Pages

quinta-feira, novembro 24, 2022

Natto, mapo tofu, macarrão lamen e autoconhecimento erótico no filme 'Sexual Drive'



O que iguarias da culinária japonesa como natto, mapo tofu e um macarrão lamen com gordura extra têm a ver com sexo? Tudo, principalmente numa sociedade de consumo que promove os alimentos como forma fetichista e regressiva de realização compulsiva e ilusória de desejos: comemos demais e fazemos sexo de menos. Porém, a comédia de humor negro “Sexual Drive” (2021), exibido na MUBI, vai no sentido contrário: transforma esses três produtos da cozinha japonesa em formas de autoconhecimento psíquico e erótico. São três contos centrados em cada uma dessas iguarias que se tornam objetos de excitação. Estórias sobre sexo, mas sem nunca o mostrar.

Em 2009 a rede mundial de lanchonetes MacDonald’s estava veiculando em vários países a campanha “First Love”, procurando associar o sabor do fast food com o prazer de encontrar o primeiro amor em uma loja da rede. Guardada as diferenças culturais de cada país, o plot do comercial era mais ou menos esse: um menino se apaixona por uma menina que pede uma porção de bata-fritas com Sunday. Extasiado, o menino a vê se deliciando depois de passar a batata no sorvete. Corta numa elipse temporal. Agora os vemos como jovens adultos entrando numa loja da rede. Decepcionado, ele descobre que ela já tem um namorado. Conformado, pede a nostálgica combinação de batata com sunday. E a come, deliciando-se por fazer lembrar o primeiro amor. Ele a perdeu, mas pelo menos tem a comida que faz reviver o prazer do primeiro amor.

Por todos os lados, a sociedade de consumo busca a compulsão oral, forma fetichista e regressiva de fixar um desejo não satisfeito num produto. Para consumi-lo repetida e compulsivamente como forma substitutiva de satisfação. Neurótica, porque nunca satisfeita e repetitiva.

Exemplos estão por todo lado. E não exclusivamente associado à comida: Bocas de modelos em plano detalhe que mostra mordendo um cartão de crédito, um jovem atlético que entorna a long neck na sua boca sorvendo rapidamente o produto, a cremosidade ou crocância de iogurtes ou granolas em “apetit appeal” publicitário, bebês rechonchudos em fotos de pomadas com bumbuns que dão vontade “de morder”, bundas onde o sexo é reduzido à oralidade com mulheres que devem ser “comidas” (o ato sexual como ato de devoramento) - por todos os lados à regressão ao fetichismo oral que gera dependência e compulsão.

No que se refere ao alimento, a jornalista Katherine Feeney fala em “pornoficação da comida” – clique aqui. Chefes como Nigella Lawson transformam-se em símbolos sexuais, pela forma como olham maliciosamente para a câmera enquanto manipulam ingredientes dos pratos. Ou como gastamos tanto dinheiro com jantares caros, gourmetizamos os cardápios mais simples e transformamos refeições em cenários para selfies, posando ao lado de pratos requintados enquanto fazemos biquinho. Para ela, estamos comendo demais e fazendo sexo de menos.

Logicamente, a regressão à compulsão oral é a isca perfeita: neuroticamente se retroalimenta oferecendo uma miragem de satisfação, fazendo-nos esquecer quem somos ou do quê precisamos.

A comédia japonesa Sexual Drive (2021), composto por três contos sobre comida, luxúria, excitação e prazer, vai na contramão de tudo isso. Enquanto a sociedade de consumo quer nos alienar de nós mesmos, o diretor e roteirista Kôda Yoshida faz o movimento contrário: a culinária japonesa como autoconhecimento.

Gosmas pegajosas do fermentado de soja nattô, óleo de pimenta chiando numa panela wok para preparar o verdadeiro mapo tofu e a gordura extra com alho em uma tigela de lamen fumegante são metáforas dos recônditos mais escondidos de desejos e fantasias sexuais insatisfeitas. Poderiam ser comidas para fazer-nos esquecer, comendo neuroticamente sem mesmo sentir os sabores. Mas os personagens de Sexual Drive as sorvem, cheiram, degustam e mordem com tamanho prazer que faz lembrar as memórias involuntárias de Marcel Proust do cheiro dos biscoitos madeleine na obra “Em Busca do Tempo Perdido”. 




Como nos informa o título do filme, os três contos se concentram no tema sexo, sem nunca o mostrar: o ato sexual é apenas narrado, tendo como mediação simbólica o nattô, o mapo tofu e lamens gordurosos – cada uma dessas iguarias japoneses é o título de cada conto.

O que une as três estórias é um agente provocador e aparentemente onisciente: ele é o “drive” do título, que sempre criará as situações para a comida se transformar num meio de autoconhecimento para os protagonistas.  

