No momento em que os empresários Jeff Bezos e Elon Musk estão reavivando de forma privatista a fantasia modernista da conquista do espaço, assistir à coprodução sul-africana/britânica “Settlers” (2021) é muito oportuna. Aqui não temos mais heróis ou cowboys da conquista espacial, mas “colonos”, com todas as suas implicações terrenas: a questão da propriedade da terra, conquista, pilhagem, traição e violência. Tudo em um microcosmo: um assentamento marciano com atmosfera controlada na qual uma pequena família vê a chegada de intrusos que reivindicam a posse do terreno. “Settlers” é mais um exemplo de uma tendência dos sci-fi independentes: não mais explorar utopias ou distopias no sentido clássico. Mas hipo-utopias pós-modernas: ficções científicas que, paradoxalmente, parecem se ressentir de ausência de futuro. O futuro não passaria de um espelho no qual mazelas do presente são projetadas. Na verdade, o futuro não existe - ele é apenas uma tela hiperbólica do presente.
“O espaço, a fronteira final. Estas são as viagens da nave estelar Enterprise, em sua missão de cinco anos para a exploração de novos mundos, para pesquisar novas vidas, novas civilizações, audaciosamente indo aonde nenhum homem jamais esteve!”
Esse é a fala do Capitão Kirk que abria cada episódio da série clássica Jornada nas Estrelas (Star Trek, 1966-69). Essa introdução tornou-se célebre, principalmente porque sintetizava o zeitgeist da ficção científica modernista: o tempo forte do futuro, o futuro como última fronteira a ser ultrapassada pela engenhosidade e audácia humanas. Imaginar novos mundos possíveis como o motivador da ação humana. O momento em que a utopia definia o gênero sci-fi: a descrição imaginativa de futuros.
Claro que a sua antítese caminhava paralela no gênero: a distopia – o futuro também poderia ser um lugar de condição extrema de opressão, desespero e privação. Porém, no centro de tudo, está o incrível progresso tecnológico. O engenho da inteligência humana poderia ser aplicado tanto para a harmonia quanto para a opressão e autodestruição.
Porém, o século XXI criou, às margens das produções hollywoodianas do gênero, criou uma terceira tendência que pesquisadores chamam de “ficção científica do Sul”: uma produção ignorada por críticos e acadêmicos, mas que nos últimos anos passou a ser descoberta. Filmes provenientes de uma região periférica ao hegemônico sistema hollywoodiano, que articulam as narrativas e convenções do gênero com elementos culturais regionais e tradicionais.
Se a principal característica do sci-fi é a especulação sobre mundos futuros utópicos ou distópicos, nessa produção periférica, ao contrário, cria-se uma utopia que poderíamos chamar de “hipo”: na hipo-utopia o futuro tal qual previsto nas utopias científicas e tecnológicas modernistas não se realizou, nem nos seus aspectos positivos (utópicos) nem nos negativos (distópicos). “Hipo” no sentido de “insuficiência”, “posição inferior” + “topia” do grego “topos”, “lugar” – mais sobre esse conceito, clique aqui.
São produções que, paradoxalmente, parecem se ressentir de ausência de futuro: refletem mais as mazelas do presente e as projetam de forma hiperbólica em futuros próximos. Na verdade, o futuro não existe, ele é apenas uma tela paródica ou cínica do presente.
A coprodução sul-africana e britânica Settlers (2021) é mais um exemplo dessa tendência hipo-utópica no gênero sci-fi. Insere-se em uma já longa lista de diretores como Neil Blomkamp (Distrito 9 e a iniciativa da série Oats Studio para distribuir curtas hipo-utópicos) e do mexicano Alex Rivera (Cybraceros, Sleep Dealer, Futurestates).
Settlers, escrito e dirigido pelo estreante Wyatt Rockefeller, é uma oportuna visão alternativa num momento em que a mídia repercute o marketing das viagens espaciais privadas e turísticas de empresários como Jeff Bezzos e Elon Musk.
O futuro no qual colonizadores tentam prosperar na superfície de Marte antecipa os próximos passos da viagem espacial. Porém, projetando no futuro não só as mazelas do presente, como também do passado: as complicações referentes a propriedade da terra, a luta de herdeiros e as guerras colonizadoras. Emulando no futuro as mesmas tensões que marcaram as guerras culturais e econômicas da conquista da América no século XVI ou na conquista do Oeste nos EUA no século XIX.
Porém, tudo reproduzindo num microcosmo: uma herdade com atmosfera controlada na inóspita superfície marciana – uma família com três pessoas que resistem à intrusão de estranhos que reivindicam o direito de propriedade daquele lugar.
