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sexta-feira, junho 24, 2022

McLuhan inspira o horror corporal tecnológico de Cronenberg em 'Crimes do Futuro'


O horror corporal no cinema tem em David Cronenberg o seu grande representante. A sua peculiar fusão do horror com a ficção científica foi inspirada nos tempos de estudante na Universidade de Toronto, quando o guru e profeta da Globalização Marshall McLuhan foi seu professor. “O Meio é a Mensagem” é a tese de McLuhan que perpassa toda a filmografia de Cronenberg, só que tomada na aterrorizante literalidade: a tese resultou no pós-humano, a ideologia do século XXI. “Crimes do Futuro” (2022) é o filme-síntese de toda a filmografia do diretor: num futuro indeterminado uma dupla de artistas faz performances públicas de cirurgias através de dispositivos biomórficos para um público extasiado que vê sendo retirados do corpo do artista novos órgãos híbridos misteriosos que não existem na morfologia humana normal. Um mundo em que softwares moldaram a “New Flesh”: o corpo reduzido a objeto de controle e perversão pornô.

 

David Cronenberg é frequentemente citado como um dos pioneiros (se não o próprio inventor) do gênero “horror corporal”, cuja obra seminal foi Videodrome em 1983. No entanto, o legado de Videodrome se estende para além dos limites do gênero terror, já que os horrores que Cronenberg previu se tornaram os elementos-chave do século XXI.

Cronenberg foi além da fusão entre a ficção científica e o horror. Desde Videodrome, sua filmografia (A Mosca, Gêmeos Mórbida Obsessão, Crash Estranhos Prazeres, Existenz etc.) se tornou uma reflexão sobre as maquinações perniciosas das extensões humanas tecnológicas, até o momento em que essas extensões (servomecanismos, ready mades biológicos, objeto/seres híbridos, gadgets biotecnológicos etc.) criam realidades pós-humanas. O pós-humanismo: nada mais do que a visão de mundo tecnomística que motivo a atual geração de engenheiros computacionais do Vale do Silício.

Em entrevistas, Cronenberg insiste que seus filmes são reflexões filosóficas inspiradas nos seus tempos de aluno na prestigiosa Universidade de Toronto, principalmente baseadas nas ideias das aulas ministradas pelo guru da comunicação e profeta da globalização Marshall McLuhan.

Não há como não lembrar de McLuhan ao ver o novo filme de Cronenberg Crimes do Futuro (Crimes of the Future, 2022): “As novas mídias e tecnologias pelas quais ampliamos ou estendemos constituem uma enorme cirurgia coletiva realizada no corpo social com total desrespeito aos antissépticos (...). Se as operações forem necessárias, a inevitabilidade de infectar todo o sistema durante a operação deve ser considerada”, afirmava McLuhan no seu livro “Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem”.

A metáfora biotecnológica de cada extensão tecnológica ou midiática dos sentidos humanos inventada como fosse uma intervenção cirúrgica perigosa no corpo social é levada ao pé-da-letra por Cronenberg: num futuro indeterminado uma dupla de artistas faz performances públicas de cirurgias através de dispositivos biomórficos, enquanto o público extasiado vê sendo retirados novos órgãos híbridos misteriosos do corpo do artista e que não existem na morfologia humana normal – cinicamente, uma arte que supostamente se trata de mostrar a “beleza interior” em nós.

A filmografia de David Cronenberg transitou por todos os temas do pós-humano (clones, próteses, implantes etc.) para, afinal, em Crimes do Futuro chegar a sua síntese: o pós-humano, onde dor e assepsia desapareceram porque o próprio corpo (e o reino biológico como um todo) se transformaram em objeto de softwares e plataformas digitais.

O célebre professor de Cronenberg, dos tempos de aluno universitário, ainda pensava a tecnologia dentro de um paradigma antropocêntrico: cada mídia, cada ferramenta, cada máquina inventada é extensão que potencializa sentidos, músculos, membros e órgãos da percepção humana. 

Porém, o guru e profeta McLuhan parece ter antevisto o perigo dessa cirurgia no corpo social sem qualquer assepsia: o perigo de uma infecção generalizada em um sistema. Mais otimista, McLuhan via no artista a capacidade de oferecer uma imunidade à sociedade pela forma como ele capta as mensagens da tecnologia e codifica os desafios culturais.

Entretanto, o aluno de McLuhan vê a questão de uma forma mais sombria: e se essas próprias extensões se tornarem gadgets sensuais, eróticos, esteticamente atraentes a ponto de se transformar num show de atrocidades. Tão atraentes que ultrapassam a própria relevância ou sacralidade do corpo, que se transforma em mero suporte para performances artísticas. 

Esse é o universo das reflexões filosóficas de Crimes do Futuro.



O Filme

Crimes do Futuro abre com uma sequência chocante que funciona como uma explicação oblíqua de seu título evasivo, um que funciona como um buraco de fechadura para o mundo vasto e carnal que aguarda o espectador: um garotinho entra em um banheiro sujo e começa a devorar uma lata de lixo avidamente, como um vampiro recém-nascido ansioso para saciar sua nova sede de sangue. Embora essa traição ao corpo humano-como-conhecemos-não seja a única (ou a real) crime que testemunharemos. 

