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quarta-feira, março 02, 2022

Série 'Post Mortem: Ninguém Morre em Skarnes': o mito do vampiro muito além do Mal


Desde “Deixe Ela Entrar” (2008) as produções audiovisuais escandinavas têm como característica inovações inusitadas em gêneros que sempre foram marcados pelos clichês hollywoodianos. Um deles é a da mitologia do vampiro. Na série “Post Mortem: Ninguém Morre em Skarnes” (2021- ) não há vampiros que fogem de cruzes ou réstias de alho, e andam normalmente à luz do dia. E muito menos, pescoços mordidos em série – para desespero de uma agência funerária local em crise financeira. Na série os vampiros não seduzem adolescentes como em “Crepúsculo”, e não são nem encarnações ou representações do Mal. É apenas uma incômoda herança (assim como as dívidas da agência funerária) com a qual deve-se conviver através de medidas práticas. É a marca da cineteratologia (as representações da monstruosidade e do Mal no cinema) atual: ética e moralmente neutros, seres que apenas lutam para sobreviver.

Este humilde blogueiro vem prestando bastante atenção a filmes e séries escandinavas nessa última década. Desde o filme Deixe Ela Entrar (2008), no qual o mito do vampiro alcançou a maturidade, ao abandonar a adolescência dos shopping centers (por exemplo, a franquia Crepúsculo) para entrar no cotidiano dessa faixa etária, repleta de ambiguidades, indecisões e revolta – clique aqui.

O conjunto de produções nórdicas desses últimos anos vem apresentando um olhar não só “alternativo”, mas muito mais adulto, introspectivo e distante das narrativas maniqueístas de heróis dos congêneres hollywoodianos ou do mainstream europeu.

Um exemplo é a co-produção Suécia-Noruega The Innocents (De Uskildige, 2021) onde crianças com poderes paranormais não vão para a escola dos X-Men para combater vilões, mas expor a incomunicabilidade e a quebra do elo geracional na família atual – clique aqui.

Ou ainda a série Chosen (2022- ), no qual as questões que cercam a adolescência saem dos tradicionais dramas escolares, bullying e crises de autoestima para ingressar no campo existencial e gnóstico do chamado “alt.sci-fi” – clique aqui

Mais uma vez uma produção escandinava revisita o mito do vampiro, com a série Post Mortem: Ninguém Morre em Skarnes (2021- ), com um olhar inovador, capaz de investir ainda mais energia numa mitologia tão antiga.

A série é uma produção original Netflix da Noruega composta de seis episódios que combinam o já tradicional gênero noir nórdico com o gênero terror com vampiros. Tudo combinado com uma inquietante doze de humor negro.

O principal código estabelecido na mitologia desses seres das trevas eles continuam sendo a encarnação do Mal, ou pela culpa (a imortalidade como uma maldição) ou como a própria encarnação da maldade (matar como manifestação do prazer pelo Poder).  Essa é uma visão religiosa do Mal presente desde Bram Stocker: o vampiro como uma tentação demoníaca que, por meio da hipnose, vem despertar nos seres humanos (e principalmente mulheres) seus impulsos mais primitivos seja na época vitoriana ou na dos shopping centers: entregar o próprio pescoço para ingressar no imortal reino do Mal. Em outras palavras, entregar-se ao pecado e ser punido por isso.

Post Mortem mantém uma característica cineteratológica (o estudo das representações da monstruosidade e do Mal no cinema) atual que rompe com esse código clássico do vampiro: ética e moralmente não são bons e nem maus, mas apenas entes que evoluíram de uma forma diferente da espécie e lutam para sobreviver. Vampiros atuais não são nem encarnações ou representações do Mal. São apenas herdeiros involuntários, quase vítimas de alguma “maldição”, de alguma anomalia evolutiva na nossa espécie.



Localizado numa bucólica e pequena cidade no interior da Noruega (uma marca do noir nórdico) uma dupla de policiais detetives tenta compreender racionalmente estranhas mortes (ou “quase mortes”, já que “ninguém morre em Skarnes”) em torno de uma família que dirige uma agência funerária – por isso, o espectador pode esperar impagáveis momentos de humor negro.

E como outra característica do noir nórdico (e do gênero noir em geral), os detetives jamais conseguem impor a sua racionalidade metodológica como ferramenta para solucionar os enigmas. Porque sempre a solução coloca em xeque o próprio detetive. 




Extirpado quaisquer maniqueísmos e heroificação de detetive e policiais, ao contrário, sempre parecem estar aquém do ritmo dos acontecimentos: incapazes de impor qualquer ordem, são os personagens que mais rendem sequências cômicas (ou “alívio cômico”) na série. Dessa maneira, Post Mortem fica longe do tradicional clichê da “quebra-da-ordem-e-retorno-a-ordem” hollywoodiano. 

