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quarta-feira, junho 29, 2022

A desconstrução do patriarcado na cozinha sônica no filme 'Flux Gourmet'


Que tal transformar a bancada de uma cozinha numa performance de um “chefe-DJ”? Microfones enfiados na manteiga ou suspensos sobre frigideiras e panelas, mixers e caixas de efeitos como frangers colocados ao lado do consommé e teremins, além de fios conectados a delicados sensores para captar os delicados sons de frituras, refogados e fervuras. Essa é a “cozinha sônica”, performance artística radical de um coletivo que pretende desconstruir a ordem patriarcal da cozinha. O filme “Flux Gourmet” (2022) de Peter Strickland (“In Fabric”) é uma comédia de humor negro elegante e estranha mostrando as contradições de todas as desconstruções pós-modernas. Com uma simbologia alquímica de fundo, “Flux Gourmet” mostra como as práticas acabam repetindo aquilo que o discurso queria destruir. Porque “o que não é assumido, não pode ser redimido”. 

O frito, o cozido, o ensopado, o grelhado, o refogado e, finalmente, o assado foram as verdadeiras práticas de preparação de alimentos que nos fizeram passar da Natureza para o reino da Cultura: deixamos de ser meros coletadores de frutos e caçadores de animais para inseri-los na rede semiótica de signos e significações.

Deixaram de ser apenas insumos que nos mantêm vivos e saudáveis, para se tornarem suportes de significados, símbolos, desejos e fantasias – por assim dizer, alimentos não só para o estômago, mas também para o psiquismo.

E como era de esperar, fixados nas redes semióticas dos signos, viraram mitos políticos, como denuncia Roland Barthes no seu livro clássico “Mitologias”: revistas para as massas criam uma “cozinha ornamental” – fotografias com pratos barrocos delirantes (coberturas, revestimentos ou bechaméis que criam artifícios extravagantes) através dos quais as massas, sem dinheiro para comprar pratos reais, pelo menos consome a fábula, a fantasia, o sonho.

Em tudo isso, o reforço mitológico e patriarcal da importância simbólica da mãe e da célula familiar: a mitologia do papel da mulher em uma ordem patriarcal – esteio da família, a comida como agregadora do lar, a importância do prato bem-feito à espera da volta do marido para casa depois de um dia de trabalho.

E, como não poderia deixar de ser em épocas da intensificação das lutas identitárias contra sexismo e a ordem patriarcal, também os signos culinários são postos sob o escrutínio político-ideológico.

Mesmo que seja a partir da ironia pós-moderna como no último filme de Peter Strickland (In Fabric), a comédia de humor negro Flux Gourmet (2022). Uma líder de um coletivo formado por um trio artístico é possuída pela ideia radical de construir uma “cozinha sônica” na qual transforme a bancada de uma cozinha numa espécie suporte para os controladores de um “chefe-DJ”: microfones enfiados na manteiga ou suspensos sobre frigideiras e panelas, mixers e caixas de efeitos como frangers colocados ao lado do consommé e teremins, além de fios conectados a delicados sensores para captar os delicados sons de frituras, refogados e fervuras. 



O resultado é uma arte performática em que o som alimentar é ressignificado por loops, feedbacks, echos, overdrive etc. que fariam inveja a qualquer músico experimental de vanguarda – certamente o músico brasileiro Tom Zé (conhecido por formar “orquestras” de de batedeiras elétricas, liquidificadores, enceradeira, esmerilhador etc.) ficaria hipnotizado pelas performances do trio.

 Mais do que uma excêntrica experiência culinária sensorial, o coletivo pretende desconstruir a mitologia culinária patriarcal. De uma tal maneira, tão sintética, que não reste mais nada da velha nostalgia de uma cozinha mítica em que reinava a mãe, a “rainha do lar”.

Peter Strickland dá continuidade às suas reflexões sônicas iniciadas pelo filme de 2012 Barberian Sound Studio – também uma produção em que tudo gira em torno do elemento do som. Mas, em Flux Gourmet, Strickland vai além: como a exploração do sentido do som é capaz de afetar a atmosfera da imagem de um filme. Além dos efeitos sonoros processados parecerem acompanhar a mistura das cores em panelas, liquidificadores e mixers culinários na bancada, diante de uma atenta plateia. Cujos shows terminam, invariavelmente, numa grande orgia.



A ironia e todo humor negro do filme está na luta de poder e controle de todos sobre todos. Embora no campo do discurso ideológico, tudo se trata de uma luta pela destruição tecnológica das reminiscências do poder patriarcal na cozinha, todos estão tentando ganhar algum tipo de controle, seja umas sobre as outras ou sobre o que quer que esteja acontecendo no íntimo de algum trauma interno de cada um. Traumas que, no final, é o que levou cada um àquela experiência de “cozinha sônica”.

O Filme

O cenário é uma casa de campo inglesa, que é um centro de pesquisa em torno de “cozinha sônica”. Abriga uma residência regular de prestígio para um coletivo de culinária auditiva em ascensão: ou seja, um grupo de pessoas criativas que gostam de cozinhar como um evento experimental ao vivo, combinado com criações sonoras ao vivo do tipo Oficina Radiofônica, como descrevemos acima. Ao longo de alguns dias, o grupo é convidado a dar workshops sobre as suas ideias de som alimentar, discutindo as coisas com os vários conselheiros do centro, culminando com um grande evento na última noite.

