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quinta-feira, maio 20, 2021

Freud e Jung encontram-se com o Gnosticismo em 'Super Me'


A produção Netflix chinesa “Super Me” (“Qi Huan Zhi Lv”, 2019) é um didático exemplo da complexidade atual dos produtos de entretenimento, muito além dos algoritmos da plataforma de streaming. O filme acompanha um roteirista insone, sem sorte e quase um sem-teto. Até que descobre, nos sonhos, uma forma de trazer tesouros para o mundo real, tornando-se super rico. Porém, hedonismo e ressentimento poderão destruí-lo. Uma fantasia que combina realismo fantástico, romance e comédia com uma narrativa bem adaptada às exigências ideológicas do  atual capitalismo chinês moderno e global. Porém, para não se tornar mais uma narrativa-clichê vazia, faz um mix de Jung e Freud dentro de uma cosmogonia PsicoGnóstica: somos prisioneiros nesse mundo e os sonhos seriam uma forma de libertação. Mas, em todos nós, há uma Sombra que sem misericórdia nos vigia e pune.

Primeira leitura: um produto cultural para o moderno capitalismo chinês global

O protagonista de Super Me (2019), Sang Yu, interpretado pelo jovem ator taiwanês Wang Talu (também conhecido como Darren Wang ), parece um homem perfeito para um capitalismo chinês moderno e global: altamente motivado e capaz de trabalhar constantemente sob condições severas de estresse – a China globalizada que, na nova cadeia de produção global, é a indústria do planeta. Com trabalhadores submetidos a condições de trabalho não muito diferentes da Revolução Industrial Inglesa do século XVIII que tanto indignou Karl Marx.

Mas seu estilo de vida está começando a afetar sua saúde mental. Ele não dorme há mais de seis meses. Assim que fecha os olhos, um demônio mascarado vem para matá-lo nos sonhos, então ele acorda aterrorizado. Ele está perdendo o juízo, já perdeu um emprego, um lugar para dormir e um meio básico de ganhar o aluguel – o seu computador.

Ele passa seus dias evitando Sange (Cao Bingkun), a quem deve dinheiro por um trabalho não realizado, e  sente uma atração amorosa por Hua (Song Jia), sua paixão desde a faculdade, agora dona de uma cafeteria. Um dia, Sang Yu percebe que pode trazer de volta valiosos tesouros que encontra em seus sonhos, enquanto foge do terrível demônio. Simplesmente agarra-se ao objeto e diz “estou sonhando!”, no momento exato em que o demônio o ataca. 

Ele se torna super rico em questão de dias, negociando as peças com gangsteres que traficam antiguidades. Mas há um preço a pagar: sua saúde se deteriora rapidamente, e um gangster perigoso (Wu Gang) volta sua atenção para ele, curioso em descobrir como Sang Yu ficou tão rico rapidamente... e roubar tudo dele.

Nitidamente, a produção chinesa adota o clichê narrativo da quebra-da-ordem-e-retorno-a-ordem:quebras do princípio de realidade para posterior retorno à ordem até que ao final as quebras de ordem política, moral, institucional etc. são solucionadas com a reconciliação moralista, para que o espectador retorne à sua rotina como se nada tivesse acontecido (e, talvez, até mais resignado).



Quem tudo quer, nada tem! É a lição moral que Super Me quer passar aos trabalhadores chineses para que a experiência fílmica não seja capaz de estimular ideias, pensamentos ou emoções que superem os limites do eu e da sociedade.

Sang Yu é um pobre roteirista talentoso, porém sem sorte. Sua grande paixão é uma empreendedora estável, dona de uma cafeteria. Praticamente um sem-teto, Sang Yu encontra um meio ilícito para enriquecer, através dos seus sonhos – simbolismo bem significativo.

O protagonista quebra a ordem meritocrática: passa a ter carrões, mulheres e muito dinheiro em espécie (incrível como a Receita Federal chinesa não farejou alguma coisa errada com o herói...), mas seu amor platônico por Hua permanece. Ela é a reserva moral do filme.

No final, o retorno à ordem: o protagonista é punido, morre e é ressuscitado... para se tornar um atendente na cefeteria do seu grande amor empreendedor.

Assim como Hollywood, a indústria cinematográfica chinesa adota o mesmo controle estético-narrativo para que o entretenimento fílmico não se torne uma aventura perigosa. O filme deve fascinar não pelo vislumbre da transcendência, mas pela tensão entre a fantasia liberada e o restabelecimento da ordem. Sonhos, desejos e loucuras proibidas,são desenvolvidos nos produtos de entretenimento, mas vão até certo ponto para não incomodar a feliz adaptação do público à realidade. Felicidade e "happy ends" são neutralizados para que não coloquem em xeque o princípio de realidade do espectador: quando o filme acaba, voltamos para a nossa dura realidade (que não permite nenhum voo das fantasias) como se nada tivesse acontecido. Assistir a um filme torna-se, portanto, um mero passatempo.




Segunda leitura: um filme metalinguístico

O protagonista de Super Me , Sang Yu, é um roteirista de filmes em dificuldades com um caso perverso de insônia que o está levando a alucinar um demônio assustador chamado Skar (Kevin Lee). Ele deixa de ser um suicida e insone sem um tostão para se tornar um homem rico da noite para o dia. Como? Ao acordar com um artefato inestimável com o qual Skar escolhe matá-lo várias vezes. 

