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quarta-feira, agosto 31, 2022

'Não! Não Olhe!': resta algo na galáxia que não possa ser explorado como entretenimento?



Em “Não! Não Olhe!” (Nope, 2022) Jordan Peele abandona o terror racial de “Corra” e “Nós” para ingressar no terreno híbrido sci-fi, terror e muita metalinguagem e alusões ao cinema e cultura pop. Aproximando-se da crítica social de “Não Olhe Para Cima”. Algo ameaçador está vindo do céu sobre um rancho que fornece cavalos para produções de cinema e TV. A primeira reação dos protagonistas não é a de lidar com o horror cósmico, mas encontrar uma maneira de monetizar o estranho fenômeno. Numa cultura na qual Tik Tok, YouTube e canais de notícias 24 horas subliminarmente oferecem diante dos nossos olhos a promessa de fama da noite para o dia, como seria possível a expressão do horror cósmico com toda a sua intensidade numa cultura com tantas camadas semióticas nos separando da realidade?

Em seu terceiro filme, após Corra e Nós, Jordan Peele abandona o terror racial para flertar com o horror cósmico inspirado em HP Lovecraft – nada mais natural para quem foi produtor da série País de Lovecraft, da HBO.

Da crítica ao racismo liberal de Corra (democratas liberais que se interessam por negros porque “estão na moda”), misturando crítica social com mitologia em Nós, agora em Não! Não Olhe! (Nope, 2022), Peele escreve e dirige uma produção que mais uma vez vai recorrer à mitologia, como o próprio título sugere: o monstro se torna mais perigoso se olhado. Uma ideia tão antiga quanto o mito grego da Medusa – quando olhada a vítima se transforma em pedra.

De certa forma, essa mitologia é ecoada no recente Não Olhe Para Cima, de Adam McKay, no qual políticos de extrema-direita insistem que a destruição do planeta por um cometa pode ser evitada simplesmente recusando-se a encarar a morte de frente dentro das bolhas das redes sociais.

Também de certa forma, no filme Nós há uma variável dessa mitologia com as duplicatas que querem substituir os humanos originais e o simbolismo dos espelhos em um parque de diversões no qual as duplicatas se escondem.

Em Não! Não Olhe! esse tema é retomado por Jordan Peele em um outro nível: dessa vez não temos um cometa, mas algum tipo de vida supostamente extraterrestre que circula no céu sobre um rancho em um grande espaço no interior da Califórnia. O primeiro instinto não é o horror, mas a motivação de encontrar alguma maneira de monetizar o fenômeno – o que vai lembrar um outro filme chamado The Seed (2021) onde influenciadores digitais veem num alien que caiu do céu a oportunidade de produzir conteúdo para aumentar o engajamento nas redes sociais – clique aqui.



Em Não! Não Olhe! os protagonistas não querem olhar diretamente para o fenômeno, mas capturá-lo em fotografias e vídeos para se tornar “a foto da Oprah” – uma imagem irrefutável de um OVNI cujos produtores de TV pagariam milhares de dólares. Forma de recalcar o horror cósmico que habita por trás das bolhas semióticas que construímos em torno de nós que banalizam o horror cósmico: o Universo é indiferente à nossa existência e, pior, a vida no cosmos não foi feita a imagem e semelhança do Deus que imaginamos... a vida pode ser mais terrível e hostil à nossa existência.

Mas também Jordan Peele inspira-se em mitologias modernas. Em Nós, as teorias conspiratórias sobre a existência de milhares de quilômetros de túneis sob os EUA, a maioria dos quais não têm “nenhum propósito conhecido”.

Em Não! Não Olhe! uma incógnita que cerca o fenômeno OVNI: e se esses objetos forem na verdade forem seres vivo, criaturas de um misterioso ecossistema atmosférico de origem desconhecida? Uma suspeita levantada por Charles Fort em 1948 no livro “The Book of Dammned.



Corroborado ainda pela obra do grande pesquisador Andreas Faber-kaiser (Medalha de Ouro e Prêmio Nacional de Astronomia), que publicou dentro de sua obra “The Clouds of Deception” (“As Nuvens do Engano”, em tradução livre) um capítulo chamado “The Incredible Jellyfish of Space” (“A Incrível Medusa do Espaço”, em tradução livre) onde nos alerta que os OVNIs são novas formas de vida que estão vindo para a Terra.

Essa teoria de que estranhas formas de vida bioluminescentes estão colonizando nossa atmosfera levou à ideia de que o termo OVNI deveria ser substituído por EBAs: Entidades Biológicas Atmosféricas.

O Filme

Acompanhamos o treinador/treinador de cavalos Otis “OJ” Haywood Jr (Daniel Kaluuya, discreto e intenso) tenta não dar atenção mortais a um fenômeno que está aterrorizando seu rancho na Califórnia, cuidadosamente evitando contato visual. A família de OJ, que inclui o malfadado pai Otis Sr (Keith David) e a irmã em busca de fama Emerald (Keke Palmer), orgulhosamente se vendem como descendentes diretos do jóquei sem nome apresentado nas imagens de Eadweard Muybridge do final do século 19 de um cavaleiro e cavalo – precursor do cinema moderno (“desde o momento em que as imagens podiam se mover, tínhamos pele no jogo”). 



