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quarta-feira, maio 05, 2021

'Black Box' e a endocolonização: 'Total Recall' se encontra com 'Corra' e 'Amnésia'



O tema do “body insertion” é cada vez mais recorrente nesse século, no cinema e audiovisual: a habilidade tecnológica de inserir a mente de alguém no corpo do outro. Uma combinação de possessão com troca de mentes. Se no passado tínhamos a possessão demoníaca ou espiritual, hoje vivemos a tecnológica, no momento em que nossas mentes são traduzidas pelos modelos computacionais e os algoritmos parecem saber mais de nós do que nós mesmos. Dentro de um verdadeiro processo de endocolonização das mentes. A produção Amazon Prime Video “Black Box” (2020) é mais um exemplo dessa recorrência: depois de perder sua esposa e a sua memória em um acidente de carro, o pai viúvo de submete a um tratamento neurofisiológico experimental, colocando em crise quem ele realmente é. Black Box é um inteligente mix de “Total Recall” (Philip K.Dick), “Amnésia” (Christopher Nolan) e “Corra” (Jordan Peele).

Além do appeal pelo horror cósmico de HP Lovecraft pelo cinema do século XXI (sobre isso clique aqui), outra coisa marcante é a recorrência de produções sobre personagens cujo corpo e mente foi possuído tecnologicamente – possuído outras pessoas cuja mente foi digitalizada, em busca de novos corpos para habitar. A garantia da imortalidade com o auxílio de uma tecnologia computacional sinistra que transforma os corpos e mentes alheias em meros espaços vazios à espera de uma mente invasora.

É o subgênero “body insertion”: a habilidade tecnológica de inserir a mente de alguém no corpo do outro. Uma combinação de possessão com troca de mentes.

No século XX também o tema da possessão era recorrente, porém pela perspectiva religiosa ou metafísica: a possessão: demônios, fantasmas ou uma entidade qualquer do outro mundo estão à nossa espreita para nos possuir por vingança, manipulação ou, simplesmente, para escandalizar a ordem divina.

Só para pegar filmes e séries recentes, temos Possessor (2020), a série The Hundred (2014-2020, cuja sexta temporada inteira é sobre os “Primes”, uma elite que expulsa a mente do hospedeiro para ocupar seus corpos para garantir a imortalidade), Inception (2010, a invasão dos sonhos alheios), Nekrotonic (2018), Substitutos(2011) etc. 

Desde que o cientista da NASA, Robert Jawstron, em 1984, afirmou que “um dia os cientistas seriam capazes de retirar o conteúdo da mente e transferi-lo para a memória de um computador” (clique aqui), o tema “body insertion” foi crescendo aos poucos no cinema. Para nesse século, virar um subgênero.

Teórico e crítico do imaginário político das novas tecnologias, Arthur Kroker, em seu livro “The Possessed Individual” (1992), já alertava para um novo paradigma “trágico-humanista”, pós-humano, no qual corpo e mente se virtualizam com a invasão agora não mais espiritual ou demoníaca: mas tecnológica – “a ruptura terminal da própria vida dentro do aparato morto da paisagem midiática” – leia KROKER, Arthur, The Possessed Individual, Palgrave, 1992.



Black Box (2020), estreia do diretor Emmanuel Osei-Kuffour Jr., é mais uma produção que reforça esse sintoma do atual zeitgeist – o imaginário tecnognóstico no qual conceitos como espírito, consciência e mente podem ser traduzidos em bytes, armazenados após um upload para depois serem “baixados” em “hospedeiros”. Embora o drive seja científico, a motivação continua sendo religiosa: a busca da imortalidade, mas agora não mais em outro mundo. Mas, aqui e agora no mundo material. A religião das máquinas irradiada pelo Vale do Silício, através de filmes, marketing e publicidade.

A abertura de Black Box é emblemática: vemos o protagonista derramando lágrimas de alegria segurando sua filha bebê no colo pela primeira vez. Logo a imagem é pixelizada e rapidamente é revelado que as imagens são de um vídeo assistido em um laptop. Vemos um personagem com um álbum de família que folheia, tentando resgatar suas memórias como parte de um esforço contínuo. 




Reencontrar as memórias para encontrar a própria identidade. Esse é o núcleo temático do atual espírito do tempo.

O Filme

Acompanhamos Nolan (Mamoudou Athie), um fotógrafo que trabalhava para um jornal que perdeu sua esposa Rachel (Najah Bradley) em um acidente de carro no qual sobreviveu, embora com um grave traumatismo que o deixou em coma por três dias. Até, inesperadamente, retornar à consciência, porém com uma séria crise de amnésia. O que significa que sua filha Ava (Amanda Christine), agora em idade escolar primária, teve que se tornar a adulta da casa, treinando o pai em rotinas básicas, para reuniões profissionais e controlar seus impulsos inexplicáveis de fazer coisas que nunca tinha feito antes à lesão como, por exemplo, fumar.

