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terça-feira, novembro 22, 2022

Filme 'Cadáver': luzes, câmera... e Inteligência Artificial!


Todos conhecem o papel da Inteligência Artificial (“machine learning”) de plataformas como Netflix que “aprende” com as escolhas e comportamento do usuário, customizando sua “experiência”. Mas hoje a IA faz mais do que isso: analisa e prevê as avaliações dos filmes, interferindo nos estágios iniciais da fase da produção criativa, ajudando decisivamente na produção de roteiros. Economizando tempo e dinheiro. Reversibilidade irônica: uma plataforma de comunicação que não mais comunica. Apenas sinaliza e informa, retroalimentando o repertório do usuário. Um exemplo é o filme de terror norueguês “Cadáver” (Kadaver, 2020): num mundo pós-apocalíptico, uma peça de teatro num hotel com jantar incluído atrai uma multidão faminta. Que descobrirá da pior maneira possível que o preço do ingresso é uma cilada mortal. Um pastiche de “tropos” do gênero que torna tudo previsível e inverossímil – feedback tautista. Porém, para usuários que conheceram o cinema a partir do streaming, essa incomunicabilidade talvez não seja perceptível.

A reversibilidade irônica parece estar dominando todos os sistemas tecnológicos: de tão complexos e sofisticados começam a inviabilizar a finalidade inicial pela qual foram inventados. Carros potentes e sofisticados encalacrados em sistemas viários congestionados ou contidos por radares nas estradas – de tão potentes e estáveis acabaram ironicamente se tornando perigosos.

Ou os sistemas bélico-militar que, de tão tecnológicos e destrutivos, ficam paralisados pela ameaça de destruição mútua garantida dos oponentes - fazendo as batalhas regredirem para a guerra suja com mortes decorrentes de armas que cada vez mais regridem tecnologicamente.

Mas são nos sistemas de informação e comunicação que a ironia parece ser maior. Nunca vivemos numa sociedade tão estruturada em sistemas de comunicação e informação e, ao mesmo tempo, nunca o fenômeno da incomunicabilidade e solipsismo foi tão intenso: bolhas algorítmicas nos envolvem nas redes sociais e mecanismos de busca, tornando a realidade (fatos, acontecimentos, Ciência, História etc.) uma miragem distante. Este humilde blogueiro identifica dois movimentos nessa reversibilidade irônica: a hipertelia (o excesso de finalidade torna os sistemas inúteis) e tautismo (o ápice do solipsismo: tatutologia + autismo midiático).

Porém, apesar de “inúteis”, tornam-se bastante lucrativos para o capital. Afinal, como observava o pensador francês Paul Virilio, a lei do menor esforço sempre esteve por trás do progresso tecnológico: solipsismo e bolhas algorítmicas nos poupe do esforço cognitivo de organizar os dados da realidade lá fora. 

   


Estamos fazendo todas essas observações para contextualizar a produção norueguesa Netflix Cadáver (Kadaver, 2020): um conto de terror em um futuro pós-apocalíptico (um incidente nuclear não explicado resultou num mundo gelado, sem energia ou comida onde todos lutam para sobreviver) – aliás, quantos filmes pós-apocalípticos encontramos na Netflix? Mas, trata-se de um pós-apocalipse escandinavo. Que sempre traz a promessa de um olhar inovador para o tema, fugindo dos clichês hollywoodianos. 

Infelizmente, não é o caso de Cadáver. Não porque tenha cedido às tentações de Hollywood. Mas porque cedeu a uma tentação mais contemporânea: aos algoritmos da Inteligência Artificial da Netflix – uma IA em machine learning que, após ser “treinada” usando 980 roteiros de filmes do gênero, ajuda cineastas a identificar o impacto potencial do filme sobre o público antes da fase de produção, economizado tempo e dinheiro das produtoras.

Por exemplo, a Warner Bros. assinou um contrato com uma empresa chamada Cinelytic, que desenvolveu um sistema alimentado por IA que prevê a probabilidade de sucesso de um filme com base em parâmetros como atores, orçamento e marca.

Os famosos algoritmos da Netflix (modelo acompanhado por todas as outras plataformas) até então era útil na customização da plataforma para cada usuário – um sistema de recomendação de filmes baseado em IA que “aprende” com o usuário: suas escolhas, tempo de permanência na plataforma, buscas por palavras-chave etc.

Mas hoje as IA vão muito mais além, abrindo um novo caminho para a indústria cinematográfica – um modelo de aprendizado profundo para analisar e prever as avaliações dos filmes, modelo útil nos estágios iniciais da fase da produção criativa, ajudando decisivamente na produção de roteiros.



Em um filme como Cadáver, o resultado é um estranho pastiche, não exatamente de clichês, no sentido clássico dado ao termo. Mas como tropos ou figuras já consagradas do gênero, costuradas com muitos argumentos inverossímeis e linhas de diálogo pseudo filosóficas, dando uma aparência de profundidade que não vai mais além do que as gotas de “sabedoria” de um livreto de autoajuda.

E o pior: um filme tautológico porque só sinaliza e informa um repertório pré-existente no usuário. E autista midiático: não há comunicação, no sentido de não trazer o novo, ruptura, acontecimento – nada comunica, apenas informa.

