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sexta-feira, junho 28, 2024

Uma guerrilha epistemológica entre a mesa e o fogão no filme 'Histórias de Cozinha'


Cozinha é um lugar alquímico: ingredientes são mixados para transmutar em algo totalmente outro. Um espaço confessional onde conversas e conexões acontecem. Como, então, transformar esse espaço num objeto de observação científica: um observador “neutro” do alto de um cadeirão observando movimentos e ergonomia doméstica para tabular os dados em rígidos modelos matemáticos numa pesquisa industrial da década de 1950. Esse é o filme escandinavo “Histórias de Cozinha” (Salmer fra kjøkkenet, 2003). Uma espécie de rali científico levado com um humor sutil, no qual o observador estoicamente tenta manter a neutralidade para não comprometer os dados que coleta, enquanto o observado conspira num tipo de guerrilha epistemológica para sabotar o experimento.

 

Cozinhas são lugares em que partes, fragmentos ou quantidades se transformam num todo: onde os ingredientes são mixados em diversas maneiras (assado, frito, grelhado, guisado etc.) para se transformar em algo totalmente novo.

Por isso podemos considerar a cozinha o coração de uma casa. Lugar em que conversas triviais e novas conexões acontecem. É onde familiares e amigos se encontram e comidas e bebidas mediam histórias, conversas jogadas fora, confissões, revelações, jogos e novidades. Cozinhas são lugares de alegrias, mas também de lágrimas, preocupações, apoio e amor. Diferente da sala de estar, local oficial das máscaras e papéis sociais, é a cozinha é um espaço confessional.

Por isso, é surpreendente assistirmos a um filme que transforma a cozinha no espaço de debate epistemológico sobre a ciência positivista à serviço da indústria e do mercado. É o filme escandinavo Histórias de Cozinha (Salmer fra kjøkkenet, 2003) do diretor Bent Hamer que de forma sensível, lenta e, às vezes surreal, descreve a desconstrução de um experimento científico em larga escala. Para pesquisar cozinhas e seus usuários.

Na década de 1950, o governo sueco patrocinou um projeto de observação em massa no qual os hábitos de cozinha das donas de casa suecas foram minuciosamente examinados para ver se projetos e layouts mais racionais para essas áreas de preparação de alimentos poderiam ser concebidos – e entender como os indivíduos poderiam ser induzidos a viver suas vidas de forma mais lógica.

O pós-guerra já havia abandonado a utopia máquina das vanguardas modernas como as da Escola Bauhaus, da República de Weimar. Como, por exemplo, as ideias do arquiteto Walter Gropius nas décadas de 1920-30 – projetos de conjuntos habitacionais concebidos para serem “máquinas de morar”: habitações minimalistas voltadas estritamente para a funcionalidade.

A Segunda Guerra Mundial passou e esse ideal foi substituído pelo decorativo kitsch da sociedade de consumo. Mas a Suécia passou a Segunda Guerra Mundial apenas como observadora, neutra – ao contrário da vizinha Noruega, palco de combates importantes entre Aliados e nazistas.

Talvez por isso, manteve o espírito maquínico e funcional da vanguarda moderna como estivesse parada no tempo.



Hamer vai ainda mais além e imagina os suecos persuadindo seus vizinhos da Noruega a participar de um estudo da vida na cozinha, dessa vez focada em homens solteiros, por causa de seu excedente estatístico desse contingente populacional. 

Eles então enviam um comboio de pesquisadores dirigindo através da fronteira, cada um rebocando uma pequena casa sobre rodas, que estacionarão do lado de fora da casa de cada sujeito-alvo e depois passarão o dia em sua cozinha: do alto de um cadeirão parecido com aqueles dos árbitros dos jogos de tênis, o pesquisador será observador imparcial, mapeando os movimentos, gravando, mensurando e preenchendo páginas e páginas de tabelas e gráficos. Mas jamais se envolvendo com o anfitrião. 

Histórias de Cozinha discute essencialmente o mito da neutralidade na Ciência ou mesmo nas próprias relações sociais. O filme é uma espécie de rali científico no qual o observador estoicamente tenta manter a neutralidade e distância para não comprometer os dados que coleta, enquanto o observado conspira num tipo de guerrilha epistemológica para sabotar o experimento. 

Mas também como essa pesquisa não ocorre no vácuo, mas dentro da macro-escala das diferenças culturais entre Suécia e Noruega – a disparidade entre uma Suécia rica e sofisticada que estuda um país pobre, rural; a arrogância da perspectiva do observador sueco que acreditam que os resultados da pesquisa feita da Noruega poderiam ser depois aplicados em qualquer lugar do mundo; e a neutralidade histórica e política da Suécia como fator que tornaria mais eficiente a observação neutra da pesquisa.

O Filme

Histórias de Cozinha abre com imagens documentais de donas de casa atreladas a fios e sensores enquanto trabalham na cozinha. O governo está decidido a tornar a vida do povo mais fácil através de design funcional de cozinhas e eletrodomésticos – o projeto de uma cozinha do futuro ergonomicamente mais lógica.