Os mistérios da existência parecem estar sempre muito além da perspicácia do detetive.

O Filme

Live Hallangen (Kathrine Thorborg Johansen) é encontrada morta no meio de um campo na pequena cidade de Skarnes, Noruega. Ela é declarada morta pela polícia, mas horas depois ela acorda de repente na mesa de autópsia – o pesadelo para qualquer legista. Seu irmão Odd (Elias Holmsen Sørensen), que trabalha na única funerária da cidade, fica aliviado. 

Live, no entanto, acordou com uma fome sombria e insaciável por sangue, e seus olhos parecem brilhar em um estranho verde fluorescente. Enquanto ela tenta controlar seus novos impulsos perigosos e letais, Odd tenta manter o negócio da família à tona em uma pequena cidade norueguesa onde ninguém morre.




Dirigido por Harald Zwart e Petter Holmsen, que também escreveu o roteiro, Post-Mortem é um tipo estranho de série (e no bom sentido). O leitor não deve se deixar enganar pelo seu senso de humor sombrio aparentemente alegre, como se quisesse apontar o absurdo de toda a situação. Esta é uma série brutal sobre vampiros.

O corpo de Live é encontrado pelos policiais locais, Judith (Kim Fairchild) e Reinert (Andrée Sørum). Encontrar um cadáver é claramente uma ocorrência muito rara em Skarnes, já que os dois oficiais ficam ao lado do cadáver discutindo o que devem fazer. Os dois discutem se uma autópsia deve ser feita no corpo de Live. 

Reinert, que conhece Live da escola, aponta que a “morte natural” não parece possível. Judith acha que custaria muito para seu pequeno orçamento. Eles ligam para a funerária local, administrada pela família de Live, para buscar seu corpo. Esta sequência de abertura define o tom para o resto da série. Os dois oficiais se deparam com uma situação absurda. Esta é uma pequena vila onde a morte e até o assassinato, sem falar na ideia de vampiros assassinos, é algo totalmente inusitado.




Depois que Live acorda na mesa de autópsia, ela logo não se sente mais bem. Tem insônia e seus sentidos estão aguçados, permitindo que ela ouça o pulso de alguém ou a conversa das pessoas de outra sala. E há essa sede incontrolável de sangue. 

Revendo as coisas antigas de seus pais, ela encontra fitas em que sua mãe descreve uma sede insaciável de sangue semelhante. Live é, no entanto, uma enfermeira e, portanto, deve lutar contra esses novos impulsos.

Aqui começa uma sequência de ironias que dá esse novo tom ao antigo drama do vampiro. Live, ao lado da esposa de seu irmão Odd, é enfermeira em uma clínica para idosos. Tão atenciosas com seus pacientes que eles estão tendo uma vida longa demais para as necessidades financeiras da agência funerária da família.




Assim como Odd herdou dívidas e uma hipoteca atrasada do pai, Live herdou a “maldição” da mãe. Através de antigas fitas de áudio, Live vai compreendida as peculiaridades do seu desejo por sangue, inexplicavelmente despertado.

Post Mortem figura o fenômeno do vampirismo de uma forma tão cotidiana e corriqueira (não há pescoços mordidos em série) que acompanhamos as soluções para poupar e sempre ter disponível um vidro com sangue na geladeira mais próxima.

É o vampirismo representado de uma forma cineteratologicamente amoral: não é nem uma maldição das trevas (os vampiros levam uma vida normal à luz do dia), nem uma corrupção moral que será punida (não há o horror a cruzes, réstias de alho etc.) e muito menos as representações mais contemporâneas como praga viral; é apenas uma incômoda herança (assim como as dívidas da agência funerária) com a qual deve-se conviver através de medidas práticas.

Claro, sempre ocultando tudo da detetive-policial mais desconfiada: Judith. E como traço característico do detetive pós-moderno, a racionalidade e a dedução lógica ao estilo Sherlock Holmes são incapazes para fazer a ordem retornar à pequena Skarnes. 


 

Ficha Técnica


Título: Post Mortem: Ninguém Morre em Skarnes (série)

Diretor: Harald Zwart e Petter Holmsen

Roteiro: Harald Zwart e Petter Holmsen

Elenco:  Kathrine Thorborg Johansen, Elias Holmsen Sørensen, Kim Fairchild, Andrée Sørum

Produção: Motion Blur Films

Distribuição: Netflix

Ano: 2020

País: Noruega

 

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