O Filme
Ilsa (Sofia Boutella) e Reza (Jonny Lee Miller) vivem em um assentamento isolado de Marte com Remmy, sua filha de nove anos. A Terra não é mais habitável e esta família unida é um dos primeiros colonizadores, equipada com tudo de que precisam para prosperar e sobreviver. A família planta vegetais e legumes até alimenta porcos, enquanto educa Remmy em matemática básica. Passam bons momentos juntos, seja observando as estrelas com o pai ou se deixando levar pelo talento da mãe no violão. A família parece estar sozinha, mas nas conversas sorrateiras entre Ilsa e Reza que a pequena Remmy bisbilhota, indicam o contrário.
Não demorou muito para termos uma resposta: no dia seguinte, são surpreendidos com a ameaçam “saiam” pichada com sangue animal em uma das janelas. Um tiroteio se segue entre Reza e colonos desconhecidos, portando armas e equipamentos táticos. Mas para pequena Remmy, além do terror da situação, algo mais está acontecendo: é a primeira vez que ela percebe que seus pais estão mentindo para ela, quase a traindo, o que se tornará uma coisa recorrente, mesmo que tenham boas intenções.
O resultado destas escaramuças é a presença de Jerry (Ismael Cruz Cordova), um homem de fala mansa, porém com evidente treinamento militar, explicando que ele está apenas reivindicando seu verdadeiro lar, depois de ter se livrado do chefe daquela pequena família.
Há evidências de que os pais de Remmy podem não ter feito as melhores escolhas e estão pagando o preço disso. Há aqui uma alegoria das guerras de conquista das colonizações históricas: conquista de terras, mulheres e riquezas.
Jerry insiste que ele vai ficar. Também não há muito que Ilsa possa fazer sobre isso, já que não há nenhum outro lugar para ir depois que o marido morreu. Isso cria nova dinâmica em que as tensões começam altas, mas parecem esfriar quando Ilsa começa aos poucos a aceitar a presença de Jerry. Afinal, ele sabe como consertar o lugar e tem até um robô de ferramentas utilitárias (parece uma caixa monocromática com pernas mecânicas) que acaba se tornando o amigo da pequena Remmy.
Mesmo assim, sempre há a sensação de que Jerry é uma pessoa perigosa, com segundas intenções. As coisas ficam mais complicadas para Remmy quando flagra um relacionamento romântico se desenvolvendo entre os dois. Para ela, é outra punhalada nas costas.
A narrativa pulará para dez anos depois, quando vemos Remmy agora adulta (Nell Tiger Free) tendo que enfrentar agora os assédios de Jerry reivindicando seus direitos de reprodução obrigatória da espécie. Enquanto Remmy planeja escapar daquele assentamento isolado do mundo exterior para descobrir o que existe do lado de fora.
Settlers é uma perfeita hipo-utopia: a colonização aqui não é abordada de forma utópica (“audaciosamente indo aonde nenhum homem jamais esteve”) e muito menos mercadológica como Musk e Bezos estão fazendo – reavivar de forma privatista a utopia modernista da conquista do espaço.
Muito pelo contrário, o futuro se transforma numa tela na qual são projetadas todas as mazelas históricas das colonizações terrestres: saque, violência, ocupação das terras e riquezas alheias, incluindo mulheres.
O deserto árido e desolado de Marte assume essa metáfora de tela: se na utopia poderia ser um espaço em branco no qual a humanidade poderia se reinventar e construir novos mundos, na hipo-utopia de Settlerstransforma-se na projeção de uma velha história repetida por toda história humana – luta, conquista e dominação.
Mas, principalmente, a estranha beleza capturada pela fotografia de Settlers, os espaços vazios de despenhadeiros, pedras, pós e desolação (locações do Cabo Setentrional da África do Sul) é o simbolismo de que o homem está solitário em um Universo inacreditavelmente vazio e sem propósito.
Não há “fronteiras finais”, mas apenas espelhos nos quais a história humana se vê refletida.
Ficha Técnica |
Título: Settlers |
Diretor: Wyatt Rockefeller |
Roteiro: Wyatt Rockefeller |
Elenco: Sofia Boutella, Ismael Cruz Cordova, Brooklynn Prince, Nell Tiger Free, Jonny Lee Miller |
Produção: Brittle-Star Pictures, Film Constellation, Jericho Motion Pictures |
Distribuição: IFC Midnight |
Ano: 2021 |
País: África do Sul/Reino Unido |