Pages

domingo, fevereiro 10, 2019

O apocalipse foi a própria Criação em "Oblivion"

Se "Matrix" (1999) foi o auge hollywoodiano do gnosticismo pop, “Oblivion” (2013) é outro filme que consegue sintetizar o mito central dos gnósticos: o apocalipse já aconteceu, e foi a própria Criação: um erro cósmico no qual nos tornamos prisioneiros da ilusão e do esquecimento. Tom Cruise é Jack, um técnico de manutenção de drones e robôs cumprindo sua última missão na Terra: conduzir os recursos naturais remanescentes de um planeta devastado para uma lua de Saturno, último refúgio humano. Mas Jack aos poucos começa a questionar os propósitos da sua missão. Principalmente quando a mulher dos seus recorrentes flashs de memória aparece na queda de uma nave.

O clássico Planeta dos Macacos (1968) foi um ponto de inflexão na história do cinema: levou ao mainstream cinematográfico o tema do pós-apocalipse – a Terra foi dizimada por uma guerra nuclear e os macacos ascenderam na evolução e escravizaram os seres humanos, convertidos em animais silenciosos.
Muitos críticos apontam esse momento como o início do pós-moderno no gênero sci-fi: diferente dos clássicos anteriores marcado por tons futuristas ou evolucionistas, o futuro torna-se regressivo, distópico, cujo avanço tecnológico pode até ser impressionante, mas no fundo é disfuncional e sombrio.
Certamente essa mudança das nossas expectativas em relação ao futuro se deve, claro, ao trauma da Segunda Guerra Mundial e os horrores do Holocausto. Mas o impacto da descoberta dos pergaminhos apócrifos, conhecidos como Evangelhos Apócrifos, em Nag Hammadi (Egito) em 1945, também foi um evento importante nessa mudança dos humores pós-modernos – conjunto de antigos textos do início da Era Cristã que revelariam a natureza do antigo cristianismo e as interpretações místicas sobre a vinda de Jesus feitas pelos gnósticos.
Nesses textos fica evidente o mito central dos Gnosticismo: há algo muito errado com o Universo: na verdade, o apocalipse já ocorreu – foi a Criação, um erro perpetrado não por Deus, mas por um Demiurgo. Aprisionando a humanidade no erro através da ilusão e da ignorância. Depois disso, passamos a viver nas ruínas da Criação, assim como o herói cinematográfico Mad Max vagava por desertos inóspitos.
O impacto da descoberta de Nag Hammadi repercutiu de imediato na literatura de autores como Albert Camus, Philip K. Dick, Harold Bloom e Alen Ginsberg. Não precisou de muito tempo para esses insights atravessarem a cultura pop: HQs, literatura pulp fiction, mangás, animes japoneses e o cinema – do nicho cult até chegar no mainstream hollywoodiano.
Se Matrix (1999) foi o auge hollywoodiano do gnosticismo pop, Oblivion (2013) é outro filme que consegue sintetizar esse mito central dos gnósticos: um técnico de drone chamado Jack (Tom Cruise), junto com sua companheira de operações, passa os dias fazendo a manutenção de robôs e máquinas que estão numa Terra pós-apocalipse, devastada por uma guerra nuclear e desastres naturais.
Uma nave em forma de poliedro supervisiona a missão absorver todos os últimos recursos naturais do planeta para serem enviados para a colônia terrestre numa das luas de Saturno. Para onde a humanidade migrou após a destruição.
Mas, como em uma boa narrativa gnóstica, nada é o que parece. Jack é o protótipo da condição humana nesse cosmos: o esquecimento e falsas memórias são a base da ignorância que mantém o protagonista feliz em uma ilusão, cercado por todos os confortos tecnológicos. Assim como os gnósticos desconfiam de que há algo de muito errado com esse cosmos, da mesma maneira Jack aos poucos vai perdendo a certeza sobre a natureza real do apocalipse nuclear que varreu a Terra.


O Filme

Jack tem um sonho em preto e branco recorrente, que também se manifesta em flashs de memórias ocasionalmente durante o dia: ele sempre aparece com uma linda mulher, em passeios numa Nova York anterior ao apocalipse.
Tudo se passa no ano de 2077, 60 anos depois de uma invasão alienígena que tornou a Terra inabitável – a Lua foi destruída durante a invasão, o que provocou terremotos e tsunamis, destruindo as cidades. E o restante foi arrasado por bombas nucleares na batalha contra os invasores. O que contaminou todo o planeta, forçando a humanidade a migrar para Titã, uma das luas de Saturno. 
Mas deixou na Terra os dois últimos remanescentes com uma importante missão. Do alto de uma torre de comunicações, Jack Harper e Victória (Andrea Riseborough) monitoram drones, robôs e máquinas que drenam os últimos recursos naturais do planeta para serem enviados a Titã. Mas eles próprios também são monitorados por uma chefa estranhamente alegre chamada Sally (Melissa Leo) a partir de um satélite chamado Tet – um poliedro negro com faces triangulares invertidas.
“Vocês continuam um time efetivo?”. Sempre pergunta Sally ao final de cada conversa com a dupla de técnicos – sua imagem robótica na tela já é a primeira pulga atrás da orelha para o espectador.
Aparentemente, os dias do casal na Terra é rotineiramente tranquilo, com a ajuda de uma sofisticada tecnologia: consertos de drones, jantares à luz de velas em candelabros e mergulhos em uma piscina com fundo de vidro.