O Filme

Kurita (Tateto Serizawa) é o enigmático personagem onipresente nas três estórias. No primeiro conto (“Nattô”) ele é capaz de levar um marido às lágrimas e desespero ao aparecer de surpresa na casa de Enatsu (Ryô Ikeda), depois que sua esposa saiu para o trabalho. Para surpresa de Enatsu, ele veio pedir desculpa para por ter um caso com sua esposa. 



Ela é uma enfermeira que cuidou de Kurita no hospital. Com detalhes, ele começa a descrever a primeira excitação sexual. Até o momento em que vê na cozinha restos de nattô – a sua fixação obsessiva na mistura de soja pegajosa transforma-se em metáfora para uma descrição mais detalhada da excitação, dos fluídos sexuais e do êxtase. Para o crescente desespero, choque e repulsa do marido. Mas que, aos poucos, vai se transformando em excitação.

O “sexual drive” aqui é a assexualidade do marido e a frustração da esposa. E como Enatsu descobre a excitação sexual que aparentemente esqueceu. Uma bizarra autodescoberta através do nattô.

O segundo conto é o melhor, chamado “Mapo Tofu”, na qual uma mulher ocupa o centro do palco. Sofrendo de síndrome do pânico, uma contida dona de casa chamada Akane (Honami Satô) dirige seu carro para um supermercado. Para aproveitar uma oferta de mapo tofu instantâneo. Ela atropela nada mais, nada menos, que Kurita. Ela o socorre, para descobrir que ele é um conhecido escolar da infância – e vítima de bullying sádicos dela.



Kurita não consegue aceitá-la como uma simples dona de casa e, pior, comprando mapo tofu industrializado. Aqui, o molho de tofu apimentado será a metáfora da redescoberta da verdadeira Akane: aquela sexualmente sadomasoquista. E que tornou Kurita no seu escravo sexual.

Para Kurita, Akane precisa de um verdadeiro mapo tofu “vermelho como lava, e que faz sua língua doer.

 No conto final “Ramen com Gordura Extra” uma mulher foi supostamente sequestrada de um restaurante de macarrão lamen. Ela estava à espera do seu amante casado que não pode aparecer ao encontro. O amante recebe o telefonema do sequestrador, (de novo, Kurita), narrando como foi a noite para ela nos termos mais lascivos. Ela queria “uma tigela de ramen que satisfizesse seus desejos, já que o Sr. Homem Casado estava muito ocupado para ela esta noite”.

Mais uma vez Kurita faz descrições da sua experiência sexual com a amante do Sr. Homem Casado, fazendo analogias com a iguaria japonesa. Enquanto, frustrado, o amante sorve um prato de macarrão lamen gorduroso com alho em num balcão cheio de homens suados devorando aquela comida reconfortante perfumada.  



Colocando o filme na perspectiva da cultura japonesa, o humor negro de Sexual Drive é revelador: mostra como a vida interior de uma cultura que venera as boas maneiras, rituais e, principalmente, a atitude do “meiwaku” (evitar qualquer situação que possa incomodar outra pessoa) pode conter um magma explosivo de fetiches e desejos.

As associações simbólicas ou antropológicas da comida com o prazer sexual são profundas, chegando à religião com a ideia de comunhão: da mesma maneira como entramos em comunhão com Deus ao comermos a hóstia e beber o vinho no ritual católico, também entramos em comunhão com o Céu e a Terra ao ingerirmos os alimentos.

Da mesma forma na comunhão sexual, em que nos tornamos um só corpo – da mesma maneira como nos unimos ao redor de uma mesa e todos comemos a mesma comida, também o sexo é o entrelaçamento dos corpos em um só. 

Ocorre que essas origens antropológicas e simbólicas das relações entre sexualidade e comida são progressistas, permitindo o autoconhecimento. Ao contrário da exploração regressiva da compulsão oral na sociedade de consumo. Na qual a pornoficação da comida é apenas uma faceta.

Se em Sexual Drive as texturas e intensidades dos alimentos (o viscoso, o gorduroso, o apimentado, o fibroso etc.) são as aberturas para a descoberta dos desejos escondidos e denegados, na sociedade de consumo a comida industrializada é um prazer substituto de outras coisas que na verdade desejamos.

Como na campanha “First Love” do MacDonald’s: condenado a repetir compulsivamente o gesto de passar a batata-frita no Sunday para repor com uma miragem o amor perdido.


 

Ficha Técnica

 

Título: Sexual Drive

 

Diretor: Kôta Yoshida

Roteiro: Kôta Yoshida

Elenco:  Tateto Serizawa, Ryô Ikeda, Manani Hashimoto, Honami Satô

Produção: Shaiker

Distribuição: MUBI

Ano: 2021

País: Japão

 

 

Postagens Relacionadas

 

Em "Boneca Inflável" somos tão vazios quanto uma boneca de sex shop

 

 

 

O olhar surrealista sobre o consumismo em "Little Otik"

 

 

Freud explica: encha o estômago antes de comprar

 

 

Um passeio pelo consumo subliminar no curta "Supermercado"