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quinta-feira, janeiro 27, 2022

Exorcismo, gnosticismo e a religião americana no filme 'Agnes'


Um padre suspeito de pedofilia e alcoólatra, com um jovem diácono como assistente, é escalado pelo Vaticano para avaliar um caso de possessão em um convento de carmelitas e, ocasionalmente, praticar o exorcismo. “Agnes” (2021) começa como um típico filme sobre terror e exorcismo. Mas a metalinguagem irônica dos clichês do subgênero revela que o filme busca outras questões: tudo bem expulsar o demônio, mas e depois? Como fica a fé depois de uma experiência como essa? O que ocorrerá depois com a vida dos envolvidos? Por que Deus permite que demônios assediem a humanidade? Seria um teste arbitrário de Deus apenas para testar a fé Nele? Como produção norte-americana, “Agnes” desafia a Igreja e revela o núcleo da chamada “religião americana”: a busca da experiência direta com o Sagrado através da autodivinização gnóstica.

Quando a freira novata Agnes (Hayley McFarland) enlouquece no jantar, chamando todas as outras freiras de "prostitutas", e aparentemente fazendo a louça se mover ao redor da mesa com sua mente, a irmandade fica naturalmente assustada e confusa. 

São freiras carmelitas, que vivem reclusas em um sombrio convento de Santa Teresa, sem qualquer contato com o mundo exterior. Elas estão completamente despreparadas para lidar com o surto psicótico de Agnes. Então adotam o modus operandi em filmes como esse: amarram Agnes a uma cama, onde ela se debate espumando pela boca. Todas oram sobre ela. 

A Madre Superiora (Mary Buss), figura intensa com rosto contraído e olhos sempre histéricos, faz uma ligação para o Vaticano solicitando ajuda imediata. Mary (Molly C. Quinn), outra jovem freira, observa com horror a transformação da amiga. 

Essas cenas compõem a eficaz (e inesperada) sequência de abertura do drama de exorcismo do diretor Mickey Reece. Porém, o exorcismo não é o evento principal de Agnes (2021), mas apenas o Prólogo. 

Filmes sobre conventos e famílias atingidas pelo fenômeno da possessão demoníaca têm uma longa linhagem no cinema, do clássico O Exorcista (1973) à enxurrada de produções e franquias sobre o tema nesse século. São sempre narrativas cujo tema central é a luta entre a fé e o ceticismo para expulsar o demônio da alma de uma vítima inocente. 

Tudo bem expulsar o demônio. Mas para onde você vai a partir daí? Qual o próximo passo? O que será da fé depois de um confronto como esse? Ou quais mudanças ocorrerão na vida dos envolvidos após tamanho trauma?



Agnes é um filme que engana propositalmente começa dando pistas falsas ao espectador: primeiro, não se trata de um filme sobre Agnes, a possuída. E nem um filme centrado exclusivamente no teatro aterrorizante do ritual do exorcismo. Mas em Mary, a amiga impactada por tudo que envolveu Agnes. Agnes parece existir como uma memória onírica que assombra todo o filme. 

E segundo, ao colocar o ritual do exorcismo (representado de forma caricata, como fizesse uma metalinguagem irônica dos clichês das representações nos filmes de terror) como um prólogo, ao qual sempre somos convocados a relembrar para entendermos o desenrolar da estória nos seus atos subsequentes.

A novidade na abordagem do tema é desenvolver o “day after”: e depois do exorcismo? Como recolher os cacos que ficaram? Principalmente os cacos referentes à fé: se na teologia católica Deus, em sua infinita graça e compaixão, jamais deixaria espíritos dos mortos e demônios vagando pela Terra (os mortos ficam apenas à espera da Ressurreição, no fim dos tempos ou no Apocalipse, para o julgamento final), como entender que Deus permita “exceções” que resulta em confrontos de servos da Igreja contra demônios? Então, qual seria o propósito divino? Propositalmente testar a nossa fé Nele? Testar os alicerces da Igreja que O representa nesse mundo?

Essa é apenas uma das dúvidas que assombram Mary ao longo do filme: por que o demônio escolher Agnes? Será esse Deus, que arquiteta provas de fé como essas, que estamos buscando?




O Filme

Parece que o Vaticano II (Concílio ecumênico realizado de 1962 a 65 que modernizou muitos temas da Igreja) não chegou àquele claustro de carmelitas. Isoladas e fechadas para o mundo, a muito custo a Madre Superiora aceita a intervenção do padre Donaghue (Ben Hall) e um jovem diácono Ben (Jake Horowitz). Eles são enviados pelo Vaticano para dar conta da situação: avaliar e, se for o caso, exorcizar.

