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sábado, outubro 30, 2021

Cinetanatologia: imagens do pós-morte no cinema falam mais dos vivos do que dos mortos



Sabemos o que é morrer, mas nada sabemos sobre o que vem depois. A não ser testemunhos de supostos espíritos ou as controversas experiências de quase-morte tão estudadas por médicos, psiquiatras e neurocientistas. Mas há também as representações do cinema e audiovisual. Uma verdadeira “Cinetanatologia” na qual fala-se muito menos do Grande Além e muito mais das mazelas do mundo dos vivos – as representações fílmicas do pós-morte seriam verdadeiros sismógrafos das ansiedades ou temores de cada época, criando modelos diferentes de “céus” ou “infernos”: de representações objetivas a solipsistas. Porém, o século XXI revela uma mudança nas representações: deixa de ser um momento conclusivo ou de passagem para algo totalmente outro, tornando-se um evento absolutamente banal – continuação da mesma banalidade de quando éramos vivos. Ou uma prisão cósmica de multiversos quânticos e de inspiração gnóstica.

Como até hoje nenhum cineasta conseguiu voltar da morte para produzir um documentário sobre o Grande Além, o que temos até aqui são representações sobre a morte e o morrer. Essas representações são datadas e se tornam verdadeiros sismógrafos sobre o espírito de cada tempo. Em outras palavras: as representações fílmicas e audiovisuais falam muito mais sobre os vivos do que os mortos – tornam-se reflexos das ansiedades culturais, políticas, econômicas, avanços tecnológicos e crises religiosas e espirituais de cada época.

Por outro lado, apesar das representações do céu, da morte, e da existência pós-vida se alterarem de acordo com o imaginário de cada época, uma fórmula básica se mantém, a partir da qual se criam diversas narrativas e variações: personagem principal morre, chega no “céu” (algum espaço intermediário entre a Terra e o céu, limbo, antessala celestial ou a própria plenitude celeste etc.)  e é submetido a algum tipo de julgamento (revê sua própria vida, mentores ou entidades superioras o julgam, retorna para a vida para uma “segunda chance” etc.).

Grosso modo, os céus e infernos no pós-morte no cinema variam entre representações objetivas (espaços clássicos que vão de anjos, nuvens ou grandes prisões infernais a cidades ou organizações hierárquicas) a solipsistas (haveria inúmeros céus e infernos pessoais, espaços etéricos moldados de acordo com nossas vontades, sonhos, fantasias ou culpas, ressentimentos, medos e ansiedades. 



Porém, como veremos, nas primeiras décadas do século XXI há um vislumbre de uma terceira representação alternativa, de natureza CosmoGnóstica conectado com conceitos da física quântica, paradoxos e loops temporais.

As representações do Grande Além

A pesquisadora norte-americana Amanda Shapiro em sua tese “You Only Live Twice: The Representation of the Afterlife in Film” (Miami University, 2011) apresenta um interessante inventário por décadas da produção cinematográfica sobre o tema. O resultado é esse:




A autora vai definir as representações da vida pós-morte em um espectro amplo que vai da morte do protagonista à presença de fantasmas ou anjos (o “sobrenatural” ou o “paranormal”) entre os vivos que, de alguma forma, vai submetê-los a um julgamento ou provação sob o risco da morte.

Para Shapiro, enquanto na década de 1930 as narrativas são sobre experimentos científicos que dão errado como Frankenstein (1931), nas décadas de 1940 temos a preocupação básica com a II Guerra Mundial: nas existência pós-vida vemos soldados aliados sendo recompensados no céu pelo seu esforço e sacrifício: Beyond Christmas (1940), A Guy Named Joe (1943), A Matter of Life and Death (Stairway to Heaven1946). 




Mesmo nos filmes em que a guerra não é o tema como Here Comes Mr. Jordan (1941), Heaven Can Wait (1943), Cabin in the Sky (1943), Angel on My Shoulder (1946), The Ghost and Mrs. Muir (1947), and Sunset Boulevard (1949) demonstrariam que o aumento da produção de filmes sobre o tema nessa década viria do impacto do imaginário social diante dos milhares de mortes nos campos de batalha.

