoso o suficiente para realizar essa difícil mistura de legados.

Doutor Sono faz jus a Kubrick, revisitando no terceiro ato final o Hotel Overloock e toda a sua imagerieque celebrizou o filme de 1980 - o sangue jorrando das portas dos velhos elevadores navajo déco, os corredores com seus carpetes hexagonais laranjas, as meninas gêmeas com seus vestidos azul-petróleo, o fantasma da idosa decrépita emergindo por trás da cortina do banheiro do quarto 237 – e aprofundando o insight gnóstico pouco desenvolvido no filme clássico.

Insatisfeito, Stephen King escreveu “Doutor Sono”, em 2013, um romance de 531 páginas (menos que o padrão dos livros de King) e condicionou o diretor Mike Flanagan a, dessa vez, seguir à risca o livro. Mas seria impossível Doutor Sono deixar de prestar uma homenagem e revisitar o fantasmagórico Hotel Overlook. Agora, transformando num parque temático de pesadelos que podemos visitar.



O Filme

Após um prólogo que revela um jovem Danny Torrance descobrindo como controlar seus poderes de “iluminação” e aprendendo a capturar os fantasmas que o assombram através de uma caixa imaginária, somos reintroduzidos a um Dan adulto, interpretado por Ewan McGregor. Fiel ao livro, ele basicamente está usando o alcoolismo para esconder seu trauma.

Danny cresceu e se tornou o tipo de negligente de meia-idade que cai em brigas de bar, invariavelmente bêbado. Chega ao fundo do poço quando rouba o dinheiro de uma mulher com quem passou uma noite de sexo regada a bebida e cocaína. Ele acorda ao lado de seu cadáver, apenas para descobrir que ela é mãe e seu pequeno filho está no quarto ao lado.

Desesperado, pega um ônibus para New Hampshire para tentar fugir de tudo e encontrar estabilidade em uma nova existência. Junta-se aos AA e faz um amigo chamado Billy (Cliff Curtis). 

Não é preciso muito para perceber como Dan acabou se tornando um bêbado raivoso: seu pai também era. Seu pai também se tornou um psicopata que tentou assassinar sua esposa e filho, o que deixou em Dan uma séria ferida psíquica. Dan carrega demônios do tipo pessoal - mas, é claro, ele está também ainda “brilhando”, captando vozes e fantasmas díspares como se sua cabeça fosse um receptor de rádio, embora ele tente manter as vozes compartimentadas em “cofres”, como o velho Dick Hallorann (Carl Lumbly) o ensinou a fazer. 

Dan consegue um emprego como ordenança em uma clínica especializada em doentes terminais, onde usa suas habilidades psíquicas para ajudar os pacientes a irem para o além - daí seu apelido, “Doutor Sono”. 



E em seu quarto alugado no sótão, onde há uma parede inteira é um quadro-negro, ele começa a ver mensagens misteriosas rabiscadas em giz, à distância, por outra “iluminada”: a menina chamada Abra Stone (Kyliegh Curran) tão poderosa que consegue perceber a aproximação de um grupo errante de criaturas poderosas que não são exatamente invulneráveis, mas encontraram uma maneira de serem imortais. Eles se autodenominam “Verdadeiro Nó”, e viajam pelo país em busca de crianças que “brilham”, roubando sua essência (ou “vapor”, como chamam) e se alimentando dela. 

Flanagan não se intimida com a horror a que emerge desse argumento. Em uma das cenas mais perturbadoras do filme, o “Verdadeiro Nó” sequestra um menino (Jacob Tremblay) e o mata brutalmente - afinal, a tortura, o terror e a dor da vítima tornam o vapor que libera muito mais doce e poderoso.

O grupo é liderado por Rose The Hat (Rebecca Ferguson). O que aumenta o terror é que Rose é uma figura diabolicamente sedutora. Com seu chapéu de mágico e joias hippie, ela parece uma líder de algum grupo satânico ao melhor estilo Charles Mason, que pensa que é seu direito viver o tempo que quiser, custe o que custar. Em essência, ela está liderando um culto de vampiros que se alimentam do assassinato de crianças. No entanto, ela o faz com um sorriso. A narrativa torna Rose ao mesmo tempo imperial e sensual, uma fora da lei no topo de sua mitologia.



Visão gnóstica

Forças ocultas nesse mundo que se alimentam da energia gerada pelo medo e desespero é a visão gnóstica de uma ordem de reprodução perversa desse mundo. Filmes como os clássicos gnósticos Show de Truman(um reality show que se alimenta do carisma de Truman) e Matrix (as máquinas absorvendo a energia humana gerada por vidas numa realidade virtual) ou mesmo o filme Ink (entidades astrais que se alimentam do medo e ressentimento dos sonhos dos humanos) expressam essa cosmologia perversa que é o tema central de Doutor Sono.

O “Verdadeiro Nó” se assemelham aos Arcontes ou “pequenos regentes,” tal como descritos nas narrativas gnósticas - maliciosos anjos criados pelo Demiurgo para auxiliá-lo, por meio das armas do mal e da ilusão, manter o homem aprisionado no interior dos círculos da matéria. explora as três grandes características desses personagens, tal como descritas nas obras gnósticas de diversas correntes: a capacidade de iludir (pela religião, pela Ciência ou pela Razão); capacidade de seduzir (pela sensualidade ou pelos símbolos de Poder); e o inebriamento pelo próprio poder a ponto de não perceber os limites.

A ironia em Doutor Sono é que a líder Rose the Hat reclama da qualidade do “vapor” dos últimos tempos extraída dos “iluminados”: parece estar se deteriorando com o estilo de vida, hábitos e cultura dos humanos – a mesma ordem que cria a ilusão necessária para não vermos a verdade, também prejudica a qualidade da energia para manter esse mesmo sistema em funcionamento.


 

Ficha Técnica 

Título: Doutor Sono

Criador: Mike Flanagan

Roteiro: Mike Flanagan, Stephen King

Elenco: Ewan McGregor, Rebecca Ferguson, Kyliegh Curran

Produção: Warner Bros, Intrepid Pictures

Distribuição:  Warner Bros

Ano: 2019

País: EUA

 

 

Postagens Relacionadas


As oportunidades perdidas na série “Under The Dome”



Cartografias AstroGnósticas do Além em “Destino Especial”



Exposição faz viagem pela mente de Stanley Kubrick e alimenta conspirações



Conheça as dez maiores conspirações no cinema