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quinta-feira, junho 09, 2022

Filme "Círculo": da Bíblia aos jogos mortais midiáticos Deus quer ver o pior de nós


No cânone religioso judaico-cristão a Criação é divina e perfeita. Mas o homem estragou tudo com a sua natureza pecadora. Expulso do Paraíso terrestre, o Criador passou a testar o homem em provas arbitrárias para testar a sua fé para ver se, finalmente, a humanidade conseguia expiar a natureza pecadora. A Bíblia fez esses relatos. Hoje, temos no seu lugar filmes e gêneros audiovisuais (reality shows, vídeos de “pegadinhas” etc.) cujo entretenimento é assistir incautos prisioneiros em jogos mortais que arrancam o pior de nós mesmos. O filme “Círculo” (Circle, 2015 – disponível no Netflix) é mais um filme de uma longa lista desse subgênero, dessa vez cruzando abdução alien com um jogo mortal: 50 estranhos despertam em um quarto escuro, dispostos em círculo. Qual o objetivo do experimento? Existe alguma saída? Eles devem tentar cooperar ou competir com os homens e mulheres ao seu redor? Ou é apenas um entretenimento alienígena voyeur e sádico, divertindo-se com o pior da nossa natureza?

 

“Escute aqui... vou te dar algumas informações sobre Deus. Deus gosta de observar. Ele é um gozador (...) Ele fica se mijando de tanto rir! Ele é um sacana! Ele é um sádico! Ele é um patrão ausente!” (Milton, no filme “O Advogado do Diabo”, 1997)

 

Desde o filme Cubo (1997) a cinematografia entrou nesse século fascinada pelo tema de pessoas comuns e indefesas jogadas ou que despertam dentro de jogos mortais: Jogos Vorazes, Escape Room, Round 6, O Poço, The Belko Experiment, Battle Royale, Nerve, The Condemned entre outros numa lista que cresce cada vez mais.

Essa longa lista de filmes é completada com a ascensão de subgêneros televisivos como reality shows, vídeo-cassetadas, “pegadinhas” ou jogos de sobrevivência como “No Limite”.

Apesar da variedade desses subgêneros, há um pathos que une todos eles: tirar o pior de pessoas anônimas, fragilizadas, gente que desde o início já estão condenadas e derrotadas – exploitation da natureza humana, supostamente má e cruel. Uma curiosidade mórbida e lúdica de acompanhar até onde chega o ser humano na luta em salvar seu próprio pescoço. Mandando às favas toda ética, moralidade, compaixão ou empatia.

Nesses subgêneros há uma ambígua sensação de reality: seja na ficção ou no suposto realismo das “pegadinhas” e reality shows, apesar do “realismo” no fundo são jogos cujas regras arbitrárias criam artificialmente situações para, propositalmente, deixar os jogadores “sem saída”, um jogo de soma zero. Dessas situações emergiria o pior de todos nós, uma suposta natureza humana mesquinha, egoísta e covarde.

E ainda mais no fundo, esses subgêneros parecem ser construídos sobre um pressuposto religioso, mais precisamente judaico-cristão: a Criação é perfeita porque obra sagrada de Deus. E o homem, a sua imagem e semelhança, o traiu e com o pecado destruí a obra perfeita do Paraíso terrestre. Foi expulso e paga com a dores da danação esse pecado original. Deus submete o homem a sucessivas provações, à espera de que ele expie seus pecados. Mas o homem parece renitente. E reality shows e jogos mortais fílmicos tentam provar isso.



Círculo (Circle, 2015) é uma variação desse tema: dessa vez, abdução alienígena se encontro com jogos mortais onde cinquenta estranhos despertam em um quarto escuro, dispostos em círculo e, cada um, confinado em um pequeno círculo. Da pior maneira possível, logo descobrem que se moverem e abandonarem seus lugares determinados, são imediatamente mortos por um raio que provém de um console no centro da sala.

Foi o filme de estreia da dupla de roteiristas-diretores Aaron Hann e Mario Miscione: uma produção de baixo orçamento que ocorre unicamente em um cenário, cuja força está nas linhas de diálogo e no design de áudio com os sons que antecipam o momento do próximo jogador morrer.

Qual o objetivo do experimento? Existe alguma saída? Eles devem tentar cooperar ou competir com os homens e mulheres ao seu redor?

Sob um ponto de vista gnóstico, após este humilde blogueiro assistir à Círculo (depois de assistir à maioria dos filmes citados acima), fica uma questão: assim como a Bíblia (e principalmente o Velho Testamento) consiste numa série de relatos em que o Todo Poderoso submete o homem a provações arbitrárias para testar a fé e os limites da natureza pecadora, será que todos esses subgêneros “reality” não seriam versões secularizadas dos textos sagrados? Seriam as novas bíblias, dessa vez ecumênicas, sobre pecados, julgamentos e castigos? 

Talvez a diferença seja que, se no passado incutiam o medo e terror, agora são formas voyeurísticas ou sadomasoquistas de entretenimento.



O Filme

Cinquenta pessoas acordam em uma sala escura sem lembrar com vieram para ali. Em pouco tempo descobrem que uma delas será morta a cada dois minutos ou quando tentam sair das suas marcações. Quando percebem que podem decidir qual pessoa será selecionada para morrer, surgem discussões entre o grupo sobre quem merece sobreviver.

