Pages

sábado, julho 06, 2024

A modernidade, o vampiro e o patriarcado no filme 'Le Vourdalak'



O patriarca de uma família no interior da Sérvia volta do campo de batalha. Mas ele volta transformado. Tornou-se um “Voudarlak”. Um vampiro com uma peculiaridade: quer o sangue apenas dos parentes próximos e amigos íntimos. Baseado no conto de escritor russo Aleksei Tolstói (o “outro Tolstói”), o filme francês “Le Vourdalak” (2023) vai às raízes da mitologia do vampiro, muito antes do cânone criado por “Drácula” de Bram Stoker. Um enviado da corte francesa é roubado e pede ajuda a uma estranha família cujo patriarca está fora, combatendo os turcos. Uma fábula gótica orgulhosamente antiquada e com um sutil humor sombrio. Baseado em um conto que faz uma dupla crítica metafórica: o fim da velha ordem monárquica com a modernidade representada pelo vampiro; e a ordem patriarcal: primeiro o escraviza, para depois devorá-lo.

Em seu texto “Experiência e Pobreza”, o filósofo alemão Walter Benjamin descrevia a Primeira Guerra Mundial como uma das experiências mais monstruosas da História: a guerra de trincheiras. Mas a perplexidade do filósofo era outra: os combatentes voltaram mudos para casa. Não tinham nada para contar, nenhuma experiência ou lição para passar aos mais jovens. Voltaram vivos, mas cognitivamente mortos.

Para Benjamin, era a síntese da experiência moderna do “estado de choque”. Assim como o vidro, tão celebrado pela arquitetura modernista: um material duro e liso em que nada se fixa.

A fábula gótica orgulhosamente antiquada e sombriamente engraçada Le Vourdalak (2023) é uma adaptação do conto do escritor russo Alexei Tolstói (conhecido como “o outro Tolstói”) “La Famile du Vourdalak”, obra anterior ao clássico “Drácula” de Bram Stoker que deu início à mitologia do vampiro. Também a estreia em longas do cineasta Adrian Beau. 

Nas mãos de Beau, o conto se expande com uma sensibilidade cômica e sombria, para temas de opressão da ordem patriarcal (classismo, sexismo, homofobia) tendo uma clássica história de vampiro como fundo. Porém, há algo além na figura do patriarca que voltou morto do campo de batalha contra os turcos. Mas voltou como um morto-vivo. Um vampiro que não quer sugar o sangue de qualquer um. Quer apenas o sangue daqueles que mais ama.

Perdido em algum lugar da Sérvia, a estória parece ser uma fábula da modernidade, fazendo lembrar da séria advertência de Benjamin de como a experiência da modernidade se assemelha cada vez mais à experiência de um campo de batalha.



Principalmente pela dicotomia que a narrativa trabalha entre uma família rural entregue ao seu próprio destino sombrio e um visitante perdido que veio da civilização: a corte francesa. Um marquês que parece ter chegado no pior momento da história daquela família numa Europa Oriental devastada pela guerra.

Seria a mitologia do vampiro uma mitologia moderna? A metáfora de como a experiência da vida moderna no transforma em mortos-vivos sem conseguir reter experiência e sabedoria? E pior: como uma doença viralmente transmissível através do sangue.

Toda a etiqueta, educação e rudimentos do racionalismo cartesiano que o marquês até demonstra (principalmente na passagem em que tenta traçar a diferença entre cães e o pensamento humano) é impotente diante do abominável destino que o patriarca morto-vivo traçou para todos.

O conto de Tolstói baseia-se em lendas folclóricas russas – “vourdalak”, expressão russa que quer dizer “vampiro”. Mas ganha um outro significado nas mãos de um escritor que se situa na inauguração da vida moderna do século XIX.

O Filme

Depois de perder sua escolta e tudo o que tinha graças a um ataque repentino no campo francês, o enviado do Rei, Marquês Jacques Antoine Saturnin d'Urfe, está desesperado para encontrar refúgio. Ele tem a sorte de encontrar um em uma casa de propriedade de um velho patriarca chamado Gorcha. 



A casa é úmida e escura, ocupada por um clã mais estranho ainda: os filhos de Gorcha, Jegor (Grégoire Colin), Vlad (Gabriel Pavie) e Piotr (Vassili Schneider), a esposa de Jegor, Anja (Claire Duburcq), e a filha de Gorcha, Sdenka (Ariane Labed), pela qual o Marquês d'Urfé fica visivelmente atraído. 

Recebem o Marquês d'Urfé e o alimentam com várias tigelas de um mingau de origem duvidosa. Aparentemente, Gorcha foi embora para lutar contra os turcos. Jegor também, mas retornou para a família. Enquanto o velho Jegor deixou uma mensagem que se em seis dias não retornasse, era para ser dado como morto.

