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quarta-feira, dezembro 22, 2021

Extrema-direita é a tradução política da ética sobrevivencialista em 'O Declínio'




Antoine vive a obsessão de salvar a si mesmo e sua família de algum tipo de catástrofe que virá: crise econômica, invasão de refugiados climáticos, tirania de algum governo totalitário comunista ou do “Estado profundo” etc. Assiste a um canal de um youtuber ultradireitista que faz vídeos que são tutoriais de técnicas de sobrevivência para uma futura catástrofe. Decide fazer um curso de final de semana com o youtuber em um remoto centro de treinamento nas montanhas geladas do Quebec com uma meia dúzia de participantes, todos armados até os dentes. Essa é a produção franco-canadense Netflix “O Declínio” ("Jusqu'au Déclin", 2020), que é mais do que um olhar irônico ao fetiche por armas e autodefesa. Mas, principalmente, como a atual extrema-direita tornou-se a tradução política da chamada “ética do sobrevivencialismo”, forma de resignação em relação futuro através do individualismo e despolitização.

Combine a Segunda Emenda à Constituição dos Estados Unidos com a ética sobrevivencialista no qual se baseia a cultura norte-americana nas últimas décadas e teremos uma combinação explosiva que resulta em seitas e religiões bizarras pipocando por todos os lados. Além do recente fenômeno político da ascensão da “direita alternativa” (alt-right), armada até os dentes à espera do confronto final que decidiria o destino entre a liberdade individual e uma ditadura comunista.

A Segunda Emenda protege o direito da população e policiais da garantia a legítima defesa, seja pelo porte de armas ou qualquer outro equipamento. E a ética sobrevivencialista vem da obsessão de que vivemos na iminência de alguma catástrofe – ecológica, energética, econômica, nuclear, militar ou de que um Estado profundo um dia irá cercear o nosso direito de ir e vir.

Mais do que a liberdade, a luta pela sobrevivência se torna um direito fundamental, criando uma visão de futuro dura e desesperançada, minimalista: para sobrevivermos, devemos substituir o desejável pelo possível. Para garantir que a nossa sociedade e estilo de vida sobrevivam aos ataques de um mundo que fatalmente se despedaçará.

Imagine então refugiados de catástrofes ambientais e de guerras tentando invadir nossas cidades e bairros. Pense nas consequências de um governo tirando nossos direitos numa situação de colapso econômico. Então, devemos reagir em legítima defesa dos nossos direitos mais básicos.

Esse é o horizonte cultural no qual se movimentam os protagonistas da produção franco-canadense Netflix O Declínio (Jusqu'au Déclin, 2020) cuja falsa pista da sequência de abertura no dá um vislumbre do que está por vir.

Antoine (Guillaume Laurin) acorda sua filha adormecida no meio da noite e diz a ela “está na hora”. Ela se veste rapidamente, pega sua bolsa de viagem e, junto com sua mãe, eles se movem silenciosamente para o carro e vão embora noite adentro. Mas, rapidamente, revela-se ser apenas um ensaio para uma família que se prepara para o eventual colapso da sociedade por meio de guerra, uma epidemia ou levante social. A família comemora o tempo recorde que gastaram entre a fuga e a chegada em um lugar seguro.



Somando-se à presunção da catástrofe climática da grande mídia e o pânico pandêmico da Covid-19, O Declínio mergulha nesse espírito de época atual em uma narrativa enxuta e brutal que acrescenta uma outra questão: poderemos nos unir para sobrevivermos a ameaças externas, mas será que poderemos nos salvar de nós mesmos?

O Declínio acompanha Antoine e sua obsessão em salvar a si mesmo e a família de algum tipo de catástrofe que fatalmente virá. É apenas uma questão de tempo. Tentando se especializar cada vez mais nas habilidades necessárias para sobreviver, inscreve-se numa espécie de workshop intensivo de técnicas avançadas de sobrevivência, liderado por um fundamentalista de direita que leva muito à sério a Segunda Emenda.

Embora tudo aconteça num lugar nevado e remoto na Província de Quebec, Canadá, fica claro que é um olhar irônico do fetiche norte-americano por armas e autodefesa – não é à toa que o filme foi bem-sucedido na Netflix, nos EUA.




E fica claro também que as armas poderiam eventualmente nos defender de algum agente externo (aceitando que toda a paranoia seja real). Porém, nenhuma estratégia de sobrevivência e autodefesa prevê como nos proteger de nós mesmos. 

Escapar da sociedade é uma coisa, mas da natureza humana é outra totalmente diferente.

O Filme

Antoine acompanha vídeos no YouTube que são verdadeiros tutoriais de técnicas de sobrevivência, no canal de um ultradireitista chamado Alain (Réal Bossé). Até que recebe o convite de última hora do próprio Alain para se juntar a uma espécie de campo de treinamento de sobrevivência na região montanhosa de Laurentian, Quebec.

