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quinta-feira, agosto 04, 2022

Em 'Georgetown' a América é enganada pela sua própria ilusão



Washington DC é um verdadeiro Triângulo das Bermudas, habitado por poderosos, aqueles que tentam influenciar os poderosos e aqueles que escrevem sobre ambos. Gente, com muito dinheiro, status, posição e privilégios. Mas que, mesmo assim, não estão a salvo de serem enganadas pelas mesmas armas que fizeram a hegemonia da América: a ilusão e a mentira. Baseado em um caso real, “Georgetown” (2019), estrelado e dirigido por Christoph Waltz, acompanha um vigarista que fez carreira no centro do poder à base de falsos currículos, diplomas e certificados impressos a partir de sites fakes da Internet, citações de amizades fictícias e relações imaginárias com potências estrangeiras. Uma história que terminou em assassinato. E que aponta para o ponto fraco de um país construído a partir da imagem: a nostalgia de alguma essência real que nunca teve.

“Enviem as imagens, que eu crio a guerra”. Essa frase do magnata dos jornais Randolph Hearst, dita aos correspondentes do veículo em Cuba, foi o momento inaugural da ilusão como força social e política nos EUA. Em 1898, praticamente Hearst conseguiu inventar uma guerra, resultando na intervenção dos EUA na crise da independência de Cuba, fazendo o país declarar guerra à Espanha.

Do crescimento de Hollywood como indústria cinematográfica no início do século XX, passando pelo crescimento de Las Vegas e toda a indústria de jogo e entretenimento nas décadas de 1930-40, a ilusão e simulação se tornou mais do que uma metáfora ou alegoria da cultura norte-americana. 

Tornou-se força social e política. Dos super-heróis das HQs como armas de propaganda política até a ilusão como arma de campo de batalha, como foi o episódio do “Ghost Army” na Segunda Guerra Mundial - unidade do exército norte-americano usando tanques e caminhões infláveis, amplificadores com sons pré-gravados de movimentação de tropas e caminhões e diversas ações cênico-teatrais, incluindo efeitos especiais cenográficos. Junto com soldados-atores era capaz de criar falsos comboios militares. O objetivo era criar impacto psicológico nas tropas nazistas.



Talvez pelo fato de suas instituições políticas serem tão dependentes das estratégias de relações públicas, propaganda, publicidade e engenharia de opinião pública (em suma, a imagem), os norte-americanos sejam ressentidos de não terem, como o velho continente europeu, um substrato real, de séculos de história e cultura. Por isso, por exemplo, criam o mito do “Mr. President” e toda a liturgia em torno da Casa Branca como se a família presidencial fosse análoga a uma família real, só que eleita a cada quatro anos. 

O filme estreado e dirigido por Christoph Waltz (vencedor de dois Oscars em Bastardos Inglórios e Django Livre), Georgetown (2019), centrado no bairro mais nobre de Washington DC, entre ricos e poderosos que compõem a corte do poder político, parece exalar essa espécie de ontologia sem essência que são os EUA: jornalistas, senadores, ONGs, CEOs de transnacionais, serviços de Inteligência e agentes do Departamento de Estado dos EUA, gente, com muito dinheiro, status, posição e privilégios. Mas que, mesmo assim, não estão a salvo de serem enganadas pelas mesmas armas que fizeram a hegemonia da América: a ilusão e a mentira.



O filme é inspirado em uma história real de fraude e assassinato entre esses ricos e poderosos: uma rica e influente jornalista e escritora de Georgetown assassinada pelo seu segundo marido, 44 anos mais jovem – um vigarista de origem alemã que fez carreira no centro do poder da capital federal na base de falsos currículos, diplomas e certificados impressos a partir de sites fakes da Internet, citações de amizades profundas com quem sequer lhe conhecia, relações fictícias com potências estrangeiras e o seu charme europeu espalhado em muitas festas pagas com o dinheiro da esposa carente de atenção.

Georgetown até faz lembrar a série Netflix Inventando Anna - a falsa herdeira que enganou a alta sociedade, banqueiros e empresários de Nova York. Porém, enquanto a série concentra-se numa elite misógina que quer se aproveitar de uma jovem que acaba invertendo o jogo, o filme de Waltz captura os detalhes do centro de poder de Washington.

O filme captura astutamente o verdadeiro Triângulo das Bermudas que é a vida de capital federal, à medida em que a narrativa se move entre os três setores centrais: os poderosos, aqueles que tentam influenciar os poderosos e aqueles que escrevem sobre ambos. Vemos contadores de vantagens, os jantares, a distribuição judiciosa de nomes famosos de Washington como se estivessem jogando um jogo de batalha naval. 

Pessoas falando por acrônimos e se referindo a eventos obscuros, propostas legislativas, regulatórias e programas governamentais. Essas mudanças de energias excepcionalmente fluidas, à medida que os ocupantes da Casa Branca entram e saem, tornam até mesmo seus habitantes mais experientes suscetíveis a recém-chegados que afirmam ter currículos chamativos. 