Em seguida, num ato de desespero e repulsa, acompanhamos chocados a própria mãe matando seu filho, por ser um tipo de aberração híbrida com um apetite inexplicavelmente desumano por plástico.

Corta! Para em seguida acompanharmos um rebelde artista performático Saul Tenser (Viggo Mortensen). O vemos em uma espécie de cama-casulo biomórfica, conectado a espécies de biocabos em várias partes do corpo, acompanhado da sua parceira artística Caprice (Léa Seydoux), uma ex-cirurgiã de traumas do exército.

Juntos, a dupla transformou todo o processo de cirurgias em uma exibição performática, talvez para encontrar algum significado e segurança em meio à imprevisibilidade volátil, ou para deixar algo para trás para combater a sensação incapacitante de vazio. Diante de uma plateia presencial, Saul Tenser leva seu corpo ao limite por causa da arte – através da cama biomórfica, ele cultiva estranhos órgão híbridos em seu corpo, desafiando a morfologia humana. 



Mais de uma vez, ouvimos que esse processo como sendo considerado como uma forma de “abrir o corpo para novas possibilidades” ou, cinicamente, “mostrar a beleza interior”. A tese é mais ou menos assim: se a dor é arcaica, então o próprio corpo pode ser moldado como arte. E o que é toda essa moldagem, toda essa modificação operativa da pele através de mãos humanas e máquinas cirúrgicas inventivas, senão um novo tipo de relação sexual? O que é uma ferida aberta senão um convite para, bem... sexo oral?

O filme se passa em uma cidade despovoada à beira-mar, onde as carcaças de navios enferrujados e cobertos de cracas definham na costa. Lá, em ruas sombrias e prédios abandonados, homens e mulheres vagam, muitas vezes sem propósito aparente, como se fortemente medicados ou talvez atingidos por aquela devastação coletiva chamada realidade. Há uma desconcertante, caracteristicamente Cronenbergiana, falta de afeto para a maioria deles – poucos sentem ainda dor – mesmo quando estão se esculpindo em cantos escuros ou em performances. Os tempos mudaram, mas o apetite humano pela violência e pelo espetáculo permanece intacto.

A história emerge de forma incremental em cenas que parecem flutuar, mas aos poucos vão se encaixando. Entre performances e conversas, Saul e Caprice são atraídos para intrigas sobrepostas envolvendo uma criança morta e um “concurso de beleza interior”. Uma divertida Kristen Stewart (Timlin) aparece com Don McKellar (Wipppet) em um escritório decrépito que uma vez poderia ter sido usado por Philip Marlowe dos filmes noir clássicos, mas que agora tem as palavras inquietantes “National Organ Registry” inscritas na porta da frente. Há também um policial (Welket Bungué) que se esconde com Saul nas sombras, onde o pai da criança morta do início do filme (Scott Speedman) espreita enigmaticamente.



Dor e McLuhan

A chave de compreensão de Crimes do Futuro é o tema da erradicação da dor nesse futuro indeterminado. A dor é uma experiência sensitiva e sensorial primordial para a integridade do ser vivo – estabelece limites do organismo, a integridade do sistema imunológico e o alarme da integridade do corpo. 

Porém, a “new flesh” (conceito cronenberguiano desde Videodrome) é pós-humana, implicado na superação da carne através da intervenção e controle por códigos e dispositivos externos à materialidade orgânica. Mas, a ironia de Cronenberg é que esses softwares e códigos digitais se materializam por meio de gadgets híbridos e biotecnológicos: camas, objetos cirúrgicos, consoles de controle, cabos e eletrodos que mais parecem seres vivos.

A ausência da dor permite definitivamente transformar o corpo em suporte tanto artístico como em objeto erótico semelhante àqueles de sex shop – aberturas do corpo fechado com zíper e disponíveis para fantasias sexuais. Assim como portas de um hardware para cabos serem conectados.

Nisso tudo está a genialidade da tese de McLuhan “O meio é a mensagem”. O intelectual canadense entendia mídia e tecnologia não apenas meios neutros para uma função ou a transmissão de um conteúdo. A mensagem está no próprio meio: como transforma o horizonte perceptual e cultural do próprio usuário e da sociedade.

Por exemplo, se a carta no século XIX criou o frame para o amor romântico e platônico (a distância do amado e as relações platônicas com o desejo), também o aplicativo de relacionamentos Tinder vai criar o frame em que o amor romântico é substituído pelos amores líquidos pós-modernos.

Apenas que abordagem de David Cronenberg para “o meio é a mensagem” é literal, e não apenas cultural ou perceptual: a new flash é a negação radical da organicidade e morfologia do corpo. A ideologia pós-humana do século XXI. 

 

Ficha Técnica

 

Título: Crimes do Futuro

Diretor: David Cronenberg

Roteiro: David Cronenberg

Elenco:  Viggo Mortensen, Léa Seydoux, Kristen Stewart, Don McKellar, Welket Bungé, 

Produção: Argonauts, Bell Media, Canadian Broadcasting Corporation 

Distribuição: Neon

Ano: 2022

País: Canadá, França

 

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