Despede-se da esposa e filha e dirige-se para o ponto de encontro remoto designado. Chegando lá, é devidamente vendado e levado em um snowmobile para uma cabana em uma grande área de 500 acres no topo de uma colina, equipado devidamente para enfrentar qualquer apocalipse: amplos alojamentos, painéis solares, combustível armazenado, gado, estufa com uma horta, armadilhas de caça selvagem e outras armadilhas projetadas para repelir (ou matar) qualquer intruso humano – soldados de um possível governo totalitário ou os temidos refugiados de países distantes.

Lá, Antoine encontra os demais participantes do curso: François (Marc-André Grondin), Anna (Marilyn Castonguay) e Sebastien (Guillaume Cyr). Todos movidos pelos medos paranoicos do “Estado profundo”, imigrantes ilegais e regimes comunistas. Um maluco se destaca: é David (Marc Beaupré), um tipo paramilitar, ansioso demais por qualquer chance de autodefesa. Ele é facilmente superado pela cabeça fria Rachel (Marie-Evelyne Lessard), uma ex-militar de verdade, silenciosa e durona.




Alain conduz os visitantes por vários exercícios durante o curso do fim de semana, desde tarefas de manutenção até exercícios do tipo bootcamp. Logo, são convocados a manusear armas, incluindo explosivos. 

Porém, uma dessas tarefas dá terrivelmente errado: um dos participantes pisa em uma mina e vai pelos ares. Um acidente que passa a dividir as opiniões do grupo: uma parte defende que as autoridades policiais sejam chamadas, já que tudo foi apenas um acidente. Mas David (o ansioso miliciano) e o líder Alain não querem policiais naquele lugar que, diante do arsenal presente na propriedade, poderiam acusá-lo de homicídio culposo ou, o que é pior, parar na prisão por “terrorismo doméstico”.  

Rapidamente as tensões aumentam, até que a segunda metade do filme se torna um thriller de caçadores vs. caçados, com os dois grupos do acampamento perseguindo uns aos outros na paisagem árida nevada. E não vai faltar munição para isso...

A ética sobrevivencialista

Em um livro chamado “O Mínimo Eu – sobrevivência psíquica em tempos difíceis” (editora Brasiliense, 1986) o sociólogo norte-americano Christopher Lasch procurou entender por que, apesar de vivermos em uma época de confortos materiais desconhecidos em épocas passadas, vivemos obcecados por ideias de catástrofes iminentes.




A preocupação da sobrevivência passaria, então, a ser o traço proeminente na cultura atual. O tema teria entrado de forma tão profunda na cultura popular e no debate político que qualquer tema se apresentaria como uma questão de vida e de morte.

Para Lasch, o comportamento da vida cotidiana passa a assumir as características mais sinistras típicas de vivências em situações extremas, tais como as experiências relatadas em campos de concentração na Segunda Guerra Mundial: auto-distanciamento irônico, individualidade multiforme e anestesia emocional.

São traços psíquicos que motivariam a atual ética sobrevivencialista. Lasch descreveu o sobrevivencialismo como o refluxo de todos os movimentos libertários e contra-culturais dos anos 1960, além de um efeito deletério das tensões da ameaça nuclear na Guerra fria, a desindustrialização e desemprego nos EUA, levando à falência grandes cidades como Detroit e Nova York nos anos 1970.

Essa ética sobrevivencialista fixou-se fortemente na cultura popular (p. ex., basta vermos a letra emblemática música da era Disco, “Stayin’ Alive” dos Bee Gees), transformando-se numa forma inédita de resignação e conservadorismo – acabamos aceitando situações de extremo stress ou sofrimento psíquico, moral, material etc. em nome de uma ética que privilegia a resiliência como ferramenta de sobrevivência.

A presunção da catástrofre insuflada pela mídia cria um efeito cumulativo de nos deixar indiferentes e resignados em relação ao futuro, transferindo as preocupações públicas para a esfera privada, despolitizando qualquer discussão. Dessa maneira, Lasch caracterizava o sobrevivencialismo como uma estratégia de enfrentamento individual aos tempos difícieis.

Porém, o filme O Declínio revela a tradução política atual dessa ética pós-moderna: a forma como a atual encarnação da extrema-direita (a alt-right) apropriou-se do sobrevivencialismo como justifica da dureza psíquica da personalidade fascista: a única forma de sobrevivência nas relações assimétricas atuais (o fantasma de inimigos invisíveis ou virais) seria através do discurso da violência, armas e militarização da vida cotidiana.


 

Ficha Técnica 

Título: O Declínio

Diretor: Patrice Laliberté

Roteiro: Charles Dionne, Nicolas Krief e Patrice Laliberté

Elenco: Guillaume Laurin, Marie-Evelyne Lessard, Réal Bossé, Marc Beaupré, Guillaume Cyr

Produção: Couronne Nord

Distribuição:  Netflix

Ano: 2020

País: Canadá/França

 

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