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terça-feira, março 23, 2021

Amor, mentiras e algoritmos na série 'The One'


Encontrar a alma gêmea, o parceiro certo e viver uma linda história de amor para sempre. Essa é uma mercadoria escassa e, por isso, valorizada no mercado, atraindo a ambição das Big Techs, oferendo redes sociais e aplicativos de relacionamentos para usuários solitários: a promessa de que os algoritmos farão todo o trabalho porque eles conhecem mais sobre nós do que nós mesmos. Mas, e se os algoritmos se juntarem com bancos de dados genéticos? Esse é o tema da série Netflix “The One” (2021- ): se numa sociedade de incomunicabilidade o outro vira fonte de angústia, que tal entregarmos o livre-arbítrio afetivo a um aplicativo que faça combinações genéticas? Mas, por trás de toda fortuna há um crime. E por trás de todo “match” uma mentira.

“Por trás de toda uma grande fortuna há um crime”, dizia Honoré de Balzac. Esse aforismo do grande escritor francês, notável pela sua aguda observação psicológica da ascendente burguesia do século XIX, é a inspiração do argumento da série The One (2021-), adaptação de Howard Overman do romance homônimo de John Marrs de 2017.

Passada num futuro muito próximo, acompanhamos o impacto da popularização de uma tecnologia na qual computadores podem executar o seu DNA a partir de um gigantesco banco de dados global para prever o par amoroso perfeito. A premissa da série não é nenhuma novidade: Soulmates (antologia de seis episódios da Amazon), Osmose ou mesmo o episódio da série Black Mirror, “Hang the DJ”, têm exatamente a mesma premissa.

O diferencial da série The One é o famoso aforismo de Balzac, porém usando a palavra “fortuna” no seu sentido mais amplo: não apenas no sentido do sucesso financeiro, mas no êxito ou sucesso de alguém ou de um projeto. Ao ponto em que a fortuna possa se transformar em fardo ou destino. E o crime que possa estar por trás disso: o crime ético de que os fins justificam os meios.

A série narra a fortuna da engenharia de manipulação de DNA, como sempre repleta de boas intenções: encontrar a sua alma gêmea e acabar com todos os sofrimentos em torno de separações, divórcios e corações partidos – e para não dizer também abusos domésticos, depressões e suicídios.

Mas também o sucesso da geneticista, fundadora e CEO da empresa One, responsável pela combinação de milhões de almas pelo planeta, tornando-se um sucesso bilionário. “Eu fui combinado!” torna-se o hit das redes sociais em todo o mundo.

E o sucesso de um repórter freelancer que se torna um “vazador” de informações plantadas estrategicamente dentro de uma guerra corporativa na diretoria da One. 

Outro diferencial é que em The One a genética entra como espécie de VAR dos relacionamentos amorosos. Um, por assim dizer, tira-teima diante da angústia da escolha do parceiro ideal – se é o código do DNA que está fazendo a combinação entre pessoas geneticamente predispostas, quem somos nós para discutir?



Seja na literatura, arte, psicologia, o amor sempre foi uma manifestação do livre-arbítrio do espírito. Um exercício de liberdade da escolha orientada pelo coração e sensibilidade num campo puramente relacional e comunicacional. Isto é, um campo no qual a meta era o diálogo e a necessidade de abrirmos um espaço dentro de nós mesmos para receber o outro, a alteridade.

Um exercício de livre-arbítrio que muitas vezes confrontava a ordem social e política – amores “impossíveis” que enfrentavam o preconceito, a desigualdade e os poderes, como a tragédia de Romeu e Julieta, por exemplo.

Porém, com a ascensão da IA baseada em algoritmos, as flechas do Cupido começam a ser disparadas não mais pela paixão e amor, mas pela lógica da relação custo/benefício e pelo cálculo probabilístico nos aplicativos de relacionamentos como Tinder ou Lulu. Mas em The One temos o “match” exato, sem mais cálculos probabilísticos algorítmicos: o tira-teima é a compatibilidade genética - o código do DNA não mente jamais, porque está acima de coisas tão imprevisíveis como a paixão, flerte e jogos de sedução.

