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quinta-feira, janeiro 20, 2022

O medo e a culpa alimentam o terror demasiado humano no filme 'O Páramo'



Chegamos a esse mundo fisicamente dependentes dos nossos pais e cercados por terrores reais e imaginários que reforçam os nossos laços familiares, tanto pelo amor, medo e culpa. Essa é a matriz edipiana que será replicada da família até a sociedade, na qual o medo se transforma em matéria-prima da dominação. O terror espanhol Netflix “O Páramo” (El Páramo, 2021) re-encena esse drama atávico ao acompanharmos uma pequena família isolada em uma extensa planície desértica, vivendo em exílio para fugir dos horrores da guerra. Mas a distância não é o suficiente para o horror deixar de acompanhá-los. Um horror invisível de alguma besta que está à espreita. Que parece surgir de algo demasiado humano que alimenta todo o terror.

Em Freud, o drama do medo e da culpa estão lá na resolução do drama edipiano, o divisor entre Natureza e Cultura, a sensação “oceânica” de prazer do vínculo e comunhão com a Mãe e o dever e a renúncia ao prazer da ordem social do Pai. O primeiro medo (o da fragilidade física da criança diante do entorno ameaçador) é logo substituído pelo medo da perda do afeto materno. Para depois se transformar em culpa na ordem social do Pai: o medo de ser descoberto cometendo algum “erro” e perder o afeto do Pai. Assim como perdeu o da Mãe no passado.

Medo e culpa são a matéria-prima de toda dominação política. É um consenso que vai de um lado a outro do espectro que vai da ciência política (Hobbes, Canetti) à psicanálise da cultura (Freud, Fritz Haug, Escola de Frankfurt etc.). Porém, com um ingrediente a mais: o isolamento propiciado pela sociedade de massas com as suas multidões solitárias. Isolamento e a perda dos laços sociais primários fariam o entorno ficar ainda mais enigmático e assustador. O que inconscientemente se constituiria numa re-encenação do drama infantil da dissolução do Édipo – portanto, a dominação política estaria na relação direta com a crescente infantilização das massas.

O terror espanhol O Páramo (El Páramo, 2021), a estreia no cinema do diretor David Casademunt, faz um tour de force simbólico desse drama psicossocial encenado em uma pequena família isolada em uma casa perdida no meio do nada (no “páramo”, uma enorme planície desértica). Na verdade, vivendo em exílio, tentando fugir dos horrores da guerra na Espanha no século XIX.

O Páramo é mais uma produção da era da pandemia global. Com um elenco pequeno (pai, mãe e filho), a narrativa parece refletir o próprio isolamento imposto pelos sucessivos lockdowns pelo planeta. 

É um filme de horror invisível que nem sempre é fácil pelo tipo de narração com tempos extremamente longos: na maior parte do tempo nos encontramos esperando por mais ação e um pouco mais de terror explícito, de modo a estar mais envolvido no que está acontecendo com os personagens. 

No entanto, a marcante a atuação dos dois protagonistas – uma mãe e seu filho, o pequeno Diego – logo conseguem transmitir o profundo sentimento de terror que ambos estão sentindo, isolados em um campo deserto e caçados por uma fera que talvez represente os seus próprios medos interiores projetados em um ser, real ou imaginário, que estaria à espreita.



Algo alimenta o medo daqueles personagens isolados numa grande extensão de devastação, mantendo o espectador no fio da navalha entre a realidade e o imaginário - a dúvida se atmosfera claustrofóbica que pesa em cada enquadramento é na verdade um drama psíquico familiar capaz de criar bestas e demônios. 

Dessa maneira O Páramo lembra o tipo de terror invisível de filmes como A Bruxa (2015) ou mesmo o horror no distante expressionismo alemão de Fritz Lang, Robert Wiener e Murnau no qual víamos o horror muito mais no rosto dos protagonistas, sugerindo alguma coisa ameaçadora que estava sempre fora do plano.

O Páramo é o terror demasiado humano. O combustível de todo o terror que envolve aquela pequena família parece vir da própria mente. Ou melhor, de um drama psíquico e atávico que jamais conseguimos redimir e que sempre retorna, apenas substituindo os personagens que cumprirão os velhos papéis. Freud tinha razão: o adulto não passaria de uma criança crescida.




O Filme

A história começa na Espanha do século XIX. Somos informados que depois de uma série de guerras que devastaram o país, muitas pessoas preferiram se isolar no vasto campo, onde a violência e o horror não podem alcançá-los. 