A sinopse acima de Círculo faz parecer um filme extremamente simplista e é exatamente isso que é - o filme inteiro se passa em uma sala mal iluminada.

Embora possa parecer bastante básico na superfície, Círculo funciona bem com os seus elementos minimalistas. Imediatamente o espectador começa a se imaginar na situação. Isso faz você se perguntar o que faria naquela situação para sobreviver. Na essência, é o que o torna o filme tão fascinante; é um experimento depravado sobre o que um ser humano faria para viver se tivesse uma arma literal em suas cabeças e apenas momentos para tomar decisões capitais. Não há dúvida de que algumas decisões muito difíceis teriam que ser feitas, mas como você escolheria quem merece viver e quem não?

Depois de vários minutos, o grupo começa a conversar e entende que cada um deles pode votar individualmente em quem eles querem que seja morto na próxima rodada. Em um ponto chegam ao consenso de que, para que façam algum tipo de tentativa de entender o que diabos está acontecendo, devem criar uma estratégia. É decidido que as primeiras pessoas que morrerão devem ser os idosos, pois já viveram vidas longas. Alguns protestam, mas não demora muito para que a misteriosa cúpula preta no centro da sala comece a matá-los um após o outro.



Os preciosos minutos livres dão tempo ao grupo restante se identificarem entre si, como chegaram lá e se tinham alguma lembrança de terem sido abduzidos. Uma pessoa afirma se lembrar de estar no trânsito e tentar fugir de Los Angeles, o que desperta a memória dos outros. Ele é o único a se lembrar de seu sequestro até que um homem idoso diz que viu e falou com alienígenas. Como o idoso os descreve, vários outros o acusam de mentir para prolongar sua vida; ele é morto em seguida.

Depois que várias pessoas de minorias étnicas serem rapidamente eliminados, um afro-americano afirma que o processo se tornou racista. Vários outros contestam isso, mas quando o policial faz um discurso racista, ele é o próximo selecionado a morrer. Descobrem que não podem votar em si mesmos, e todos os empates devem ser resolvidos, o que significa que uma das duas últimas pessoas restantes deve se voluntariar para morrer ou então ambas morrerão.

Após várias eliminações, surgem dois blocos principais: um que quer proteger a mulher grávida e uma criança, e outro que quer eliminá-los imediatamente como uma ameaça à sua sobrevivência.

A partir desse ponto, torna-se um jogo de mentiras táticas que leva aos poucos sobreviventes finais. Mas apenas um poderá permanecer.




O viés gnóstico 

As intensas linhas de diálogo exploram todos os tropos moralizadores e conspiracionais da sociedade atual: a questão de minorias merecerem serem os primeiros a morrer (ateus, gays etc.), os dotados de menos virtudes familiares (não ter filhos, mães solteiras etc.), os imigrantes ilegais, religiosos, preconceito, racismo, abusadores domésticos e toda uma gama da fauna humana que se tenta ser usada como medida para justificar quem deve morrer na próxima rodada. Tudo deve ser usado como justificativa para cada morte não parecer arbitrária e “aceitável” para os stands morais.

Mais tarde descobrimos que apenas um recusou-se a votar nas sucessivas rodadas, permanecendo até o final. A decisão desse “jogador” coloca em questão toda a natureza arbitrária do jogo. 

Assim como no filme O Poço (2019), uma situação arbitrariamente criada arranca dos participantes o pior de cada um. Uma situação propositalmente criada para gerar medo, terror e desespero não pode gerar qualquer tipo de lição moral. E nem mesmo a condenação de uma “natureza humana” má.



Ao final, temos a confirmação daquilo que é sugerido desde o início: os demiurgos são alienígenas que parecem ter dominados os grandes centros urbanos e abduzidos humanos para participar desses jogos dentro de naves suspensas sobre as cidades.

Nesse ponto, Círculo parece se aproximar do viés gnóstico do filme Cidade das Sombras (Dark City, 1998): demiurgos aliens aprisionam humanos em uma cidade cenográfica no espaço, como uma espécie de laboratório para aprenderem sobre a permanência da alma humana, mesmo submetendo-os a sucessivas trocas de papéis e identidades.

O que querem aprender os demiurgos-aliens de Círculo? Talvez nada ou puro entretenimento voyeurístico - assim como a possível má consciência do espectador ao se entreter com um show exploitation da natureza humana.

Mas Círculo confirma a reflexão gnóstica sobre a suposta natureza humana pecadora: num processo de profecia autorrealizável, o demiurgo cria a armadilha cósmica que nos aprisiona em situações que incitam medo, terror e desespero, para tirar o pior de nós ao impor eventos arbitrários que nos dividem – dividir para reinar.

Segue-se que o pecado está na própria Criação e não no homem, prisioneiro em jogos neo-darwinistas que incitam o automatismo das piores respostas possíveis dos jogadores.


 

Ficha Técnica

 

Título: Círculo

Diretor: Aaron Hann e Mario Miscione

Roteiro: Aaron Hann e Mario Miscione

Elenco:  Allegra Masters, Aimee McKay, Ashley Key, David Rivers, Mustafa Speaks, Bill Lewis 

Produção: Felt Films, Taggart Productions

Distribuição: Netflix

Ano: 2016

País: EUA

 

 

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