O curioso é a série The One suscita uma dúvida existencial: por que o amor e o livre-arbítrio, outrora ansiosamente buscado por escritores, poetas e filósofos, passou na modernidade a ser fonte de tanta angústia e ansiedade? A ansiedade da escolha que buscamos minimizar com algoritmos e aplicativos, até chegarmos ao paroxismo: a combinação genética.




A série

Em um futuro tão próximo que poderia ser na semana que vem, os cientistas descobriram como fazer “combinações” entre pessoas que são geneticamente predispostas a sentir uma conexão profunda entre si. A última palavra em tecnologia, que supera antigos aplicativos de relacionamentos como Tinder.

É distribuído por uma empresa chamada One, fundada pela geneticista e agora CEO Rebecca Webb (Hannah Ware) e seu colega, o cientista James Whiting (Dimitri Leonidas), cuja pesquisa sobre grupos de formigas e produtos químicos é o que levou à sua descoberta inovadora. Em curtíssimo tempo, a One decolou de uma forma espetacular que a expressão "Eu fui combinado!" torna-se tão coloquial como "Eu dei um Google" ou as selfies em publicadas em redes sociais. 

Embora tenha se tornando imensamente popular, são crescentes as críticas, principalmente nas crises que estão sendo provocadas em casamentos ou relacionamentos já estabelecidos:  por conta própria, o parceiro acessa a plataforma One e encontra a sua verdadeira combinação genética. O que coloca em xeque o relacionamento atual. Ou seja, ter uma alma gêmea ditada pela ciência é um convite para todos os tipos de crises e distúrbios conjugais e relacionais.

A série tem uma narrativa em slow burn que leva dois episódios para a estória“pegar”. 

No episódio um, somos rapidamente apresentados a vários personagens. Conhecemos Hannah Bailey (Lois Chimimba), uma mulher em um casamento satisfatório que começa a ficar obcecada com a ideia de combinação genética e, em um acesso de ciúme preventivo, toma a decisão muito imprudente de encontrar quem seria compatível com seu marido, Mark (Eric Kofi- Abrefa), sem o seu conhecimento. 

Depois, há a inspetora-chefe Kate Saunders (Zoë Tapper), uma mulher solteira que experimenta o One e acaba sendo pareada com uma bela mulher de Barcelona, ​​Sophia Rodriguez (Jana Pérez). Eles flertam no chat de vídeo por algumas semanas antes de Sophia fazer a jornada para Londres para se encontrar pessoalmente, mas quando ocorre um terrível acidente, a vida pessoal de Kate se torna inesperadamente mais complicada.




No centro de tudo isso está uma investigação de assassinato quando um corpo em decomposição é retirado do rio. Os investigadores identificam a vítima como Ben Naser (Amir El-Masry), um associado de Rebecca e James. Flashbacks nos fornecem o pano de fundo necessário para os eventos que ocorreram, desde a pesquisa que tornou possível a correspondência e o início sombrio da agora gigante empresa (o “crime” por trás de toda fortuna, de Balzac), bem como a amizade entre Rebecca, James e Ben e como tudo se conecta. Os flashbacks provocam todos os tipos de segredos sombrios e embora os espectadores provavelmente adivinhem corretamente o que aconteceu no início (a série não está muito preocupada em escondê-lo), os detalhes se encaixam perfeitamente.

A maior parte do tempo as cenas são dedicadas à cientista e implacável CEO Rebecca, fazendo discursos ao estilo TED Talk vendendo o conto de fadas romântico da One (“Nós merecemos o conto de fadas! Ninguém mais precisará sofrer por amor!”), ao mesmo tempo em que manipula o repórter free-lancer Mark com vazamentos seletivos dentro do xadrez da luta pelo poder na corporação The One. Sem falar no jogo de gato e rato com a inspetora Kate que suspeita de um crime fundador na fortuna da The One.