Pelo fato de ninguém querer parecer fora do circuito, muitas vezes os aspirantes a ascensão social e política se esquecem de fazer a pergunta mais básica: "Quem é você mesmo?" 

O Filme

Georgetown abre com a seguinte epígrafe: "Esta história não afirma de forma alguma ser a verdade... No entanto, é inspirado em eventos reais." 

Esses eventos dizem respeito a Viola Herms Drath, jornalista, escritora e conselheira de figuras públicas, incluindo George W Bush, nascida na Alemanha, e vivendo em Washington DC. Ela se casou com um alemão chamado Albrecht Gero Muth que era 44 anos mais novo que sua esposa e que alegava ter credenciais, incluindo patente militar no exército iraquiano. Ele foi condenado por matá-la em 2014.



No filme, Vanessa Redgrave interpreta Elsa Breht, uma jornalista e escritora de Georgetown, e Christoph Waltz, que interpreta Ulrich Mott, que a conhece na época em que foi demitido de um estágio não remunerado no Capitólio. Após a morte do marido de Elsa, ela fica inconsolável até que Mott se insinua em sua vida. Ela a princípio se diverte com seus esforços de escalada social e manobras políticas, incentivando-o e aconselhando-o sobre quem se aproximar. Mas quando ela descobre que ele também está mentindo para ela, a história assume um tom mais sinistro.

O filme é dividido em capítulos com títulos como marcadores no currículo de Mott. Em um flashback, nós o vemos como um estagiário de 50 anos no Capitólio, levando turista a fazer um tour pelo prédio histórico. Diz a eles que não têm permissão para tirar fotos devido à "segurança nacional", querendo criar a ilusão de ser algum insider com acesso a informações secretas. Ele é rapidamente desmentido por um assessor de um senador. Para depois ser demitido. Mas na sua mente mitômana, acredita estar sendo promovido a um cargo político, mostrando-nos sua tendência à ilusão de grandiosidade. Na saída, ele rouba o cartão de identidade de seu chefe, o que o leva à maior noite de Washington, o Jantar dos Correspondentes da Casa Branca, conhecido localmente como o Nerd Prom. Que dará início a sua escalada social baseada em mentiras, simulações e ilusões.

A filha de Elsa, Amanda Breth (Annette Bening), insiste para a mãe encontrar um acompanhante mais apropriado para sua idade e status. Mas Elisa retruca: “Todos são velhos e chatos. Mott é jovem e interessante”.

Suas desconfianças com Mott são cada vez maiores, apresentando uma das chaves de compreensão do filme: como professora de Direito Constitucional em Havard, ela é “de fora”, ou seja, não participa dos jogos do circuito de poder de Washington. Como outsider, ela consegue perceber com mais facilidade que há algo de errado com Ulrich – seus modos estereotipados e a sua falsa etiqueta de mordomo nas festas.



Como jornalista que conhece pessoalmente embaixadores e personalidades como George Soros ou McNamara, Elisa se diverte ao passar seus contatos para seu marido e vendo-o lutar pela ascensão social. Com seu charme europeu e seus dotes gastronômicos nos pratos preparados por ele mesmo para gente tão influente em festas na sua casa, Ultrich vai abrindo caminho, não ficando claro se ele é um mero cínico ou mentiroso ou se, de fato, passou a crer na própria mentira que repete para todos.

Depois de criar uma ONG fictícia (um think tank de relações externas) Ultrich acaba chegando ao centro do Deep State norte-americano: o Departamento de Estado dos EUA, chegando a supostamente participar do xadrez político da guerra no Iraque.

Por que Ultrich assassinou sua esposa? Pela mera compulsão materialista da herança? Ou por Elisa ter descoberto sua patológica condição mitômana?

O fato é que o “charme” europeu de Ultrich (seu suposto bom gosto, educação e etiqueta) impressionou um círculo de influente e poderosos no qual a simulação e a mentira é a essência do jogo. Num mundo de ilusões, o vigarista encenou ser um lastro de realidade vindo diretamente do Velho Continente. Seduziu a todos com efeitos de realidade.

A grande virtude de Georgetown é mostrar, assim como em Show de Truman, que a ilusão somente pode ser combatida com mais ilusão. Assim como Truman enganou o diretor do reality Christof com um jogo de simulação para escapar do gigantesco estúdio de TV que era sua vida, também Ultrich nada mais fez do que explorar com a ilusão o ponto fraco da cultura americana: a de ter uma ontologia que carece de essência.



 

Ficha Técnica

 

Título: Georgetown

Diretor: Christoph Waltz

Roteiro: David Alburn, Franklin Foer

Elenco:  Christoph Waltz, Vanessa Redgrave, Annette Bening

Produção: Cornerstone Films, Gerson Films, InterTitle Films

Distribuição: Netflix

Ano: 2019

País: Reino Unido

 

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