Ava começa a escrever lembretes sobre funções domésticas regulares em post-its, espalhados por toda a casa (lembrando o filme Amnésia (2000) de Christopher Nolan... será que o nome do protagonista é uma homenagem do diretor ao clássico filme gnóstico?).  Mas quando se trata da sua esposa e do relacionamento que eles compartilhavam, ele tem muitas perguntas. Uma crise profunda, na qual Nolan tenta de saber que tipo de marido ele foi.

Dada sua falta de progresso após várias consultas médicas, o irmão médico de Nolan, Gary (Tosin Morohunfola), o incentiva a consultar a Dra. Lillian Brooks (Phylicia Rashad), uma renomada neuropsiquiatra que trabalha no mesmo hospital, que teve sucesso significativo com um programa experimental na recuperação da memória. Ela o conecta a um dispositivo de caixa preta que induz hipnose, transportando o paciente para um espaço virtual no qual pode acessar vários caminhos de memória bloqueados, clicando na coroa de um relógio analógico.

Mas à medida que Nolan revisita os principais pontos de sua vida, como sua noite de núpcias ou um apartamento antigo, ele começa a ver imagens assustadoras - figuras contorcidas com rostos vazios e ossos quebrando se aproximam dele como aranhas, ameaçando-o. 




Aos poucos a ficção científica se encontra com o terror, principalmente o horror corporal. Os dois momentos que mais voltam para ele, o casamento e um confronto no apartamento, ambos o encontram cercado por rostos embaçados - e uma fugura humanoide assustadora. Ele confronta o terror com o mantra fornecido pela sua médica (“Eu controlo minha mente, ela não me controla”) torna-se uma afirmação duvidosa à medida que as coisas se desenvolvem.

Porém, quanto mais ele começa a investigar as memórias, mais o mistério se aprofunda: se essas são as memórias de Nolan, por que são tão estranhas e ameaçadoras?

Endocolonização da mente – alerta de spoilers à frente

Começamos a desconfiar que o filme caminha para algum tipo de plot-twist. E a resposta chega com um novo personagem fascinante (Donald Elise Watkins) e seu relacionamento com uma mulher chamada Miranda (Charmaine Bingwa) que Nolan encontra por razões que ele não consegue resolver. A grande revelação de Black Box leva a uma intrigante exploração de famílias desfeitas, arrependimentos profundos e perspectivas de segundas chances.

Sugerindo um casamento inteligente de Total Recall com o Corra de Jordan Peele. Revela-se a ciência demiúrgica da Dra. Brooks (ou o clássico papel do cientista maluco) e a descoberta de Nolan de ter sido vítima de uma possessão tecnológica num mundo onde a mente e consciência podem ser traduzidas em bytes e o corpo torna-se um mero invólucro vazio. Como o gólem da mitologia da cabala judaica: a matéria inanimada à espera do código divina para ganhar vida.




Enquanto a possessão demoníaca ou por espíritos no passado sempre esteve associada às questões morais religiosas em torno de culpa e pecado, a atual possessão tecnológica vai mais além, envolvendo a própria desconstrução da consciência – a arbitrariedade das memórias poderem ser um constructu (como os replicantes de Blade Runner), colocando em xeque a própria identidade. 

O mapeamento da mente (cartográfico e topográfico) como nova engenharia social – a  generalização do modelo computacional como fosse o próprio modelo cognitivo de funcionamento da mente, criando modelos e simulações de funcionamento cerebral a partir de verdadeiras cartografias e topografias da mente. O que representa um esforço multidisciplinar envolvendo as neurociências, ciências cognitivas, Cibernética, Inteligência Artificial e Teoria da Informação para não só desvendar o funcionamento da mente como também procurar um modelo que permita não só compreender a dinâmica dos processos mentais e da consciência, mas, principalmente, manipulá-la e controlá-la.

Essa verdadeira endocolonização já era seminal nos meios de comunicação de massa e a prospecção do ego através do marketing e da publicidade no século XX. Hoje, quando o modelo computacional se torna hegemônico (mente, ego, memória e identidade são traduzidos em termos de coisas como disco rígido, processadores de memória, escaneamento como se a identidade fosse constituída por bytes ou terabytes de informação), o grande sintoma cultural é essa recorrência da possessão tecnológica no cinema e audiovisual do século XXI.


 

Ficha Técnica 

Título: Black Box

Diretor: Emmanuel Osei-Kuffour

Roteiro: Emmanuel Osei-Kuffour

Elenco: Mamodou Athie, Phylicia Rashad, Amanda Christine, Tosin Morohunfola, Charmaine Bingwa

Produção: Amazon Studios, Blumhouse Productions

Distribuição:  Amazon Prime Video

Ano: 2020

País: EUA

 

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