Conhecemos uma família que, portanto, leva uma vida de isolamento e privação: a mãe Lucía (Inma Cuesta), o pai rude e misterioso Salvador (Roberto Álamo) e o pequeno Diego (Asier Flores). A família cria coelhos para o próprio sustento e passa as noites escuras contando histórias uns para os outros para passar o tempo. Uma delas é sobre a “besta”, criatura que persegue suas vítimas quando percebe sua fraqueza. 

Diego é nossos olhos e ouvidos. Ele testemunha a ideia da besta se manifestar lentamente dentro de seus próprios pais. Salvador é um pai de poucas palavras e quer que o filho aprenda a atirar com uma arma, lhe dando como presente de aniversário um rifle com seu nome gravado. A mãe Lucía parece a princípio menos assustada, mais controlada, e quer guiar Diego por esse mundo desconhecido com um toque mais gentil e menos machista. Diego continua atento a tudo, enfiando a cabeça nos espaços silenciosos de seus pais, tentando entender como, apesar de tudo, eles se mantêm juntos. 




Um dia, ao longo do rio perto da sua pequena fazenda, cercada por espantalhos que delimitam a área supostamente segura, eles veem chegar um barco, no qual veem um homem (Victor Benjumea) que claramente tentou cometer suicídio. Salvador tenta ajudá-lo, mas na primeira oportunidade o estranho tira sua vida para sempre.

Depois de encontrar uma foto de sua família entre seus pertences, Salvador decide ir à cidade com o corpo do suicida, para devolvê-lo aos seus entes queridos. Desta forma ele deixará sua esposa e seu filho, que logo começarão a sentir a presença de uma criatura estranha, tanto dentro das paredes da casa quanto na escuridão do campo. 

O mais longe que Diego pode ir da casa é quando precisa usar o banheiro à noite, com sua mãe o acompanhando com um rifle engatilhado. O terreno aberto e tranquilo ao redor de sua casa os ameaça; vistas sinistras aumentam o desconforto. 

Além disso, a condição mental de Lucía parece estar cada vez mais se deteriorando com a paranoia, deixando o pequeno Diego com a responsabilidade de cuidar de sua mãe e tentar afastar a terrível criatura.




O mistério e a ambiguidade têm um grande poder na narrativa, e o diretor David Casademunt cria uma atmosfera rica para este roteiro que co-escreveu com Martí Lucas e Fran Menchón. O Páramo revela-se uma bela produção com elementos mínimos, com o diretor de fotografia Isaac Vila representando a casa em cinza geral com pinceladas distintas de luz das velas e do luar, com tomadas amplas estáticas para nos dar a visão completa da casa. 

Medo e culpa

Por um longo tempo não há sequer uma noção de como a fera se parece – e na verdade, a história nem precisa desse terror explícito. 

Como esse humilde blogueiro se referiu acima, no filme o menino Diego são os nossos olhos e ouvidos. O medo da perda do seu pai, da própria mãe (principalmente da sua sanidade), o medo da guerra e, por fim, o medo da “besta” é a mediação simbólica entre o drama interno familiar e o externo, representado pelo páramo desolado e ameaçador.

Há uma relação correspondente entre o papel dos pais nas crianças e o papel da sociedade no adulto – o medo da criança em perder o amor dos pais corresponderá mais tarde ao sentimento de culpa em não se adaptar mimeticamente às autoridades, sejam elas familiares ou da sociedade. Culpa, a variedade tópica do medo.




A guerra e a “besta” são ameaças simbólicas que mantêm a criança sob a autoridade materna e a sociedade sob a autoridade do Estado. E o mal-estar freudiano está presente, figurado por aquele estranho suicida que cruza o caminho da família – poderíamos questionar se Salvador não encontrou naquele acontecimento a oportunidade para também cair fora. Se não da própria vida, pelo menos abandonando a família.

Cuja responsabilidade é deixada tanto para Lucía (tornar Diego um homem) como para o próprio menino (“cuide da sua mãe!”, exorta Salvador ao deixar a fazenda com o corpo do desconhecido).

Entre o medo e o sentimento de culpa de perder o afeto da mãe, Diego se debate entre o enfrentamento da “besta” e a conquista da sua autonomia.

O Páramo faz a encenação simbólica desse drama atávico que começa na infância e se perpetua na sociedade: medo e culpa como base pulsional da dominação familiar, social e política. E o isolamento como o contexto que reforça ainda mais o medo e culpa infantis que permanece na vida adulta.                                                                                         

 

Ficha Técnica 


Título: O Páramo

Diretor: David Casademunt

Roteiro:  David Casademunt, Martí Lucas, Fran Menchón

Elenco:  Inman Cuesta, Roberto Álamo, Asier Flores, Victor Benjumea

Produção: Rodar y Rodar Cine y Televisión, Fitzcarraldo Films

Distribuição: Netflix

Ano: 2021

País: Espanha

 

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