Agora, a fazenda Haywood fornece cavalos para produções de cinema e TV (“os únicos treinadores de cavalos de propriedade de negros em Hollywood”), embora OJ em dificuldades possa ter que vender suas ações para a ex-estrela infantil Ricky “Jupe” Park (Steven Yeun), que administra um parque temático próximo – uma espécie de mundo do Oeste disneyficado. Mas então sinais misteriosos no céu se intensificam, oferecendo a oportunidade inesperada ou um “mau milagre” que só faria piorar ainda mais os negócios.

Assim como em Nós (Jordan Peele afirmou que se inspirou em dez filmes), em Não! Não Olhe! o diretor baseia-se em um amplo arco de influências: desde o espanto humano de Contatos Imediatos do Terceiro Grau até as formas misteriosas e angelicais da série de TV japonesa Neon Genesis Evangelion Fim dos Tempos de M Night Shyamalan. Ele também pega tópicos da parábola dos anos 60, Blow-Up , de Antonioni, Buck and the Preacher , de Sidney Poitier, dos anos 70 (um pôster desse filme está pendurado na parede do rancho), além do mangá dos anos 80 de Katsuhiro Otomo, Akira (que, aliás, Peele já foi escolhido para refazer). 

Mais importante, ele presta uma homenagem as sequências de perseguição icônicas do clássico Tubarão, através de bonecos infláveis ​​no ar substituindo aqueles barris amarelos flutuantes que tornaram o tubarão de Spielberg ainda mais aterrorizante quando invisível.



Tubarão parece ser a grande referência do filme, principalmente quando entra em cena um veterano documentarista chamado Antlers Holst, que lembra o velho caçador de tubarões Quint, do clássico de Spielberg. Ao invés de um arpão, Antlers usa uma câmera com manivela para capturar imagens da fera extraterrestre, a partir do momento em que um técnico de câmeras de vigilância chamado Angel (Brandon Perea) descobre que a presa consome toda a eletricidade do local a cada aparição.

Por isso, é simbólico que toda a ação se passe na California e o filme faça tanta metalinguagem e alusões ao cinema: como seria possível a expressão do horror cósmico com toda a sua intensidade numa cultura com tantas camadas semióticas nos separando da realidade? Na terra dos gigantescos estúdios de cinema e audiovisual, não há parte restante da galáxia que não possa ser explorada como entretenimento.



Essa é a mensagem de Jordan Peele: não importa quão traumática seja a experiência. Tik Tok, YouTube e canais de notícias 24 horas subliminarmente oferecem diante dos nossos olhos a promessa de fama da noite para o dia – qualquer experiência, seja boa ou ruim, pode ser um conteúdo em potencial para ser recortado, editado e publicado na TV, plataformas digitais ou redes sociais para audiência e engajamento.

Cada vez menos a experiência suscita reflexões filosóficas, metafísicas ou mesmo de horror genuíno (o terror cósmico de HP Lovecraft parece exigir esses pressupostos para ser experimentado em sua totalidade). Numa cultura em que o inexplicável e o estranho são ressignificados pela cultura pop em séries como “Alienígenas do Passado”, do History Channel, temos a mesma situação irônica do filme Não Olhe Para Cima.

Dessa maneira, Jordan Peele cria um terror híbrido de sci-fi e humor negro pelas camadas de metalinguagens capazes de criar em muitos momentos um humor involuntário. 

Por isso, Não! Não Olhe! concentra-se em dois protagonistas com negócios em crises e veem no fenômeno inexplicável e ameaçador uma oportunidade de sobrevivência – que tal tentar domá-lo, da mesma maneira como fazemos com cavalos em vídeos publicitários e westerns?

Enquanto Ricky Park transformou o trauma e décadas de tristeza devido a um acontecimento macabro que levo ao cancelamento da série na qual era um protagonista mirim (fez parque temático do Velho Oeste decadente que tenta faturar com o estranho fenômeno celeste), da mesma forma o negócio decadente de adestramento de cavalos dos Haywoods vê naquele fenômeno extraterrestre a chance da volta por cima.  

Fica a ironia final: estamos cegos numa sociedade centrada nas imagens e nos meios de comunicação.


 

 

Ficha Técnica

 

Título: Não! Não Olhe!

Diretor: Jordan Peele

Roteiro: Jordan Peele

Elenco:  Daniel Kaluuya, Keke Palmer, Brandon Perea, Michael Wincott, Steven Yeun

Produção: Universal Pictures, Monkeypaw Productions

Distribuição: Universal Pictures International

Ano: 2022

País: EUA

 

 

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