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quarta-feira, janeiro 26, 2022

Meios de comunicação criam falsas realidades mágicas em 'História do Oculto'



No pôster promocional vemos um personagem emulando o célebre gesto Thelêmico do bruxo Aleister Crowley. E o título do filme argentino da Netflix, estreia em longas do diretor Cristian Ponce (conhecido pela web série “Frequência Kirlian”), é instigante: “A História do Oculto” (2020). Uma espécie de mix entre o clássico “Todos os Homens do Presidente” (1976) com bruxaria: um thriller de terror político-paranormal. Mas o filme vai além do clichê de sociedades secretas controlando candidatos manchurianos. Estende o conceito de magia à tecnologia e meios de comunicação, capazes de criar falsas realidades “mágicas”. Um grupo de jornalistas e produtores corre contra o tempo para colocar no ar, em um talk show, provas que podem derrubar o presidente da Argentina: as suas conexões com uma confraria de bruxos e fundadores de uma corporação beneficiada pelo governo. 

Magia: arte, ciência ou prática baseada na crença de ser possível influenciar o curso dos acontecimentos e produzir efeitos não naturais, valendo-se da intervenção de seres fantásticos e da manipulação de algum princípio oculto, seja por meio de fórmulas rituais ou ações simbólicas. Qualquer procedimento mágico ou fantástico.

Quando pensamos em magia e ocultismo, logo vem à nossa mente imagens de bruxos cercados por velas no interior de pentagramas ou outros diagramas de origem cabalística e intricados rituais cujos significados herméticos ou ocultos são conhecidos apenas por iniciados.

Porém, se partirmos da definição do conceito de magia acima, podemos considerar que o fenômeno mágico é mais cotidiano e prosaico do que podemos imaginar. Das ações fantasmagóricas à distância das partículas quânticas (capazes de se entrelaçar à distâncias assombrosas) aos meios de comunicação e a telemática (a visão eletronicamente remota da TV e a telemática, o controle e o acesso à distância por meio das redes digitais), podemos considerar que estamos cercados de efeitos “mágicos”.

Fórmulas rituais e ações simbólicas para conseguir efeitos à distância (“influenciar os acontecimentos”) poderiam claramente ser algoritmos ou as manipulações semióticas na linguagem dos meios de comunicação – sem falar no rastreamento eletrônico das imagens e a sua reconstituição pelos pixels em uma tela.

O surpreendente thriller de terror e horror político-paranormal argentino História do Oculto (História de lo Oculto, 2020, disponível na Netflix) amplia dessa forma os conceitos de magia e ocultismo, tanto pela narrativa que parece um mix do clássico Todos os Homens do Presidente (1976) com bruxaria, quanto pelo exercício de linguagem experimental ao juntar a fotografia preto e branco com cores que progressivamente vão intervindo pontualmente nas sequências.

 História do Oculto é a estreia em longas do diretor Cristian Ponce. A partir do sucesso da web série La Frecuencia Kirlian (2017), que ganhou espaço nas plataformas Netflix, YouTube e Vimeo, Ponce conseguiu o financiamento para essa estreia. Embora já estivesse escrevendo roteiros para outros longas-metragens argentinos.

Uma Argentina dominada por uma conspiração de bruxos e satanistas envolvendo um presidente impopular e uma corporação, fundada por essa confraria de místicos, que estranhamente cresceu rapidamente durante o governo.

O pôster promocional do filme, com um personagem emulando a famosa foto do maior ocultista do século XX, Aleister Crowley, e o fotograma de um bruxo no interior de um pentagrama desenhado em um piso e cercado de valas, servem de chamariz para aqueles espectadores com a clássica imagem da magia e ocultismo: o terror sobrenatural que sempre cercaram os bruxos e ocultistas. Disso se alimenta os filmes de terror.



Porém, História do Oculto vai muito além de um thriller político paranormal (ou “parapolítico”) ao colocar como centro da narrativa um programa de jornalismo investigativo, os seus produtores que, à distância, tentam levar ao ar as provas que fariam cair o presidente e uma insólita manifestação política em Buenos Aires, que irá ocorrer à meia-noite, logo após o programa chamado “60 Minutos Antes da Meia-Noite”. 

O truque do roteiro de Cristian Ponce lembra o western clássico Matar ou Morrer (High Noon, 1953) em que a ação ocorre em tempo real, ou seja, começa às 10h40e vai andando, minuto a minuto, até o meio-dia. 

Mas em História do Oculto será meia-noite, seguindo minuto a minuto o tempo em que transcorre o programa “60 Minutos”: a corrida contra o tempo de jornalistas e produtores até o final da última edição de um programa que será tirado do ar pelas pressões do governo.




Mas a um outro inimigo, que é sempre apenas sugerido, está à espreita podendo colocar tudo a perder: a magia e o sobrenatural. Porém, no seu aspecto mais amplo e cotidiano: a “magia” quântica e midiática.

O Filme

História do Oculto abre, em uma bela fotografia em preto e branco e tela na proporção 4:3, com um vigia no meio da noite encontrando uma cena bizarra: um corpo ao lado de quem seria um bruxo (Raúl Omar Garcia) no meio de velas em um círculo mágico. O suposto bruxo desaparece, para deixar um caderno ao lado do corpo de um indigente.

