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sexta-feira, novembro 15, 2024

'A Besta': somos como atores em um fundo verde contracenando com o vazio


Um amor que não consegue se consumar através dos tempos. Um romance interdimensional condenado a repetir o mesmo erro, sob roupagens diferentes. Um casal prisioneiro naquilo que o budismo chama de “Roda do Samsara”: o ciclo vicioso de lágrimas e sofrimento das sucessivas encarnações. Vivemos no esquecimento de quem já fomos, cuja melhor metáfora é a do ator atuando num fundo verde sendo dirigidos por uma voz fora do plano que vai nos descrevendo os monstros e os perigos para atuarmos com o vazio. Essa é a metáfora do diretor francês Bertrand Bonello no audacioso sci-fi  " A Besta” (“La Bête”, 2023) sobre um romance preso em um loop entre 1910, 2014 e 2044 – o mundo futuro de trabalhos precarizados. Para ter uma melhor oportunidade, deve-se se submeter ao “processo de purificação”: deletar os traumas e emoções das outras vidas que carregamos inconscientemente. Para nos tornar tão assertivos quanto uma IA.  

Há algum tempo houve uma polêmica dentro do movimento espírita kardecista sobre adeptos apoiarem a validade da chamada Terapia das Vidas Passadas. Para um grupo de espíritas, a terapia seria válida para auxiliar no processo de aprendizagem nas sucessivas encarnações.

O argumento seria mais ou menos o seguinte: se a reencarnação é a forma de espírito passar por sucessivas provas e expiações para aprender e evoluir através do acerto e erro, o esquecimento de nossas versões passadas não ajudaria em nada esse processo. No mínimo, dificultaria e tornaria mais lenta a aprendizagem.

Ao contrário, se tivermos a chance de relembrarmos quem fomos, nossos erros, traumas e vícios, então a Terapia das Vidas Passadas seria uma técnica bem-vinda para evitarmos a repetição dos mesmos erros ad eternum. E acelerar as etapas dessa, por assim dizer, queima do carma.

Claro que os doutrinários do kardecismo torceram o nariz. Fortemente influenciado pelo positivismo contiano do século XIX, o kardecismo não aceita alterar um mecanismo que está dado desde sempre: se Deus nos deu o dom do esquecimento, é melhor não querermos brincar de Deus mudando as Suas regras.

A melhor metáfora dessa questão seria nos imaginar como atores atuando em um fundo verde sendo dirigidos por uma voz fora do plano que vai nos descrevendo os monstros e os perigos para atuarmos com o vazio – para depois as imagens em CGI serem acrescentadas ao fundo na pós-produção. As sucessivas vidas seriam como isso: a sensação de que grandes forças nos direcionam como fantoches. Sem consciência de nada, acabamos prisioneiros de um ciclo vicioso de lágrimas e sofrimentos.



Essa é a perfeita metáfora criada pelo diretor francês Bertrand Bonello na ficção científica extremamente ambiciosa A Besta (La Bête, 2023).

O prólogo mostra uma filmagem de tela verde na qual Gabrielle Monnier (Léa Seydoux) recebe instruções de uma presença fora da câmera e, com profissionalismo especializado, se prepara para contracenar com o vazio enfrentando um monstro imaginário. O efeito é estranho, liricamente engraçado, estranhamente sensual e muito triste. Bonello sustenta esse tom perturbador ao longo de todo o filme – uma espécie de romance interdimensional no qual acompanhamos uma relação amorosa de Gabrielle em três períodos diferentes: uma célebre pianista e beleza da sociedade em Paris, 1910 (tendo como fundo a histórica enchente que submergiu a cidade); uma aspirante a modelo e atriz em Los Angeles em 2014. 

E em 2044, ela é uma mulher que vive em uma sociedade controlada por IA na qual ser totalmente humano significa ter baixo status em um mundo que aspira ser desapaixonado, sem emoção e o mais próximo possível do ideal da máquina.

Na verdade, a IA alterou drasticamente o mundo do trabalho e a sociedade: tornou a maioria dos postos de trabalho obsoletos, restando para a maioria nada mais do que trabalhos precarizados, os “bullshit Jobs”.

Para aspirar a carreiras promissoras, o candidato deve se submeter a um processo de “purificação psíquica” assistido por uma IA – expurgar toda a bagagem emocional das encarnações anteriores. 

A Terapia das Vidas Passadas queria relembrar para simbolizar (entender, aprender). Nesse futuro as IA apena querem deletar o passado para evitar que as emoções prejudiquem a produtividade. Para tornar o psiquismo humano uma página em branco pronta para ser impresso um novo script.



O Filme

 Em 1910, em uma visão extravagantemente ornamental de Paris filmada em um suntuoso 35mm, Gabrielle e Louis (George McKay) estão à beira de um grande caso. Mas, atormentada por premonições de desastre, Gabrielle não consegue se comprometer. Enquanto isso, uma grande inundação ameaça engolir a cidade e seus amantes frustrados.

