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terça-feira, dezembro 07, 2021

'A disputa de Natal': documentário sobre o Natal 'alt-right' do passado que jamais existiu


Jeremy Morris acredita que tem uma missão: compartilhar o “espírito do Natal” com o maior número de pessoas possível. Por isso, todo ano transforma sua casa num enorme presépio com camelo, coral de 35 vozes, milhares de lâmpadas e inúmeras bugigangas festivas que atrai milhares de turistas. Nem que seja ao custo de uma batalha judicial (marcada pelo "lawfare" de Jeremy Morris - ele é advogado) contra a Associação de Moradores que viu um subúrbio residencial pacato virar uma caótica atração das festas de final de ano. Uma batalha que atraiu a simpatia de grupos de extrema-direita que viram em Morris um herói que lutava contra a intolerância religiosa de... comunistas e ateus! Esse é o documentário Apple TV+ “A Disputa de Natal” (“Twas The Fight Before Christmas”, 2021), um microcosmo que mostra como a América Profunda fez emergir o fenômeno alt-right do Trumpismo, depois irradiado para todo o planeta. Principalmente pela hiper-realidade midiática que enxerta a nostalgia de um passado que jamais existiu.

 

O leitor deve lembrar do clássico Férias Frustradas de Natal em que Chevy Chase interpreta Clark Griswold que, depois de muitas confusões, heroicamente consegue ligar sua gigantesca iluminação natalina que envolvia toda a sua casa – trazendo a edificante mensagem de que, não importam as dificuldades, uma família unida sempre consegue enfrentar os reveses da vida.

Combine esse e mais outros filmes (que ajudaram a construir memórias idílicas e hiper-reais das festas de Natal) com fundamentalismo religioso somado ao fenômeno recente da judicialização que ameaça as democracias e terá uma verdadeira batalha em plenas festas natalinas. 

É essa combinação explosiva, num EUA dividido politicamente desde a vitória de Trump e a corrosão da opinião pública pelas táticas de propaganda alt-right, que descreve o documentário A Disputa de Natal (Twas The Fight Before Christmas, 2021) dirigido por Becky Read e produzido por Chris Smith – produtora de outro excelente documentário, Três Estranhos Idênticos” – clique aqui. Um documentário estranhamente sombrio e ao mesmo tempo cômico que oferece diferentes perspectivas de um evento de Natal que deu totalmente errado, transformando-se em uma ferrenha batalha jurídica que até hoje não teve uma conclusão.

 Em um típico e pacato subúrbio de classe média norte-americano em Hyden, Idaho, uma batalha judicial fez a até então desconhecida cidade do país chegar aos noticiários nacionais em todo o mundo. Manchetes como “Guerra jurídica no Natal” que envolviam até a existência de um camelo vivo como decoração em um presépio, chamaram a atenção da cineasta.

Para ela tudo parecia bizarro: uma discussão entre vizinhos sobre uma comemoração de Natal acabou em um tribunal de júri, assumindo proporções políticas combinada com uma custosa artilharia jurídica que, seja o lado que perder na batalha, terá como destino da falência. 

No conflito, de um lado um advogado chamado Jeremy Morris, obcecado pela ideia de transformar em realidade as suas lembranças de infância, cuja hiper-realidade midiática transformaram em memórias idílicas combinada com um senso religioso distorcido; e do outro, a associação de bairro, incomodada por um evento que atrai milhares de pessoas de todo o país, mergulhando o pacato subúrbio em um caos de trânsito despejando multidões, muito lixo e depredações dos bem cuidados jardins das redondezas.

O hiperativo e egocêntrico advogado imediatamente aceitou em contar sua história no documentário. Percebemos nas cenas sua alegria infantil em mostrar suas toneladas de equipamentos decorativos que guarda em um depósito, à espera da chega do final do ano. Porém, uma infantilidade que, de repente, pode se transformar em agressão e ódio instrumentalizado pelo lawfare e práticas ilegais como grampos telefônicos e microfones ocultos para gravar conversas da vizinhança – para, logicamente se voltarem contra ela no processo.



Porém, foi extremamente difícil os vizinhos aceitarem participar do documentário: desconfiados, achavam que a produção seria mais uma arma de Morris para intimidá-los. Com muito esforço, Becky Read conseguiu reverter essa percepção e ganhou a confiança de todos – compreenderam que o documentário mostraria todos os lados do litígio.

E o resultado é não só tragicômico, mas também um instantâneo da atual corrosão social e política resultante das estratégias da chamada direita alternativa que envolvem mídia, judicialização e apropriação oportunista de uma certa noção de liberdade e direitos fundamentais como o impedimento legal da proibição do exercício de religião e de expressão – nos EUA, à Primeira Emenda da Constituição.




O Documentário

Um homem que proclama “amar o Natal mais do que a própria vida”, Jeremy Morris também acredita ter como missão compartilhar seu “espírito natalino” com o maior número possível de pessoas.

É por isso que, em 2014, ele decidiu iluminar e enfeitar sua casa com milhares de luzes e tantas bugigangas festivas quanto possível. E mais! Alugar um coral de 35 vozes, um camelo e distribuir chocolate quente e algodão doce, doando todo o dinheiro para instituições de caridade. 

Depois de publicar o evento no Facebook, o público veio em massa, com carros e ônibus fretados enfileirados por quilômetros. 

Ao ser advertido de que precisaria futuramente de uma autorização da Câmara Municipal, Morris rebateu dizendo que o que ele organizava “não era um evento, mas um milagre de Natal”.