Nas três décadas posteriores acompanhamos um decréscimo de filmes sobre o tema. É a época do crescimento da sociedade de consumo e da opulência econômica pós-guerra onde a discussão de temas metafísicos dá lugar ao hedonismo, comédias e sci-fi sobre monstros e invasões da Terra por outros planetas como expressões da paranoia da Guerra Fria.

A partir da década de 1980 vemos um novo boom de produção de filmes sobre o tema vida após a morte cujo ápice está no início desse século: Amor Além da Vida (1998), After Life (1998, Japão), O Sexto Sentido (1999), American Beauty (1999), What Lies Beneath (2000), Dogma (1999), Gladiator (2000), Final Destination (2000), A Passagem (2005), Um Olhar do Paraíso (2009), After Life (refilmagem, 2009, EUA), A Nightmare on Elm Street (remake, 2010), Charlie St. Cloud (2010), Enter the Void (2009), Devil (2010), e Hereafter(2010). 

Shapiro relaciona esse súbito crescimento à ansiedade cultural e tecnológica produzida pelo final de milênio e a insegurança ao entrarmos em um mundo radicalmente novo moldado pela Internet (talvez o filme Matrix, de 1999, seja a expressão máxima disso e todos os filmes catástrofes sobre o fim do mundo nos anos 1990). Os atentados de 11 de setembro nos EUA e o fim da Guerra Fria substituída por uma ameaça viral e invisível que é o “terrorismo internacional” somente teria reforçado essa preocupação existencial com a morte e o “céu”.

Porém, é marcante que a partir do filme “Amor Além da Vida” a representação da existência pós-morte passou a ser mais “plástica” e solipsista: os céus são criados por projeções psicológicas dos personagens a partir dos seus sonhos, desejos e sentimentos.




Anjos caídos

Nas primeiras décadas do século XX temos uma representação do céu a partir do espaço clássico com nuvens e anjos tocando harpas. Em 1941, “Here Comes Mr. Jordan” mostra um céu organizado, hierarquizado e burocrático quando um homem é arrancado acidentalmente dessa vida em um acidente de avião. O porteiro do céu percebe o erro e tem que se reportar a seus superiores para solucionar o problema da chegada prematura do protagonista. O “céu” parece ser o reflexo da fase do capitalismo naquele momento: grandes cidades e concentração do capital em gigantescas fábricas e escritórios.

A partir da década de 1980 temos a expansão do capitalismo de acumulação flexível, terceirizado, o crescimento da financeirização e o desenvolvimento da Internet e tecnologias virtuais e de simulação. Para autores como Erick Felinto, o que caracterizaria a nova subjetividade desse novo ambiente econômico e tecnológico seria o “sujeito pneumático” (do grego “pneuma”, “espírito” ou alma”), um anjo caído, desejoso em criar seu próprio mundo para assim poder contornar as recusas que este lhe impõe. Anjos solipsistas, imersos em si mesmos em ambientes virtuais altamente plásticos e moldáveis habitados por avatares e com a possibilidade de criação do próprio cibermundo pessoal - FELINTO, Erick, “A Tecnoreligião e o sujeito pneumático no imaginário da cibercultura”, In: Revista Alceu v.6 - n.12, jan/jun., 2006.

Por isso, o “céu” único para onde todos vão para serem julgados, hoje foi substituído por “céus” pessoais de acordo com suas vontades, caprichos e pesadelos.




A banalidade da vida pós-morte

Mesmo nessa mudança histórica das representações do pós-morte (das objetivas para as solipsistas), há ainda o respeito ou o horror metafísico pelo Grande Além – de qualquer forma, sair dessa vida significa um divisor de águas radical, partir para um outro mundo cuja natureza é totalmente diferente daqui.

Porém, o século XXI vê o crescimento do número de filmes nos quais a morte é um evento absolutamente banal. Tão banal como o próprio cotidiano em vida que abandonamos após a morte.

Sempre imaginamos o morrer um momento grandioso, conclusivo, síntese, julgamento, passagem para uma dimensão mais grandiosa. Algo assim muito ligado aos sistemas escatológicos das religiões salvacionistas – de “Escatologia”, parte da Filosofia ou Teologia sobre o estudo do fim.