O único risco são esporádicos ataques surpresas contra drones e robôs, supostamente feitos pelos “escavadores”, últimos exemplares dos alienígenas invasores que sobreviveram à guerra nuclear e vivem escondidos em cavernas. Mas nada como a sofisticada tecnologia para torna-los um “time efetivo”.
Um dia uma nave cai em um dos quadrantes próximos à torre. Jack consegue resgatar apenas um sobrevivente em estado criogênico – uma astronauta russa chamada Julia (Olga Kurylenko), incrivelmente semelhante à mulher dos seus sonhos. 
Jack a leva de volta para a torre, incitando ciúmes e desconfiança na parceira Vica.
Julia permaneceu por seis décadas em sono criogênico – ela e sua tripulação parecem ter dado meia volta na viagem só de ida para Titã. Ela se recusa a dizer o propósito da sua missão de retorno à Terra. Pelo menos, até encontrar a caixa preta da nave destruída.
Essa é a segunda pulga na orelha para nós: que segredos o registrador de voo da caixa preta poderá revelar sobre Harper, Victória e da própria invasão alienígena?


Temas gnósticos em Oblivion– alerta de Spoilers

De início Oblivionapresenta três temas bem caros aos filmes gnósticos: a protagonista como o Divino Feminino, a perda da memória como a base da ignorância e ilusão e a violenta torsão narrativa, revelando uma realidade construída artificialmente por um Demiurgo.
Evidentemente, a personagem Julia pertence à cadeia dos iluminados aeons da mitologia gnóstica: Set, Enoch, Sem, Zoroastro, Buda, Sophia, Jesus etc. Todos com a missão de nos mostrar que nossas percepções condicionadas pelas ilusões desse cosmos se tornaram uma prisão para a essência espiritual humana.
Jack Harper a esqueceu, restando apenas cacos de memória que não consegue reconectar. Julia terá o papel de despertar aquilo que foi esquecido, assim como Sofia em Vanilla Sky, Sylvia em Show de Truman ou Trinity em Matrix.
O papel do esquecimento (“oblivion”) é fundamental na narrativa. No meio da desolação terrestre, Jack secretamente tem o seu pequeno paraíso em uma área ainda arborizada. Lá estão fragmentos de uma época que se foi: boné de um time de futebol, discos de vinil, aparelho de som e outros cacos de memórias vintage. Lá parece buscar algo, do qual não se lembra. Até aparecer Julia, a mulher dos seus sonhos recorrentes.


Aqui o diretor e roteirista Joseph Kosinski (Tron: O Legado) praticamente atualiza a interpretação gnóstica do Paraíso bíblico. Assim como a animação da Pixar WALL-E (2008, clique aqui), por um ponto de vista tecnognóstico.
Jack é Adão (e no filme isso fica ainda mais evidente ao ser descoberta a sua condição de clone) que receberá o conhecimento proibido. Mas dessa vez, não mais através da maçã. Eva/Júlia mostrará as gravações de voo da caixa preta. 
O que coincide com a reinterpretação gnóstica do Paraíso: a forma espiritual da serpente seria a própria Eva, tentando levar ao homem o conhecimento, o fruto da árvore proibida.

Aliens/Demiurgo

É a inevitável torsão narrativa tanto para o protagonista quanto para o espectador. Juntos, descobrem de forma violenta a mentira criada pelos aliens/Demiurgos. Nada é o que parece: os “escavadores” na verdade são seres humanos resistentes à invasão alienígena que, ao contrário do que pensam Jack e Victória, foi bem-sucedida. Restando aos humanos lutarem contra as máquinas que drenam toda a energia e recursos naturais do planeta. 


O Paraíso tecnológico da torre de comunicações nada mais é do que o jardim cheio de belezas e delícias, como o Paraíso bíblico – uma armadilha para manter Jack/Adão na ilusão, esquecimento e ignorância. Enquanto mantém as máquinas sugando a energia terrestre. Assim n=como na Cosmologia gnóstica, o demiurgo aprisiona a humanidade para sugar dela a luz espiritual que põe o cosmos em funcionamento.
“Vocês continuam sendo um time efetivo?”, sempre pergunta a estranha Sally para o casal de técnicos. Mantê-los sempre ocupados, em constante estado de alerta, sempre à beira de uma crise e criando inimigos externos (os “escavadores”) é a clássica estratégia dissuasiva para suspender qualquer dúvida, pensamento crítico ou suspeita. Pela absoluta falta de tempo, com a mente ocupada por ameaças imaginárias – esse é o ponto de contato entre a Cosmologia gnóstica e e as questões políticas terrenas. Afinal, as relações políticas de dominação são o microcosmo de um drama muito maior, em escala cósmica.
Ironicamente, a gigantesca nave poliédrica chama-se Tet (letra inicial hebraica inicial de “tov” (o Bem). Lá acontecerá o duelo final de Jack com a verdadeira face de “Sally”: a sinistra inteligência alienígena que vaga pelo Universo subjugando civilizações para drenar ainda mais energia. Ela exige que Jack a adore como um Deus. 
Essa é a mais completa atualização do mito gnóstico do Demiurgo: uma divindade enlouquecida que não nos ama, nos explora e ainda exige devoção.
  

Ficha Técnica 


Título: Oblivion
Diretor: Joseph Kosinski
Roteiro:  Joseph Kosinski, Michael Arndt
Elenco:  Tom Cruise, Morgan Freeman, Olga Kurylenko, Melissa Leo, Andrea Riseborough
Produção: Relativity Media, Universal Pictures
Distribuição: Universal International Pictures
Ano: 2013
País: EUA

Postagens Relacionadas