Angústia e incomunicabilidade – Alerta de Spoilers à frente

A engenharia genética por trás da descoberta de como as formigas reagem umas as outras, criando ligações irresistíveis que mantêm a coesão de uma colônia, promete que a suposta alma gêmea (o “match”) é absolutamente única – daí a tecnologia se autodenominar “The One”.

Porém, aos poucos começamos a desconfiar que a natureza de toda a iniciativa não está na exatidão do DNA, mas em um fenômeno de natureza muito mais perceptual ou cognitiva: a profecia autorrealizável. A força da combinação amorosa é menos genética e muito mais provocada pelo “hype” publicitário em torno da promoção mercadológica da corporação The One – de tanto acreditar na promessa do conto de fadas, a promessa do imaginário romântico (abençoado pela Ciência) acaba se realizando. Por quanto tempo? O alcance desse efeito placebo ainda não fica claro na primeira temporada.

Mas há também um pano de fundo existencial: por que, atualmente, o campo afetivo (o amor, a paixão, a relação a dois, etc.) é objeto de tanta ansiedade e angústia? Ao ponto do próprio capitalismo descobri-lo como mercadoria escassa (e, portanto, com valor de mercado), servindo de impulso para os grandes negócios das Bigtechs: redes sociais, aplicativos de relacionamentos e algoritmos que parecem conhecer mais sobre nós do que nós mesmos.

O primeiro fator é o da incomunicabilidade generalizada criada paradoxalmente pelas novas tecnologias de comunicação e informação. Na série The One vemos todos os personagens imersos em seus smartphones, tablets, laptops, computadores, banco de dados etc. Mas há uma incomunicabilidade crônica entre todos, principalmente entre a ciumenta precoce Hannah e o marido Mark e a geneticista Rebecca e seu “match” Matheus Silva (Alberto Jerónimo). 




Talvez pelo efeito bolha que os algoritmos criam entorno de cada um de nós, tornando-nos solipsistas, isto é, o outro (ou a alteridade) passa a ser estranho e, portanto, fonte de incerteza e insegurança – a ausência de diálogo e a impaciência tornam-se as marcas dos relacionamentos atuais, sempre breves e superficiais.

Um segundo fator estaria na própria angústia existencial, no sentido sartreano. Para Sartre Para ele, a angústia decorre da descoberta da radical liberdade humana – não há Deus, propósitos, destinos manifestos, natureza humana ou qualquer outro tipo de “essência” que nos conforte nas escolhas que fazemos. Apenas há a existência. Por isso liberdade e responsabilidade são a fonte da permanente angústia humana. Esse radical indeterminismo.

E a atual sociedade de consumo tecnológico potencializa ainda mais essa sensação de angústia: as inúmeras e imaginárias alternativas bombardeadas sobre nós (opções de consumo, carreira, amores etc.) pelas diversas mídias, aplicativos e plataformas apenas potencializam a inquietação e ansiedade – o quê escolher? Com quem namorar diante das opções uma plataforma de encontros como um Tinder? O quê escolher nas gigantescas gôndolas de hipermercados?

Em The One o “conto de fadas” que vai remediar essa angústia são os algoritmos e a Inteligência artificial. Mas principalmente, a sua última interface tecnológica: a bio-eletrônica – a irresistível convergência dos gens, banco de dados genéticos, aplicativos e redes sociais.

Irresistível porque oferece para todos o álibi que nos faça fugir de qualquer responsabilidade: não somos mais nós que decidimos, são os códigos genéticos mostrados numa interface tecnológica. 

Nos livramos do fardo do amor, da paixão e das emoções (facetas do livre-arbítrio) para entregarmos tudo ao VAR genético: agora podemos sentir-nos tão felizes quanto as formigas que inspiraram os geneticistas da série: o amor humano reduzido à metilação feromonal das formigas.


 

Ficha Técnica 

Título: The One (série)

Criador: Howard Overman

Roteiro: Howard Overman

Elenco: Hannar Ware, Zoë Tapper, Lois Chimimba, Eric Kofi-Abrefa, Dimitri Leonidas

Produção: StudioCanal, Urban Myth Films

Distribuição:  Netflix

Ano: 2021-

País: Reino Unido

 

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