Irritado com a necessidade regulatória e estimulado pelo sucesso de seu projeto, Morris convenceu a esposa Kristy e suas pequenas filhas de que deveriam se mudar para uma casa maior - fora dos limites da cidade.

West Hayden Estates, um bairro de subúrbio com suas ruas largas e abertas, parecia o lugar perfeito. O advogado Morris estava convencido de que não haveria qualquer problema em cumprir o imponente volume de convênios, condições e restrições da associação de proprietários de casas locais. 

Na verdade, foi mais do que isso: com seus conhecimentos a respeito de jurisprudência, Morris buscou no livro de regras da Associação todas as lacunas, pontos falhos ou ambiguidades que pudessem dar margens a interpretações, garantindo-se de quaisquer processos.




Não sem antes intimidar os vizinhos (e principalmente a presidenta da Associação, uma pessoa que no momento atravessava uma extrema vulnerabilidade emocional), com “carteiradas” e ameaças de mobilizar uma equipe de advogados, por meio de cartas, e-mail e telefonemas.

O que se seguiu foram alegações de perseguição religiosa, espionagem, telefones grampeados por Morris, segurança apoiada por grupos de direita, alegações de terrorismo, ameaças legais e físicas e animosidade crescente que ameaçava separar uma comunidade antes tranquila.

Garantido por milícias de extrema-direita (que se identificaram com a causa de Morris, que passaram a ver nele um herói em defesa da liberdade na América), os eventos se realizaram com um número cada vez mais crescente de visitantes – chegando a atrair turistas canadenses.

A princípio, até pensamos que Morris é simplesmente um cara sensível que deseja fazer o bem no mundo. Então, gradualmente, fica claro que ele fará tudo o que for preciso para conseguir o que quer.




A Disputa de Natal é um microcosmo de tudo o que há de errado não só com os EUA atuais – na verdade, o documentário mostra a América Profunda que fez emergir Donald Trump e todo o extremismo de direita que interpreta as liberdades individuais como algo acima qualquer outra lei ou regulação econômica. 

O comportamento de Morris zomba do sistema legal dos Estados Unidos. Por ser advogado, pode ser tão litigioso quanto quiser, incorrendo em poucos custos - especialmente em comparação com os custos legais dos vizinhos. Morris teve até permissão para fazer seus vizinhos deporem em juízo – as imagens mostram como ele tentou transformar essas sessões em interrogatórios vingativos.

O que acompanhamos no documentário é o fenômeno do lawfare como poderosa arma política, tendo como álibi a suposta defesa das liberdades religiosas (para Morris, o “milagre do Natal” é uma expressão religiosa) e de expressão.

No documentário, vemos cenas bem familiares para a realidade política brasileira, evidenciando que essa corrosão da sociedade pela polarização política não se restringe aos EUA. 

Numas das cenas, filmadas durante a pandemia, vemos Morris acompanhando o julgamento transmitido pela Internet. Quando uma juíza apresenta sua decisão, argumentando que o “evento” de Morris tem tudo, menos uma motivação religiosa, ele protesta: “COMUNISTA!”...




Jeremy Morris acredita num passado idílico, onde tudo era ingênuo e puro. E que uma sociedade governada por “comunistas” estaria estragando tudo. Um passado criado por falsas memórias fornecidas pela hiper-realidade midiática – as imagens de um Natal que nunca existiu, a não ser nas imagens do artista plástico Norman Rockwell nas capas do famoso semanário “Saturday Evening Post” ou nas figuras do Papai Noel nos comerciais da Coca-Cola.

Alberto Oliverio, professor de Neurologia da Universidade de Roma, aponta para o resultado de diversas pesquisas que descrevem o efeito das pessoas imersas cotidianamente nas imagens numa sociedade midiatizada:

Pessoas podem apresentar dificuldades em diferenciar entre as verdadeiras lembranças do próprio passado e situações que só assistiram. As lembranças, de fato, normalmente vão ao encontro de um contínuo processo de reestruturação: o esquecimento obstrui isso a medida que alguns aspectos das recordações e as novas experiências reestruturam as do passado, acrescentando novos elementos, modificando imperceptivelmente os já existentes.  Na sociedade das imagens este processo de reestruturação de lembranças pode implicar em enxerto de falsas memórias motivo pelo qual, amiúde, hesitamos diante do passado perguntando-nos se este nos pertence realmente. PELUSO, Angelo, Informática e Afetividade, Bauro, SP: Edusc, 1998, p. 47.

Porém, Jeremy Morris não tem essa hesitação. Para ele, as imagens natalinas de filmes de Chevy Chase e do seu próprio avô, ator de filmes mudos da velha Hollywood, são memórias verdadeiras de um Natal que não existiria mais. Por causa de vizinhos e juízes comunistas...

Aqui caberia uma questão: até que ponto essa hiper-realismo midiático do passado não seria responsável pela visão de mundo de extrema-direita? Seja nos EUA (o trumpismo com seu slogan “Make America Great Again”) ou no Brasil – a nostalgia pelos tempos ditadura militar como supostamente melhores.  

  

 

Ficha Técnica 

Título: A Disputa de Natal

Diretor: Becky Read

Roteiro: Becky Read

Elenco: Jeremy Morris, Kristy Morris, Julia Nottingham, Lisa Gomer

Produção: Dorothy Street Pictures

Distribuição:  Apple TV+

Ano: 2021

País: Reino Unido

 

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