Hall interpreta Donaghue como um libertino laico e alcoólatra, que usa o nome do Senhor em vão. E está em desgraça com a Igreja por, segundo rumores, comportamento "inapropriado" com os coroinhas – ele sabe que a sua indicação é uma armadilha para finalmente ser desmoralizado. Para salvar as aparências, a Igreja não o expulsou, mas o envia de paróquia em paróquia em incumbências tolas como aquela.

Donaghue se refere ao exorcismo como "um dos mais elaborados atos de música e dança que o mundo já viu", para ele apenas um palco para exercitar suas atitudes profanas. A princípio, o exorcismo parece ter funcionado, e Agnes emerge de seu delírio. A pausa não dura muito, e as coisas ficam piores. 

Padre Donaghue faz uma ligação desesperada para um padre famoso e glamoroso, Padre Black (Chris Browning), também em desgraça com Roma, mas favorito no circuito dos talk show sensacionalistas da TV. Padre Black tem uma tatuagem em seu braço, ostenta um bigode tipo Errol Flynn, um bronzeado falso e um terno brilhante cor de berinjela. Padre Black é totalmente caricato – a atuação de Browning é impagável.




Sem aviso, o filme salta para o futuro. Mary deixou o convento e trabalha em um supermercado, lutando para evitar os assédios de seu chefe malicioso. Seu mundo é sombrio, assustador e repleto de ameaças. Assombrada por Agnes, Mary procura o homem que Agnes uma vez amou, um comediante de stand up chamado Paul (Sean Gunn). Mary procura respostas.

Revive sua história de perdas, assim como segue os rastros das perdas de Agnes – seus amores e oportunidades em ter uma vida diferente. Parece que as perdas, frustrações e falta de respostas as levaram para o claustro do Convento Santa Tereza.

Gnosticismo e a religião americana – alerta de spoilers à frente

Como será revelado ao longo do filme, a protagonista levanta uma questão herética: é possível buscar no homem uma ligação com a Divindade unicamente no comportamento virtuoso? O episódio do exorcismo deixou profundas marcas nela: no convento, a única resposta que encontrou foi um arbitrário teste de fé, certamente arquitetado por um deus demiúrgico.

Principalmente no que é revelado no diálogo de Mary no reencontro com o jovem diácono do primeiro ato do filme (a metáfora da busca do recheio do sanduíche como a busca do Sagrado no meio das camadas sem sabor da própria existência) – Deus ou a própria experiência de contato direto com o sagrado não passaria mais pela religião institucionalizada com suas hierarquias e rituais.



Mas na busca do Divino dentro de nós mesmos: na autodivinização.

Dessa maneira, a produção norte-americana Agnes apresenta aquilo que certa vez o crítico literário Harold Bloom chamou de “religião americana”: um mix de autodivinização gnóstica, mormismo, sulismo batista e pentencostalismo. Uma estranha forma de puritanismo cujas origens estavam nas chamadas “Providências” (formas narrativas anedóticas puritanas que descreviam milagres que ilustravam como a vontade divina se manifesta na vida cotidiana), estórias sobre magia africana, magazines e livros de bolso. Um amálgama entre o fantástico, o grotesco e uma reinterpretação da teologia cristã a partir da autodivinização, ou seja, a busca do Divino dentro de si mesmo. Uma americanização da religião a partir da junção de aspectos do hermeticismo, alquimia, gnosticismo, magia popular que produziu uma plena alternativa para o Cristianismo.

Ao encontrar os milagres no cotidiano (ou nas camadas do “sanduíche”), encontraríamos o contato direto com o Sagrado. E a divindade dentro de nós mesmos. Isso significa que comportamentos virtuosos nada têm a ver com a “salvação” – aquilo que é moralmente e eticamente “bom” para a Igreja: celibato, reclusão, controle e repressão dos impulsos, desejos e paixões etc.

Nada mais gnóstico: a compaixão, o amor ao próximo e o perdão não são “bons” em si mesmos, atos virtuosos que garantiriam para nós um lugar ao lado de Deus no final dos tempos. Mas apenas uma necessidade estratégica: somente através da união de todos nós o demiurgo deixará de ter efeito sobre esse mundo.


 

Ficha Técnica 

Título: Agnes

Diretor: Mickey Reece

Roteiro:  Mickey Reece, John Selvidge

Elenco:  Hayley McFarland, Mary Buss, Molly C. Quinn, Ben Hall, Jake Horowitz, Sean Gunn

Produção: Divide/Conquer, Perm Machine

Distribuição: Magnolia Pictures

Ano: 2021

País: EUA

 

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