A pesquisa avança para a próxima etapa: a busca da cozinha ergonomicamente ideal para homens solitários. É quando conhecemos um humilde burocrata chamado Folke (Tomas Norstrom) como um dos pesquisadores-observadores que atravessam discretamente a fronteira norueguesa num comboio de carros esverdeados padronizados. Cada um carregando suas casas sobre rodas e o cadeirão amarrado no teto.

Os motoristas se preocupam em ter que mudar para o lado direito da estrada (na época, os suecos, como os ingleses, ainda dirigiam no lado esquerdo da pista) enquanto recebem suas atribuições. 

De cara o nosso pesquisador-observador Folke enfrenta um problema com seu “objeto” de pesquisa: Isak (Joachim Calmyer), mudou de ideia e não quer fazer parte do estudo. Tranca-se em casa e recusa-se a receber Folke.

O chefe de Folke intercede e Isak relutantemente concorda em deixar o observador entrar em sua casa. Folke obedientemente acomoda sua cadeira alta na cozinha e começa seus deveres de observador, marcando todos os movimentos de Isak em mapas e tabelas. 

Isak, no entanto, começa a montar uma espécie de guerrilha e começa a fazer coisas silenciosamente para irritar seu convidado indesejado - deixando a torneira pingando, apagando as luzes e, o mais importante, cozinhando em seu quarto para evitar o olhar atento de Folke. 

Isak chega ao cúmulo de, do seu quarto através de um buraco feito no chão, observa secretamente o observador. Invertendo e subvertendo os papéis.

A dupla continua seu relacionamento mudo - o instituto que administra o estudo exige que o observador não fale ou interaja com o objeto de estudo - até que, um dia, Isak fique sem tabaco. Folke faz a primeira abertura de paz e joga um pacote de tabaco de cachimbo na mesa. Isak logo retribui e as primeiras palavras passam entre eles: "Hora do café", diz Isak enquanto coloca o bule de café na mesa. Folke desce de sua cadeira alta, bebe o café com gratidão e diz: "Obrigado".



Lentamente as barreiras começam a cair e o germe de uma amizade toma forma. Enquanto isso, o amigo que dirige tratores de Isak, Grant (Bjorn Floberg), fica cada vez mais preocupado que ele esteja perdendo seu melhor amigo para Folke. Enquanto o chefe de Folke começa a suspeitar que a neutralidade científica está sendo sabotada.

Uma crítica à ciência positivista

Histórias de Cozinha é um filme sem muito diálogo e praticamente nenhuma ação, no sentido tradicional. Mas, desde o início, capta a atenção com seu humor elegante, sagacidade engraçada e uma quantidade incrível de química entre os personagens principais, Isak e Folke. 



O ritmo de sua existência diária é lento e relaxado e, à medida que o gelo quebra entre eles, uma amizade calorosa e carinhosa se constrói. 

Histórias de Cozinha também é uma crítica à ciência positivista (“a única coisa positiva que devo fazer é pedir demissão”, diz a certa altura outro pesquisador que se embriagou com seu “objeto”) que usa a observação, em vez da interação, como fonte de mudança social. 

"Como alguém pode saber alguma coisa sobre o outro, se não falar com ele?" pergunta a um dos pesquisadores desencantados que não conseguiu aceitar a restrição contra o contato humano normal. 

À medida que seu tempo com Isak se estende, Folke percebe a veracidade do que disse o colega de pesquisa, e começa sua própria rebelião sutil contra o estudo. Construindo uma relação de amizade: dois homens solitários de países tão diferentes que começam a construir fortes laços de amizade.

Histórias de Cozinha é um filme com uma importante questão de fundo: certamente pela ansiedade das Ciências Sociais serem reconhecidas como “científicas” apegam-se ao rigor matemático como signo da “neutralidade científica”. Até mais do que a Ciências Naturais, nas quais os dados e números são apenas o ponto de partida para a construção de uma teoria.

Principalmente quando sabemos que foi no campo das chamadas ciências exatas que surgiu a maior desconstrução da neutralidade do observador ao seu objeto: a física quântica e o “princípio da incerteza” que colocou em xeque a relação clássica sujeito-objeto na Ciência.

Grande sacada do diretor/roteirista Bent Hamer foi ambientar esse drama epistemológico numa cozinha: o lugar dá casa onde a neutralidade dos papéis sociais e as diferenças são suspensas no bate-papo confessional. 


 

Ficha Técnica

 

Título: Histórias de Cozinha

Diretor:  Bent Hamer

Roteiro:  Bent Hamer, Jörgen Bergmark

Elenco: Tomas Norström, Joachim CalmeyerBjørn Floberg

Produção: Bulbul Film, Bob Film, SF Norge

Distribuição: IFC Films

Ano: 2003

País: Suécia, Noruega

 

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