O Filme

Situado em um presumido futuro não muito distante, a Noruega foi devastada por uma guerra nuclear. Seja por acidente ou deliberadamente, muitos residentes são forçados a lutar pela vida neste mundo inóspito. No meio dessa miséria estão nossos protagonistas casados ​​Leonora (Gitte Witt) e Jacob (Thomas Gullestad). Junto com sua pequena filha Alice (Tuva Remman), eles fazem o possível para sobreviver.

No mundo antes do apocalipse, ela era uma atriz shakespeariana. Por isso, ela guarde dentro de si o otimismo de tudo ainda vai melhorar. Enquanto Jacob é tomado por uma doentia depressão. Vemos cadáveres nas ruas, enquanto Leonora tenta criar um cotidiano de alguma normalidade para sua filha.



Nos planos abertos da cidade norueguesa vemos que inexplicavelmente o único lugar com energia elétrica é um grande hotel vitoriano no ponto mais alto da cidade em ruínas. Também inexplicavelmente, inexiste o problema da contaminação radioativa – o único problema para todos é a fome.

Porém, parece que o otimismo de Leonora está sendo correspondido: tal como o anúncio da chegada de um circo, um carro de som com um mestre de cerimônias com uma aparência suspeitíssima convida os sobreviventes a assistirem a uma peça de teatro que será realizada no velho hotel. Mas a atração principal é a oferta de um farto banquete antes da peça.

Os sobreviventes colocam suas melhores roupas e rumam para hotel. Lá, o casal Leonora e Jacob encontram um também estranho anfitrião milionário chamado Mathias (Thorbjørn Harr). Por trás do seu cabelo bem repartido, traje a rigor bem passado está uma figura obviamente sinistra, cheia de más intenções, oferecendo um banquete para famintos que assistirão depois a uma peça teatral num hotel de luxo cavernoso e abandonado – todos os indicadores são de uma noite sinistra. Leonora, assim como o restante do público, ou estão em negação ou não estão prestando atenção nos detalhes.

Principalmente quando Mathias convida com uma inflexão ameaçadora a pequena Alice: “Posso te mostrar meu país das maravilhas?”.

A peça teatral é ainda mais sinistra, próxima ao teatro da crueldade que deixaria até o seu teórico, Antonin Artaud, assustado.




Mathias sobe ao palco e pede a seus convidados que explorem os quartos de seu hotel, que estão cheios de atores interpretando mini-dramas inescrutáveis: a maioria casais discutindo entre si ou, em outros casos, cenas de estupro. 

Os convidados de Mathias logo desaparecem, um por um, incluindo Jacob e Alice, deixando Leonora sozinha para descobrir o que exatamente Mathias pretende com tudo aquilo.

Mathias alerta aos convidados que “tudo o que acontecerá esta noite é encenado. Tudo!”.

O pressuposto é até instigante: como distinguir entre a realidade e a encenação naquela noite? O filme até ensaia transformar Eleonor em um protagonista não confiável: será que ela está em processo de negação e tudo que vê é alucinação?

Porém, tudo é de uma superficialidade tão constrangedora e inverossímil que, nitidamente, percebemos os tropos mal costurados pela IA da Netflix: um mestre de cerimônias circense que parece ter saído de Pinóquio; um hotel vitoriano abandonado e sombrio (praticamente o hotel está gritando para todos “fujam daqui!”); o tropo da família vulnerável que tenta se manter junta num cenário pós-apocalipse; a pequena e inocente Alice assediada pelo vilão que parece ter saído de um conto de fadas; um toque do terror de O Albergue, associado a estruturas hoteleiras misteriosas do Leste europeu etc.

Mathias até tenta dar alguma profundidade filosófica que dê seriedade a essa colcha de retalhos: “O que nos torna humanos em tempos como esse? O que nos separa dos animais?”, pergunta para uma plateia que espera a peça teatral começar.



Reversibilidade irônica: quando finalmente a tecnologia nos oferece a possibilidade de democratizar ou facilitar o acesso às produções cinematográficas e audiovisuais, chegamos à impossibilidade da comunicação – os próprios algoritmos de customização da plataforma interferem nos processos criativos. Ou seja, temos a incomunicabilidade: produtos que apenas sinalizam ou informam a familiaridade de conhecimento do usuário. Cada vez menos veremos comunicação: o novo, o surpreendente, aquilo que nos afeta e nos faz pensar.

Mas o ponto preocupante é o seguinte: para a geração de usuários mais novos que passaram a conhecer o cinema a partir do DVD e das plataformas de streaming, certamente isso não representa um problema. Porque não conheceu o cinema de antes das novas tecnologias de convergência.

Não há a estranheza que assalta esse velho e humilde blogueiro. Esse talvez seja o privilégio (ou a maldição) de gerações que conheceram o cinema a partir das salas de projeção.  


 

Ficha Técnica

 

Título: Cadáver 

 

Diretor: Jarand Herdal

Roteiro: Jarand Herdal

Elenco:  Thorbjørn Harr, Gitte Witt, Thomas Gullestad, Jonatan Rodriguez, Tuva Remman

Produção: Motion Blur Films, Film Kolektiv

Distribuição: Netflix

Ano: 2020

País: Noruega

 

 

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