A diretora do centro é Jan Stevens (Gwendoline Christie), que usa bizarros vestidos de festa tão peculiares como os do tipo que vimos no filme anterior In Fabric – a atriz é conhecida por vestir os próprios modelitos que confecciona, tão excêntrica que se constitui na natural sucessora das esquisitices da atriz Tilda Swinton. 



O ator grego Makis Papadimitrou interpreta Stones, cujo trabalho é entrevistar os artistas residentes do instituto para um livro sobre a instituição. O narrador do filme é ele, um tipo manso e rechonchudo que contrasta com toda a afetação dos tipos ao redor. Stones sofre de uma terrível flatulência além do hálito fétido, o que exige visitas ao médico residente e arrogante Dr. Glock (Richard Bremmer), que continuamente se gaba de seu aprendizado clássico ao mesmo tempo em que sorve cálices de vinho. 

Stones vive uma situação ainda mais embaraçosa, pois tem que dividir uma espécie de dormitório misto com o coletivo de culinária sônica residente: Elle (Fatma Mohamed), Lamina (Ariane Labed) e Billy (Asa Butterfield).

Ocasionalmente o instituto sofre ataques terroristas de um outro coletivo (os “Mangrove Snacks”), mortalmente insatisfeitos por terem seu trabalho recusado pela diretora Jan Stevens.

Elle, Lamina e Billy têm um ponto em comum: traumas envolvendo culinária que os fizerem se encontrar e formar o coletivo sônico. Elle e as memórias em torno do livro “Escola de Jantar de Edna May – Receitas animadas e dicas divertidas para preservar o amor do seu homem”, a “bíblia” que fez a sua cabeça na infância para se transformar numa dona de casa modelo. Até questionar tudo o que lia e ser tomada pelo ódio mortal contra o patriarcado.

Lamina e uma briga envolvendo Ella e clientes num restaurante em que era garçonete; e Billy, vítima de um bullying na escola por ter se excitado sexualmente com a “mulher dos ovos” que preparava pratos em um refeitório numa viagem escolar.



O principal duelo pelo poder é entre a excêntrica diretora Jan Steven e Elle, em torno de um dispositivo de efeito eletrônico chamado “flanger” – efeito de áudio produzido pela mistura de dois sinais idênticos, um deles atrasado, cujo delay aumenta continuamente. Obviamente, serão feitos trocadilhos entre “flanger” e a “flatulência” do pobre jornalista Stones.

Enquanto Elle pretende fazer uma desconstrução tão radical da gastronomia que não reste mais nenhuma memória do que um dia o alimento foi, Steven até aceita a desconstrução sônica; mas que pelo menos ainda mantenha um vínculo com a memória afetiva da cozinha e dos alimentos – Steven quer impor sua condição de patrocinadora e retirar os efeitos “flanger” das performances; enquanto Ellen tem chiliques contra qualquer intromissão em sua arte.  

A forma como o som impacta a imagem e as intensas cores das misturas dos alimentos na bancada “chefe-DJ”, suscitam explicitamente temas alquímicos. Para começar, a aporia entre Steven e Elle, lembrando a máxima do teólogo Irineu de Lyon (180 d.C.): “o que não é assumido, não pode ser redimido”.

A crítica de base de Elle contra a culinária de massas do livro da tal “Edna May” lembra bastante a mitologia dos alimentos desconstruída pela análise semiológica de Roland Barthes. Porém, Elle quer, por assim dizer, jogar a água suja fora com o bebê junto: além dos signos, ela quer desmaterializar o próprio alimento – ao contrário, Steven quer manter “a conexão com o material de origem, uma semelhança do som que já foi”.



Cabala vs. Alquimia

Elle quer processar intensamente o som até o momento em que “apetit appeal” sônico de frituras, fervuras, refogados etc. desapareça. A vingança radical contra a ordem do patriarcado envolveria a destruição da própria preparação do alimento – em si, já carregado de ideologia.

approach do coletivo é cabalístico: impor a codificação tecnológica (o código de Deus) sobre uma materialidade caótica e sem sentido (o “golem”) para que a arte transcenda o caos. Bem diferente, Steven quer impor o viés alquímico da transformação: o caos político-ideológico (a mitologia gastronômico-patriarcal) deve ser aceito, para depois ser redimido e superado.

Talvez seja essa a moral principal defendida por Flux Gourmet com toda a metáfora da sua “cozinha sônica”: estamos condenados a repetir as mesmas e velhas relações de controle, poder e dominação se não aceitarmos o passado traumático na sua totalidade. Não rejeitando-o, mas simbolizando-o, até nos tornarmos conscientes daquilo que realmente foi a fonte do trauma.


 

Ficha Técnica

 

Título: Flux Gourmet

Diretor: Peter Strickland

Roteiro: Peter Strickland

Elenco:  Fatma Mohamed, Gwendoline Christie, Makis Papadimitriou, Ariane Labed, Asa Butterfield, Richard Bremmer

Produção: Bankside Films, IFC Films, Head Gear Films 

Distribuição: IFC Midnight

Ano: 2022

País: Reino Unido, Grécia, EUA


 

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