O roteiro de Super Me é a metáfora de Zhang Chong sobre o custo da saúde mental que os escritores enfrentam. Muitos sucumbem a problemas mentais e abuso de substâncias, lutando com seus demônios interiores. As antiguidades que Yu sempre traz e vende também são significativas. Eles são metáforas para a criação inestimável do gênio que eles vendem para quem der o lance mais alto para se manterem sempre em evidência.

A certa altura da narrativa, o amigo de Yu faz uma tipologia das histórias de sucesso. Para ele, há dois tipos de vencedores: os trapaceiros, aqueles que sacrificam aquilo que ninguém quer sacrificar, como amor, família, amizade e diversão. Em troca ganham mais tempo para alcançar o que acreditam ser sucesso. 

O outro tipo são os ladrões ou os que chamam de “gênios”. “Mas será que inventam mesmo? Todas as invenções, na verdade, são descobertas”, diz. Para ele as ideias são roubadas de “outro mundo” ao redor de nós. De lá roubamos as ideias e trazemos para cá, para dizermos que são “invenções”.

O diretor e roteirista de Super Me, Zhang Chong, de certa forma “rouba” um velho tema, presente em filmes como No Limite do Amanhã e Palm Springs: o protagonista tem que morrer para recomeçar num loop temporal em que se encontra. Aqui o protagonista repete num sonho sempre uma mesma cena, para trazer os valiosos tesouros (a metáfora das ideias) que o farão rico.

Moral da história: grandes escritores roubam as ideias dos outros... 




Terceira Leitura: Gnosticismo e a tela mental dos sonhos

Super Me é um filme PsicoGnóstico que ousadamente tenta fazer um mix de conceitos de Carl Jung e Freud. Aqui, a Sombra junguiana combina-se com a tricotomia Id-Ego-Superego do dinamismo psíquico.

Isso fica claro logo nas primeiras sequências quando uma voz over descreve que “Este mundo é uma jaula. Os humanos são exilados de uma espécie mais avançada... os humanos são inteligentes demais. Todos possuem sabedoria e força”. Para continuar dizendo que aqueles que nos aprisionam nesse mundo nos concede apenas quinze por cento na nossa capacidade cerebral.

E a Sombra (o guardião apavorante que persegue Sang Yu) que vigia os nossos sonhos não nos permite acessar o restante. A Sombra se disfarça de pesadelo, castigando sem misericórdia os invasores da zona cerebral proibida.

Das Cosmogonia, Super Me deriva para a luta interna psíquica do protagonista contra a própria Sombra. Para Jung, os sonhos seriam uma forma de alcançar os cantos mais escuros da mente e, através dos arquétipos, conhecer quem realmente somos.

O problema é que a tela mental que criamos para os sonhos nos ilude. Como o filme faz a alusão, os sonhos são uma forma do Superego atuar contra o Id (o inconsciente ou a zona proibida da mente), enquanto manipula o Ego.




Super Me é a narrativa dessas formas de manipulação, para que Sang Yu continue inconsciente na tela dos sonhos através da manipulação dos prazeres do hedonismo e da raiva do ressentimento.

Yu descobre que pode trazer para o mundo “real” os tesouros que vê nos sonhos, passando a viver uma vida de luxos e prazeres materiais. O impulso é o ressentimento: toda a humilhação que viveu durante a fase de pobreza e fracasso – Yu vinga-se daqueles que o humilharam. Só aprofundando ainda mais a ilusão. Yu não compreende que os tesouros não são para serem desfrutados hedonisticamente. Mas deveriam ser inspirações para novas ideias de roteiros, que o levariam para o verdadeiro sucesso.

A metáfora de que escrever um roteiro é como tecer um sonho que o filme sugere, é o caminho da gnose (sair da “jaula” descrita na abertura de Super Me): deveríamos assumir o controle dos nossos sonhos, assim como temos ao escrever um roteiro. Alcançarmos o sonho lúcido, a verdadeira vivência onírica.

Mas Yu faz o contrário: a exortação “Isso é um sonho!” que o faz retornar ao mundo “real” trazendo tesouros, deveria ser o início da lucidez onírica (vencer a Sombra e acessar seu eu profundo para fugir da jaula desse mundo). 

Mas apenas alimenta o hedonismo e ressentimento que o aprisiona. E ele descobrirá isso da pior maneira.

Super Me é um exemplo da complexidade das produções culturais atuais, principalmente aquelas destinadas ao entretenimento de massas: entre a auto-indulgência dos produtores (a metalinguagem do trabalho de roteirista) e o controle ideológico dos espectadores (a fantasia-clichê de quebra-da-ordem-e-retorno-a-ordem).

As referências a Jung, Freud e Cosmogonia gnóstica não é apenas um mero “bonus track” para alcançar públicos mais cult. É a mitologia que dá vida a uma narrativa clichê. Sem ela, Super Me seria mais um thriller romântico e de ação. É mais um tesouro que o roteirista “rouba” dos sonhos do inconsciente coletivo para alimentar o hedonismo do entretenimento.


 

Ficha Técnica 

Título: Super Me

Diretor: Zhang Chong

Roteiro: Zhang Chong

Elenco: Kevin Lee, Wang Talu, Cao Bingkun, Song Jia, Wu Gang

Produção: Anthem Pictures 

Distribuição:  Netflix

Ano: 2019

País: China

 

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