Pages

terça-feira, julho 27, 2021

Visões gnósticas e budistas sobre a roda da vida e morte em 'Life After Life'


Pegue as visões budistas sobre a Roda do Samsara, o ciclo incessante e doloroso de mortes e renascimentos na qual estamos presos pelo carma. Combine com o mito grego de Sísifo como metáfora do absurdo da existência humana, como descreve o escritor Albert Camus. E ainda mais, tendo como cenário um pequeno vilarejo do noroeste da China, expulso pelo crescimento da rápida industrialização do país. Teremos o filme chinês “Life After Life” (Zhi Fan Ye Mao, 2016). O espírito da mãe falecida assume o corpo do filho para realizar o seu último desejo, para só depois poder renascer: replantar uma árvore muito importante para que esta sobreviva à destruição do pequeno vilarejo pela expansão dos negócios de uma mineradora. Uma narrativa bem diferente dos clichês sentimentais e ocidentais sobre pessoas mortas voltando à vida.  

No ensaio filosófico O Mito de Sísifo, o escritor francês Albert Camus compara o absurdo da condição existencial humana com a situação de Sísifo, personagem da mitologia grega. Sísifo foi condenado pelos deuses a repetir eternamente a tarefa de empurrar uma pesada pedra até o topo da montanha. Toda vez que estava quase alcançando o objetivo, a pedra rolava abaixo, até o ponto de partida, invalidando todo o esforço dispendido.

Para Camus, nossa vida é construída a partir da esperança do amanhã que apenas nos aproxima da morte. As pessoas vivem dentro de uma ilusão romântica, como se não tivessem a certeza da morte. Uma vez despojado das ilusões, o mundo se torna desumano e estranho. O mundo é um absurdo pela impossibilidade de reduzi-lo a um princípio racional razoável.

Esse absurdo da vida humana como a própria condição de Sísifo teria um paralelo com os ciclos de morte e renascimentos descritos pelo Budismo como a “Roda do Samsara”? – o renascimento como um ciclo sem fim que sempre se renova, numa sequência de momentos conscientes fragmentados em distrações, anseios e emoções destrutivas que apenas reforçam a inconsciência e o carma.

Para o jovem diretor chinês Hanyi Zhang, sim! No seu primeiro longa Life After Life (Zhi Fan Ye Mao, 2016) canaliza do começo ao fim as visões de Camus sobre Sísifo e a condição humana, numa narrativa em que transforma uma história de fantasma numa espécie de realismo fantástico em uma província rural no interior da China.

O título em chinês pode ser traduzido como “ramos labirínticos com muitas folhas”. Um título que faz muito mais jus à narrativa do que o título ocidental “vida após a vida”: a produção chinesa é um típico slow moviemais ao gosto dos cinéfilos do que ao público médio acostumado aos clichês ocidentais (e de fundo judaico-cristão) sobre fantasmas ou a vida no além.



Uma narrativa lenta, contemplativa, como ramificações labirínticas de um conto existencial girando em torno da tentativa de um homem e seu filho de salvar uma árvore em um vilarejo decadente no noroeste da China. 

Um conto de realismo fantástico porque aquilo que um ocidental chamaria de sobrenatural, para os personagens do filme são apenas eventos rotineiros, sem nenhuma surpresa: o espírito da esposa morta já há algum tempo retorna, através do corpo do próprio filho, para avisar ao seu marido na Terra o seu último desejo no outro mundo, antes que tenha que renascer: salvar a árvore que ela plantou e cuidava diante de uma grande ameaça, a modernização.

Paralelo à narrativa fantástica, há um forte comentário social: a alienação social decorrente sobre uma distante província rural que se defronta com o acelerado crescimento econômico do país. A expansão de um empreendimento de mineração na região devastou a agricultura e agora está expulsando os moradores para conjuntos habitacionais tão cinzentos quanto os seus vilarejos decadentes que estão abandonando.