Mas, e se for ao contrário? A morte como um momento de extrema banalidade. Tão banal que, ao chegarmos do “outro lado”, ficaríamos de queixo caído com a descoberta de que todas as expectativas eram ilusórias. De que a morte é uma decepcionante continuação da rotina e problemas que julgávamos seriam abandonados. Nada de glorioso ou, muito menos, de punitivo como umbrais para os espíritas ou inferno para os católicos.

Um exemplo é a série Forever (2018) que até mantém essa natureza solipsista dos “céus” pós-modernos. A novidade é que não há mais nada de espetacular como em Amor Além da Vida - mundos plásticos criados pela culpa, desespero ou virtude, ou infernos ou paraísos íntimos.

Forever reduz tudo à banalidade, a uma linha de continuidade entre o mundo dos vivos e dos mortos: assim como entre os vivos reina o tédio e a monotonia do dia-a-dia, a morte não é uma libertação. Seja por recompensas, punições, bem ou mal. Há uma estúpida continuação, nada a aprender, nenhum Deus, anjos ou seres iluminados para nos julgar ou ajudar – clique aqui.

A série vai ao encontro de experiências pós-vida muito relatadas pela literatura espírita. Principalmente na série “Nosso Lar”, de André Luis e psicografada por Chico Xavier, há vários episódios em que pessoas despertam do outro lado acreditando ainda estarem vivas e tentam retomar suas rotinas como se nada tivesse acontecido. Claro, que sempre algum mentor espiritual entra em cena para explicar o que está acontecendo.

Em Forever, não há nada disso. Apenas uma espécie de matrix, um novo condomínio suburbano de classe média limpo e perfeito, onde cada um repete a sua rotina que acabou de deixar na Terra.




Pós-morte quântica e gnóstica

Estamos perdendo a fé na vida pós-morte? Por exemplo, nos curtas Goodbye (2015) e Life and Mirrors(2007) haveria uma banal linha de continuidade entre a vida e a morte: parece que a vida nada mais é do que uma pálida cópia de um mundo pós-morte. Chegando lá no Outro Mundo encontraremos o que foi abandonado em uma escala perversamente mais perfeita e elaborada – clique aqui.

A morte é vista no sentido hipo-utópico: na vida pós-morte projetamos as próprias mazelas da vida. Morrer não é mais “partir dessa para uma melhor”, é encontrar no Outro Mundo os problemas da vida em uma escala ainda mais ampliada e perversa. 

Talvez uma faceta desse desencantamento com o pós-morte seja a representação CosmoGnóstica: vivemos prisioneiros em algum tipo de prisão cosmológica, da qual nem a morte é capaz de nos libertar. Torturados por culpa, arrependimento e sempre em busca de perdão, acreditamos que após a morte tudo poderá ser passado a limpo. Poderemos começar do zero e finalmente teremos a segunda chance para nos redimir.

Mas, e se o escritor Stephen King estiver correto de que “o Inferno é a repetição”? Vida e morte poderiam fazer parte de um loop temporal no qual morremos para despertar em sucessivos mundos alternativos onde corrigimos uma decisão errada para incorrermos em outros erros e assim sucessivamente em um infinito labirinto de mundos alternativos. Alimentados por culpa e arrependimento.

Assim o pós-morte é descrito no filme The Discovery (2017): a descoberta de mundos alternativos quânticos e loops temporais através de um experimento técnico-científico finalmente dá a prova para o mundo da existência da imortalidade da alma e a possibilidade da “segunda chance”: corrigir as nossas decisões erradas feitas na vida. Porém, o experimento revela algo maior e inesperado no sentido CosmoGnóstico – clique aqui.

Morrer não seria exatamente “sair dessa para uma melhor” como diz o velho provérbio popular. Com a entrada da física quântica em cena, a morte necessariamente não existiria: porque, através da gravidade (ou “grávitons”, as partículas das forças gravitacionais), a morte significaria apenas o deslocamento de uma “membrana” para outra através dos multiversos. Essa é a visão da morte do filme independente Einstein’s God Model (2016 – clique aqui).

Como sempre, reaparece o tema da “segunda chance” – libertar-se da culpa e elucidar fatos. Porém, tudo o que encontram é a simples continuidade: morrer é apenas ser atraído gravitacionalmente para outra membrana no multiverso. 

Não há aprendizagem, correção de erros, transcendência ou redenção. Apenas mais um movimento errante dentro de um labirinto cósmico.

 

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