Os nomes contidos naquele caderno, ao lado de páginas com estranhos diagramas e símbolos, levarão dois personagens a participar da última edição do programa “60 Minutos Antes da Meia-Noite”: um sociólogo chamado Daniel Aguilar (Luciano Guglielmino), autor de livros que denuncia seitas de ocultistas charlatães, o senador Matias Linares (Hernán Altamirano) e um ocultista líder da “seita do fim do mundo”, Adrian Marcato (Germán Baudino). 

O detalhe que torna o programa potencialmente explosivo é que Marcato foi um dos fundadores da Kingdom Corporate, empresa de ascensão meteórica durante o governo do atual presidente Belasco – Marcato e Belasco, e outros amigos de universidade, supostamente teriam formado uma confraria ocultista, cujo poder da influência da magia e bruxaria levaram ao sucesso político e empresarial do grupo. 




Enquanto isso, em uma casa com localização secreta, um grupo de produtores e jornalistas do programa articulam um plano para levar ao ar provas que possam derrubar o presidente. O problema é que aquele será o último programa – por pressão do governo, todos os anunciantes abandonaram o “60 Minutos”. Todos correm contra o tempo real em que o programa é apresentado.

Mas há uma ameaça maior, sobrenatural: eles sabem que estão enfrentando uma sociedade secreta ocultista. Temem serem alvos de algum tipo de intervenção sobrenatural.

A iconografia do filme faz muitas referências à magia Thelêmica de Aleister Crowley e ao horror cósmico de H.P. Lovecraft. E o claro e escuro da fotografia noir cria sequências claustrofóbicas de onde sempre parece que algo sobrenatural poderá saltar a qualquer momento.

História do Oculto poderia confortavelmente ficar no argumento clichê do teatro da sociedade secreta maçônica que secretamente mexe os cordões da política, criando candidatos manchurianos controlados por lavagem cerebral e muita bruxaria para eliminar inimigos.




Porém, Cristian Ponce optou por um caminho mais difícil: um autêntico quebra-cabeças “mind blowing” em que procura expandir as conexões entre magia e política. Tendendo para o realismo fantástico.

O futuro acabou – alerta de spoilers à frente

Para começar, a Buenos Aires dos anos 1980 é representada de uma maneira alternativa: não há ditadura militar, as Ilhas Malvinas são figuradas em um comercial de TV como um paradisíaco centro turístico. E a protagonista do filme clássico O Exorcista foi... a atriz e cantora argentina Andrea del Boca. É uma estranha Argentina paralela, com uma atmosfera thriller-político-paranormal-retro-futurista.

Uma realidade tão paralela que uma manifestação política de massa ocorrerá à meia-noite e um programa fora do horário nobre e no final da noite tem o poder de fazer denúncias e abalar a República.  

A “seita do fim do mundo” e a frase “o futuro acabou” são expressões que perpassam a narrativa e são as chaves de compreensão da História do Oculto. 

Parece que não se trata apenas de derrubar o presidente. Mas de destruir aquela realidade paralela, criada magicamente pela confraria de bruxos da Kingdom Corporate.




É aqui que História do Oculto conecta o conceito de magia com os meios de comunicação: a influência à distância dos meios de comunicação para as massas como a forma mais ampla e poderosa de magia. Ou de influência sobrenatural.

Sob o poder do presidente Belasco e da confraria secreta ocultista, através dos meios de comunicação conseguiram moldar a percepção de um país inteiro sobre a realidade em que vivem: uma realidade alternativa que vive em um passado retro-futurista, com máquinas de escrever, telefones fixos, orelhões e um programa de TV ainda em linguagem radiofônica. E sem ditadura militar.

A sequência final em que o bruxo Adrian Marcato, que se revela um dissidente da confraria secreta de Belasco, consegue reverter o efeito mágico através de um Iphone, encerrando a magia daquela realidade paralela: não só o governo cairá, como o filme torna-se colorido e a proporção de tela 4:3 reverte-se em wide screen. O feitiço foi desfeito e os argentinos se libertaram daquele mundo em preto e branco. Fazendo lembrar o recurso estético do filme Pleasantville - A Vida em Preto e Branco (1998) no qual uma cidade em pb da década de 1950 torna-se colorida quando os jovens descobrem os prazeres da sexualidade reprimida.

História do Oculto leva o conceito de magia à própria Teoria da Comunicação: teorias como Media Life ou Agenda Setting nos descrevem como a realidade é basicamente criada pela percepção e imagens mediadas – a onipresença das mídias (principalmente nas atuais mídias de convergência tecnológica) e a forma como os meios de comunicação pautam não O QUE pensamos, mas o COMO devemos pensar sobre qualquer coisa, revelam como a realidade mediada altera a nossa percepção sobre a realidade.

Por exemplo, na cobertura da Copa São Paulo de futebol, que se encerrou nessa semana, discutia-se na imprensa esportiva em qual estádio seria realizada a partida final. Segundo a imprensa, não seria possível realizar-se no estádio do Pacaembu (tradicional cenário das finais) porque “está em reformas”. Um maroto eufemismo para ocultar a realidade: o estádio foi privatizado, deixando de ser o símbolo da municipalidade no dia do aniversário da cidade.

Assim como na realidade paralela do filme, a ditadura militar e a Guerra das Malvinas contra a Inglaterra sumiram. 

 

Ficha Técnica 

Título: História do Oculto

Diretor: Cristian Ponce

Roteiro:  Cristian Ponce

Elenco:  Germán Baudino, Nadia Lozano, Héctor Ostrofsky, Augustin Recondo, Raul Omar Garcia

Produção: Morbido Films, Trangram Cine

Distribuição: Netflix

Ano: 2020

País: Argentina

 

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