O Filme

Filmado em tons de marrom e cinza desaturados, o vilarejo no centro da história está despovoado e morrendo, com seus pomares e residências em ruínas, com a maioria dos residentes mudando-se para cortiços igualmente sombrios a alguns quilômetros de distância.

Entre os que ainda permanecem está um senhor de meia-idade chamado Mingchun (Zhang Mingjun), que tem que lutar tanto contra as dificuldades da sua existência empobrecida como contra as reclamações de seu filho Leilei (Zhang Li), um menino que se esforça para entender por que tem que suportar o peso da opção de seu pai por uma vida rural desprovida de confortos modernos. 

Tudo começa numa cena que parece fazer uma alusão ao incidente de Alice com o coelho que dá início a tudo, no clássico livro de Lewis Carroll. Depois de uma briga com seu pai quando procuravam lenha para enfrentar mais uma noite de frio (Leilei quer encontrar um "emprego de homem", como trabalhar em um guindaste, para sair de uma vida que depende da lenha e do mínimo para sustento) Leilei se distrai correndo atrás de um coelho, apenas para voltar possuído pelo espírito de sua própria mãe morta.

Ela diz que voltou porque quer mover uma árvore que ficava em frente à casa em que viveram juntos. Quer salvar a sua árvore da destruição provocada pelo avanço das operações da mineradora. 

Assim começa a jornada de Mingchun e sua esposa/filho pela região para pedir ajuda à família e aos amigos. Visitas que revelam as relações frias da família com seus próprios parentes, mas também a frustração e ansiedade que permeiam uma parte do interior da China devastada pelo desaparecimento da agricultura de subsistência pela industrialização. 

Tudo isso se desdobra por tangentes dramáticas absurdas (como quando Mingchun visita as novas encarnações de seus pais em animais como um cachorro e um pássaro) ou imagens impressionantes, como, por exemplo, cabras presas em árvores, uma família carregando um armário em uma estrada rural etc.



O interessante em Life After Life é que, fosse um filme ocidental, estaria crivado de clichês sentimentais de dramas sobrenaturais comuns sobre pessoas mortas voltando à vida e linhas de diálogo sobre reflexões sobre como eram bons os velhos tempos. Ao contrário, Zhang opta por uma estética minimalista, contemplativa, com estranhos momentos de humor negro. Muito por conta da absoluta normalidade como os personagens lidam com espíritos e reencarnações.

Além do que o filme faz uma interessante combinação entre as visões do “renascimento” (o Budismo não usa o termo “reencarnação” por considerar que não há renascimento de uma identidade permanente, mas de agregados impermanentes) com as críticas gnósticas de Camus sobre o absurdo da existência.

Duas sequências são simbólicas no filme: uma tentativa desastrada de mover uma árvore para cima de uma prancha até a parte superior de uma carroçaria, para cair e repetir a ação outra vez; e a outra sobre o arrasto de uma rocha gigantesca por um grupo de moradores do vilarejo.

Parece que o diretor Zhang Hanyi que discutir a absoluta inutilidade do trabalho de Sísifo humano diante dos círculos de morte e renascimentos. O trabalho hercúleo para a realização do desejo da esposa morta é totalmente inútil diante do avanço da industrialização da China moderna que destrói os vínculos dos moradores das pequenas províncias com os animais, pedras e árvores – alguns deles, possivelmente renascimentos de entes queridos.

Homens e fantasmas lutando em um mundo absurdo e, ao mesmo tempo, com um estranhamente assustador senso de humor negro.  


 

Ficha Técnica 

Título: Life After Life

Criador: Hanyi Zangh

Roteiro: Hanyi Zangh

Elenco: Zangh Li, Zangh Mingjun

Produção: Xstream Pictures

Distribuição:  Zeta Filmes

Ano: 2016

País: China

 

 

Postagens Relacionadas


Filme chinês “Kaili Blues” desafia espectador ocidental com sensibilidade budista



“Enter the Void”, drogas e o Livro Tibetano dos Mortos



O guia do mochileiro do após morte no filme “Bardo Blues”



China proíbe viagem no tempo: a experiência cinematográfica pode ser perigosa