O Marquês percebe uma dinâmica familiar tensa: Sdenka caiu em desgraça ao se entregar ao primeiro forasteiro que viu, enquanto seu irmão Piotr é um travesti constantemente recriminado pelo irmão mais velho Jegor. E a esposa Anja, silenciosa e conformada.

A família reúne-se para uma refeição ao ar livre no sexto dia definido pelo velho patriarca. Todos começam a encarar a sua morte quando o inesperado acontece: Gorcha retorna, cansado... e até demais – é praticamente um cadáver cadavérico ambulante. Gorcha agora é claramente, aterrorizantemente não humano — é irresistivelmente engraçado. Ele viverá o resto de seus dias como um Vourdalak, uma criatura vampira que terá prazer em devorar seus parentes.

Mesmo pelos padrões de fantasia, a situação é engraçadamente ridícula: você não vê um vampiro com aparência de cadáver muito reanimado sentado casualmente à mesa. A família ao seu redor está compreensivelmente perplexa, exceto Jegor, que está agindo como se nada tivesse acontecido. Jegor está negando a situação atual de seu pai e age como se nada tivesse acontecendo. 

Seu pequeno neto Vlad é o único que dá risada: acha a aparência do avô engraçada – que aproveita para declarar que eu neto é o ser mais amado por ele. Será o modus operandi do Vourdalak: ele devora aqueles que mais ama – parentes próximos ou amigos íntimos. 



A ironia do filme é que o vampiro somente pode entrar numa casa se for convidado. Então, como negar a entrada do patriarca da família, exausto e heroico por ter derrotado os turcos e trazendo a cabeça decepada do líder inimigo?

Este é um filme que não tem nenhum remorso por mostrar um garotinho sendo praticamente mastigado por seu avô vampiro em uma das cenas mais sangrentas do ano – o pobre neto amado será a primeira vítima do vampiro que se esgueira também nos sonhos de todos quando dormem.

Todos estão condenados. Então o Marquês tentará salvar a amada Svenka, tirá-la da pobreza e do horror e levá-la para a vida de festas e danças da corte francesa. Quer mostrar para ela que “o mundo é muito maior do que ela imagina”. 



É engraçado ver o Marquês estoicamente tentando manter o verniz civilizatório num mundo tão cru, brutal e de escassos diálogos. Longe das sutilezas da corte francesa, o Marquês está mal equipado para processar as peculiaridades ásperas de seus anfitriões e perplexo com sua subserviência mansa aos comandos do vampiro Gorcha. 

Embora a família saiba no que seu pai se tornou, estão presos pelo amor e pelo dever filial. Por isso, parecem incapazes de fugir de seus destinos terríveis.

Esse é um dos comentários críticos em Le Vourdalak: o patriarcado primeiro escraviza, para depois devorá-lo.

Mas também uma metáfora daquilo que virá depois da ordem política e social monárquica a qual o Marquês representa como a civilização: a modernidade dura e fria como o vidro.

Aleksei Tolstói foi um premiado escritor soviético, tornando esse conto uma poderosa crítica a ordem patriarcal e família, célula simbólica na qual o Capitalismo se ergueu.

Uma curiosidade final é que, certamente, essa obra de Tolstói certamente fez parte das pesquisas de Bram Stoker para escrever sua obra “Drácula” em 1897. Tanto no filme como no conto, a morte do Vourdalak, tal como delineado pela mitologia, é semelhante ao fim do Conde Drácula, algo que nos permite elucubrar que Stoker de alguma maneira teve acesso ao conto enquanto pesquisava o desenvolvimento do romance que se tornou definidor para a figura dos vampiros na cultura.


 

Ficha Técnica

 

Título: Le Vourdalak

Diretor:  Adrian Beau

Roteiro: Adrien Beau, Hadrien Bouvier, Aleksei Tolstoy

Elenco: Kacey Mottet Klein, Ariane Labed, Grégoire Colin

Produção: Les Films du Bal, Amazon Prime Video

Distribuição: Oscilloscope, MUBI

Ano: 2023

País: França

 

Postagens Relacionadas

 

O Mito do Vampiro Chega à Maturidade no filme "Deixe Ela Entrar"

 

 
Pinochet, vampiros e teratopolítica no filme 'O Conde'

 

 

Obsessão pela felicidade e positividade deixa mundo vulnerável a Drácula no filme 'Renfield'

 

 

 

Série 'Post Mortem: Ninguém Morre em Skarnes': o mito do vampiro muito além do Mal