Na versão de 2014 Gabrielle é uma aspirante a modelo e atriz em Los Angeles, fazendo um bico de caseira de uma casa modernista de luxo sem achar trabalho na sua área. Passa o tempo olhando a tela do computador ou dançando sozinha em um clube. 

Louis agora é um “incel”, vitimizando-se pelo senso de injustiça e vagando pelas ruas à noite em busca de situações que justifiquem suas queixas contra as mulheres. Mais uma vez, o encontro deles parece condenado a terminar em tragédia, quando Louis decide punir as mulheres do mundo. A começar por Gabrielle.  

Em 2044, Louis está passando pelo mesmo processo de entrevista de pré-purificação que Gabrielle, e ele aparece em uma boate nostálgica que se dedica à música e à moda de uma época diferente todas as noites - eles se encontram na noite de revival de 1972, e depois novamente na noite sobre 1963.

Uma voz desencarnada em uma agência de emprego assustadoramente vaga diz a ela que suas emoções a tornam inadequadas para trabalhar, e um processo de purificação que limpa as pessoas de seus sentimentos irritantes é recomendado. “Todos eles?” Gabrielle pergunta nervosamente. Ela foi pianista e atriz em vidas anteriores, então instintivamente valoriza sua capacidade criativa e de agir autenticamente.



Gabrielle opta por um processo menos intrusivo, que envolve uma imersão em uma banheira de gosma preta e uma picada de agulha no ouvido que fará o escaneamento das suas vidas passadas para contar a origem de suas tristezas.

A sequência de Los Angeles tem a vibração de um filme de terror ao estilo daqueles que envolvem câmeras de vigilância. O laptop de Gabrielle está infectado por um vírus que gera dezenas de pop-ups desagradáveis, incluindo um com uma cartomante – a versão online da sensitiva que aparece na Paris de 1910. Toda a conversa do filme sobre sonhos e as pessoas que existem dentro deles aumentam a atmosfera de terror de Gabrielle.

Bonello nunca teve vergonha de mostrar suas influências. Aqui, David Lynch é a influência explícita. Em Los Angeles, o cabelo loiro de Gabrielle lembra Naomi Watts em Mulholland Drive, além de também derramar uma lágrima enquanto ouve um cover de Roy Orbison. Depois, há um clímax de cortina vermelha no qual há uma revelação estridente não muito diferente do final de Twin Peaks: The Return.



A Roda do Samsara – Alerta de Spoilers à frente

A Besta explora o absurdo da condição humana como a própria condição de Sísifo que teria um paralelo com os ciclos de morte e renascimentos descritos pelo Budismo Tântrico como a “Roda do Samsara” – o renascimento como um ciclo sem fim que sempre se renova, numa sequência de momentos conscientes fragmentados em distrações, anseios e emoções destrutivas que apenas reforçam a inconsciência e o carma.

Ao longo as diferentes versões de Gabrielle e Louis percebemos recorrências de cenas que se repetem em diferentes roupagens – as cenas com uma pomba, a vidente/cartomante, as mortes trágicas de Gabrielle sempre envolvendo o elemento água etc.

É a referência da grande metáfora da atuação do ator em um cenário verde – somos obrigados a contracenar com o vazio enquanto só o diretor da cena tem a noção do todo na pós-produção.

Porém, tudo complica ainda mais com a entrada da IA. Gabrielle é recusada em seu processo seletivo pela prova da “purificação psíquica” – ela é arredia demais para perder o seu senso de criatividade e autonomia.

 Enquanto Louis é promovido para o Ministério da Justiça – entidade do Estado que aplica a “purificação”. Ou seja, mais uma vez estão condenados à não consumação de um romance impossível através diferentes versões deles mesmos.

Ironicamente no processo de purificação, Louis testemunha as imagens das suas versões do passado reveladas pela IA. Louis então declara seu desejo a Gabrielle de, finalmente, consumarem seu amor. 

Mas essa declaração soa tão vazia quanto os remakes dos anos 1960 e 70 da casa noturna de 2044 – afinal Louis foi bem-sucedido no processo de purificação psíquica. Para o horror de Gabrielle, o amor de Louis tornou-se tão vazio quanto uma refilmagem ou um remake nostálgico.

Essa é a verdadeira “besta” do filme: a IA e todo avanço tecnológico apenas apertaram ainda mais os nós que nos prendem na Roda do Samsara.   


 

 

Ficha Técnica 

Título: A Besta

Diretor: Bertrand  Bonello

Roteiro: Bertrand Bonello, Guillaume Bréaud, Benjamin Charbit

Elenco: Léa SeydouxGeorge MacKayGuslagie Malanda

Produção: Les Films du Bérlier, My New Picture

Distribuição:  Janus Films

Ano: 2023

País: França, Canadá

 

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